CAPÍTULO 79

An Lepard e Kleon eram surrados pelos fortes ventos gelados da tempestade enquanto tentavam subir as escadarias de corda do lado direito do segundo mastro. Kyle e Melgosh lutavam costas-a-costas envolvidos por um grande aglomerado de zumbis, carniçais e esqueletos. Kiorina, Archibald e Gorum procuravam uma entrada para o convés inferior da embarcação necromante enquanto o Silfo feiticeiro Farzul dos Maki, aproveitava a tempestade para convocar trovões contra grupos de mortos vivos que os cercavam.

Um grupo de cerca de quinze silfos sobreviventes da tripulação, decidira que suas chances de sobrevivência eram maiores abordando o navio dacsiniano. De fato, já conseguiam manter posição próximo à proa. Mas dois problemas graves pioravam a situação progressivamente. Primeiro, os mortos-vivos no convés da nau capitãnea começavam a transbordar para o Estrela do Crepúsculo e perseguir os silfos. Segundo, com as velas içadas e os fortes ventos, os navios, lado-a-lado se chocariam de forma cada vez mais violenta, sendo que as chances do navio dacsiniano naufragar eram maiores. As alternativas eram, descer as velas de ambos os navios, o que parecia bastante improvável, ou soltar as amarras entre os navios.Chovia e ventava muito, sendo que cada vez mais a temperatura esfriava.

An Lepard e Kleon finalmente tiveram a chance de se lançar em direção ao Estrela. Conseguiram agarrar-se às cordas e depois cair sobre o convés. No processo, Kleon torceu o tornozelo, mas conseguiu mancar para próximo dos silfos que o ajudaram. Já An Lepard ficou de pé e desembainhou seu sabre encarando a todos de peito aberto. Algumas flechas foram lançadas contra eles, mas ou devido ao vento, chuva ou condições ruins de visão, não atingiram o alvo. Alguns homens que haviam sido membros de sua tripulação observavam-no descrentes, como se vissem um fantasma.

Proferiu em sua língua natal, – Escutem homens! Quem fala é o verdadeiro e legítimo capitão desta embarcação, An Lepard dos Baltimore! Os que se deixaram enganar pelos traidores Erles e Celix terão sua última chance e poderão ser poupados.

Enquanto isso, Kleon se inteirava da situação com os silfos. Aproveitou a deixa de Lepard e gritou, – Os cães que estão com Lepard, ou aqueles que simplesmente querem sobreviver, façam como eu, parem de brigar e tratem de soltar essas amarras!

Trovões ressoavam e relâmpagos iluminavam a face furiosa de An Lepard. Na beirada do tombadilho surgiu Erles, tinha um olhar descrente e mal acreditava que An Lepard ainda estivesse vivo. Assim que seus olhares se cruzaram, Lepard ignorou todas as dores que sentia e correu em direção do traidor. Como nos tempos antigos, buscou os lugares certos para colocar os pés e mãos enquanto escalava a parede para o tombadilho gritando de dor. Erles aproximou-se com sabre em punho e atacou Lepard enquanto terminava de subir. Lepard defendeu-se colocando o braço esquerdo à frente. Já era mesmo inútil, um corte a mais faria pouca diferença. O sabre de Erles foi fundo na carne de An Lepard e prendeu no osso. O dacsiniano mordeu os lábios segurando a dor e encarou Erles por alguns instantes. Era o mesmo velho feioso e mal vestido, sua cabeça molhada fazia sua careca ficar mais evidente. Finalmente, soltou a dor gritando, – Traidor!

Foi a última palavra que Erles ouviu, pois em seguida An Lepard enterrou o sabre em sua garganta. Lepard terminou de subir no tombadilho e não sentiu grande satisfação. Observou que abaixo, os silfos e dacsinianos trabalhavam juntos para desvencilhar o Estrela do Crepúsculo da nau sílfica. Uma dor aguda despontou no peito de Lepard. Fora alvejado por um virote disparado pelas costas despontando entre suas costelas.

– Capitão An Lepard, quem diria!?

Lepard sentiu o sangue subir pela garganta e reconheceu a voz de Celix. Segurou-se no balcão e esforçou-se para encarar o traidor. Vestia-se de forma diferente. Baixo, magro, mas musculoso exibia os braços bem definidos, pois se vestia com um colete negro ornado com ouro, botas longas e calças no mesmo estilo.

– Devo agradecê-lo duplamente! – dizia Celix enquanto girava o dispositivo da besta que tencionava a corda da besta para disparar outro virote. – Primeiro, por sua fala ali embaixo, que proporcionou nossa libertação dessa situação insustentável. Segundo, por ter eliminado esse imbecil do Erles, algo que devia ter feito há mais tempo.

A voz de um marujo soou atrás, mas An Lepard não pode vê-lo. – Capitão Celix, o que devemos... – Ele foi interrompido pelo sinal de Celix que percebia a compreensão tardia no olhar de An Lepard.

– Mas Erles, eu soube...

Celix fez força para a tensão final da besta e com ela preparada disse, – É claro que soube, ele que faz todo trabalho de fachada, ou você realmente acha que ele tem inteligência para algo a mais que executar ordens?

An Lepard reunia forças, ao menos para falar. – Maldito seja! Traidor desgraçado!

– Você é patético An Lepard, patético! Eu achei que tinha me livrado de você vendendo-o ao capitão Shark, mas como você não simplesmente não morre, vou acabar com você agora mesmo! – Celix apontou a besta contra a testa de Lepard, mas trêmulo disparou errando o alvo. An Lepard não entendeu de imediato. Somente quando viu a mão esquerda de Celix contra o peito compreendeu. Segurava o cabo de uma das adagas de Kleon enterrada na altura do coração.

Celix ainda proferiu suas últimas palavras antes de tombar, – Chilli desgraçado!

***

Kiorina erguia a tampa de um alçapão e gritou ofegante, – Rápido, por aqui!

– É brincadeira? – disse Gorum e a resposta veio com um olhar.

Gorum entrou seguido de Archibald e Kiorina, mas o Silfo Farzul ficou de fora. Seria a última vez que o viriam.

Caíram numa espécie de piscina, ou talvez o navio estivesse afundando. A água não passava da cintura. – Que idéia foi essa de entrar num alçapão... molhado e pegajoso? – indagou Gorum.

– Preferia ficar lá fora? – retrucou Kiorina acendendo uma chama.

Archibald olhou bem ao redor e disse, – Talvez sim!

– Pelos Deuses! – exclamou Gorum. – Isso aqui ta cheio de corpos.

Archibald completou, – E pedaços de corpos... de animais também...

– Pelo menos eles não estão se movendo – replicou Kiorina.

– E o cheiro não está tão ruim também – disse o rapaz.

– Isso aqui é um pote gigante de picles... – zombou Gorum.

– E agora, qual o plano? – quis saber Archibald.

– Não sei, talvez descer? – respondeu Kiorina.

– Será que eles sabem que estamos aqui? – perguntou Gorum coçando a barba.

– Olha aí a resposta! – apontou Kiorina.

Dois espectros emergiram do meio dos corpos.

Archibald concentrou-se, – Vou tentar espantá-los, se não der é com você Kina.

Kiorina concordou, mas estava apreensiva, estava muito cansada e duvidava que poderia fazer algo além de acender pequenas chamas.

Archibald murmurou uma ladainha e evocou a força dos Deuses. – A luz de Leivisa: Límolo Límelo Krata Aér – Suas mãos brilharam com intensidade afastando os espectros.

– Que alívio! – suspirou Kiorina – quando aprendeu esse truque?

– Truque? O melhor mesmo é saber como sair daqui, ou melhor, como encontrar os necromantes antes que enviem algo pior para nos pegar?

– Archie, você não consegue endurecer madeira, ou algo assim?

– Mais ou menos... Ah, entendi. Fradilize Carvus Oném!

– E? – quis saber Gorum.

– A madeira sobre meus pés deve estar fraca o suficiente para que você quebre.

– Você quer dizer, aqui? – Gorum atravessou o pé na madeira e com isso iniciou um processo de escoamento de todo aquele líquido viscoso. Em seguida, mais golpes fizeram a falha aumentar até que alguns pedaços também desceram para o convés inferior. Sem o excesso de líquido Gorum pode abaixar-se e forçar mais tiras de madeira a de descolarem da posição. – Só um pouco mais! – disse Gorum fazendo força e crec, mais uma madeira quebrada.

– Vamos descer. – disse Kiorina.

– As damas primeiro. – retrucou Gorum.

– Engraçadinho!

Archibald desceu em alerta. Era uma câmara maior e parecia estar relativamente calma, tirando o fato que cada vez com maior freqüência tudo tremia devido a impactos dos cascos dos navios. Logo foi seguido pelos outros.

Com o local iluminado, Gorum disse, – Parece que não temos muita opção. Vamos por ali.

Abriram a porta para avistar duas criaturas mortas-vivas se aproximando. Eram cavaleiros da morte, zumbis muito fortes vestidos com armaduras completas.

Gorum perguntou, – Archie, pode fazer um truque para fazer essa ripa ficar dura como pedra?

– Truque, não é? – resmungou enquanto preparava a evocação. – Rochus Carvus Oném!

Gorum partiu para cima com tudo segurando a ripa com as duas mãos e fazendo esforço máximo, grunhiu ao atingir a testa da criatura com uma pancada. O golpe foi forte e amassou o capacete de ferro e junto com ele o crânio da criatura. Suas mãos ficaram em choque fazendo com que largasse a ripa de madeira endurecida. O cavaleiro morto-vivo cambaleou e caiu, instantes depois. Um jato de chamas, não muito potente, emitido pela feiticeira fazia o papel de distrair o outro.

Archibald sugeriu, – Vamos apenas seguir em frente! Correndo, correndo!

Assim fizeram, foi assim que chegaram à outra câmara na qual encontraram Fernon e outros Necromantes.

***

Kyle e Melgosh estavam cercados. Até onde entendiam, eram as únicas criaturas vivas a bordo da nau sílfica. A tempestade intensa e gelada não trazia mais água, mas pedras de granizo. Kyle tinha problemas para manter a concentração, uma vez que as pedras de granizo começavam a machucá-lo. No entanto, Melgosh como portador da Maré Vermelha, em nada sentia seus efeitos. Não fosse a distração causada pelas pedras, o cansaço era um fator que Kyle não podia negar. Pelos números de inimigos e pela situação, tomava consciência de que aquele seriam seus últimos momentos. Já não era a primeira vez que recebera golpes, mas com o tranco causado pelo choque entre as naus amarradas e o mar revolto perdeu o equilíbrio. Logicamente, muitos mortos-vivos foram ao chão, mas antes que pudesse levantar-se sentiu em sua perna a mordida faminta de um carniçal. Pulando sobre ele, mais um, dois, três, quatro e mais. Parecia ser seu fim, mas Melgosh veio a seu resgate a lâmina ficava mais forte com o uso e em poucos instantes Melgosh eliminou uma dúzia de mortos-vivos que estava por cima de Kyle. Melgosh aproximou-se e em poucos instantes, construiu com a lâmina uma redoma de gelo. Kyle estava atordoado, mas logo encarou Melgosh que tinha um olhar transfigurado. Seus olhos estavam completamente brancos, sem íris e pupila.

– Kyle, escute-me. Ainda há tempo para você.

Kyle levantou-se surpreso por ainda estar vivo. Mas não compreendia bem o que havia ocorrido. Havia tomado várias mordidas e arranhões, mas boa parte deles não foram profundos devido às roupas de couro que vestia. Tocou a redoma de gelo e percebeu a turba de mortos-vivos se debatendo contra ela.

– Você fez isso? – Kyle estava espantado.

– A espada, e ela pode fazer muito mais.

– Não poderá nos salvar?

– Não sem nos destruir.

– Não entendo.

– Esta lâmina é amaldiçoada. Está escrito na história, foram inúmeros os portadores que foram vítimas de seus caprichos. Em pouco tempo ela irá destruir tudo e todos em sua proximidade.

– Guarde-a! Eu consegui controlá-la. – argumentou Kyle.

– Não, sei que não posso mais. Usei-a além do limite da minha vontade.

– Mas...

– Não discuta! – ameaçou o silfo encostando a lâmina gélida contra o pescoço de Kyle. – Faça o que lhe ordenar.

Kyle engoliu seco e acenou com a cabeça.

– Diga para minha filha que sempre estarei com ela e meu neto. Se Archibald sobreviver, diga que é seu dever cuidar dela, senão, cuide dela para mim, como resposta último desejo de um silfo honrado.

– Farei o meu melhor!

– Vou quebrar o gelo e projetar um jato de vento naquela direção. Isso vai deixar o caminho livre por alguns instantes. Quero que você corra e salte para o mar. Se o destino lhe reservar um papel, sobreviverá.

Os olhos de Kyle se encheram de lágrimas e disse, – Melgosh, foi uma honra conhecê-lo e lutar a seu lado. Muito obrigado por tudo! – E se abraçaram, Melgosh ainda empunhando a lâmina. E o silfo fez como prometeu. Quebrou a redoma rumo a lateral esquerda da nau, para o lado que sabia pela visão proporcionada pela espada que havia o espaço deixado pela embarcação Dacsiniana que partira há pouco. Em seguida, empunhou a espada com as duas mão apontando-a para a direção da rachadura. Um forte vento composto por pedras de gelo soprou naquela direção. Os mortos-vivos que estavam no caminho eram estilhaçados ou voavam para longe. Em poucos instantes o caminho se fez livre para Kyle. O jovem cavaleiro lacorês correu e saltou para o mar. Sentiu certo alívio ao experimentar a temperatura da água do mar, bem mais quente que o frio intenso pelo qual passava há pouco. O movimento de ondas era intenso e era mais fácil nadar submerso. Estava muito cansado da batalha e com os ferimentos, mas sabia que se não se afastasse o bastante da nau sílfica, morreria.

***

Fernon e os demais necromantes pareciam exaustos e preocupados. Kiorina, Archibald e Gorum preparavam-se para mais um confronto mas foram surpreendidos por Fernon que ergueu sua mão deformada pelo uso de magia negra e disse, – Esperem! Não ataquem.

Os três esperaram por um instante desconfiados.

– Se lutarmos agora, todos sucumbiremos. Fizemos uma divinação e tivemos a visão de nossas mortes.

– Como assim, o que quer dizer? – indagou Archibald.

– Este navio vai naufragar em poucos instantes, se lutarmos morreremos todos afogados. A única chance de sobreviver é nos ajudarmos.

– Isso só pode ser um truque! – afirmou Gorum.

– De certo – concordou Kiorina.

– Não sejam tolos – apelou um dos necromantes.

– Que tal um acordo, faça-os parar e nós nos ajudaremos, sugeriu Kiorina.

– Não é necessário. Eles já foram desfeitos, em sua grande maioria. Foram desfeitos por um grande poder que está sem controle.

Um tranco forte no navio fez com que todos fossem ao chão. Uma grande sequência de estalos soou. E em poucos momentos o local começou a encher-se de água.

Gorum anunciou enquanto ficava de pé, – Eu acredito! – e Archibald complementou, – O que devemos fazer? – O chão se inclinou e mais água entrava na embarcação.

Fernon disse, – Rápido, por ali!

Dois necromantes estava muito fadigados e pediram auxílio, Gorum puxava-os pelo braço enquanto seguiam para a outra câmara. Nesta, era necessário nadar. Sentiam a água ficando gelada e em sua superfície muitas pedras de gelo flutuavam. O nível da água subia rapidamente e Fernon indicava desesperado a abertura que daria para o convés principal. Gorum tentava empurar, mas não tinha sustentação na água e a escada que levava até aquele ponto estava quebrada. Em instantes estariam submersos. Archibald evocou, – Fradilize Carvus Oném!

Gorum captou e em seguida esmurrou a madeira abrindo orifícios nela. Antes de continuar, Gorum tomou sua última respiração, assim como os outros. Já afundavam por alguns instantes quando o gigante conseguir terminar de arrombar um buraco para passarem. Nadaram com desespero até chegar à superfície. Lá sentiram a força do granizo que caia do céu. As ondas eram enormes e entre um relâmpago e outro avistaram a nau capitãnea dos silfos com a popa afundada e a proa erguida. Já estava naufragando lentamente. Cada um agarrou-se como pode a escombros flutuantes, ou mesmo blocos de gelo que haviam se formado há pouco. Gorum gritava para ter notícias de Kiorina e Archibald, mas mal podia identificar as respostas. Para nenhum deles, estava claro se sobreviveriam àquela tempestade.

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