CAPÍTULO 78
A noite se aproximava e Vekkardi sentia-se oprimido ao deparar-se com a fortaleza de Arávner. Há cerca de um ano, fizera parte da estratégia de Radishi para resgatar Noran das trevas. No processo, Vekkardi quase perdera a vida, alvejado pelas flechas da guarda. No último instante, Noran recobrara a consciência do seu verdadeiro eu que havia sido corrompido aos poucos pelo poderoso Arávner. Imaginava que agora, seu amigo Radishi estaria sendo submetido a terríveis condições a fim de ter sua força de vontade subjugada. Sentia o pescoço tenso e girava-o provocando estalos.
– Memórias desagradáveis? – atiçou Calisto, trazendo os pensamentos de Vekkardi de volta para o presente.
Vekkardi enfezou-se, – não mecha em minhas memórias!
– Por acaso esqueceu-se do orbe? Apenas observava sua expressão – replicou o rapaz com um sorriso cínico em seus lábios delicados.
Enquanto os dois continuavam com uma breve discussão, o silfo Elser apalpava o Orbe do Progresso e mantinha grande concentração no ambiente circundante.
Acreditavam que com a camuflagem psíquica do orbe, conseguiriam ocultar-se de Arávner, mas ainda precisavam lidar com os sentinelas da fortaleza. Vekkardi imaginava que se estivesse sozinho, conseguiria infiltrar-se com facilidade. Mas, tendo que permanecer próximo dos outros, seria muito difícil conseguirem.
Calisto apostava que sua própria dificuldade para ter impressões claras dos pensamentos de Dagon, poderia ser utilizada como trunfo.
A discussão cessou dando espaço aos sons do vento enquanto observavam o cavaleiro morto-vivo avançar em sua montaria em direção aos portões da fortaleza.
Haviam planejado as ações durante o dia, e agora, com o crepúsculo testariam a possibilidade de infiltrar Dagon na fortaleza.
Observaram Dagon aproximar-se do portão com seus movimentos inumanos. Após alguma interação com a guarda, permaneceu imóvel por um certo período. Antes que os observadores pensassem que haveria algum problema, o portão se abriu e o cavaleiro entrou.
Sobre o que sucedeu após a entrada de Dagon, não puderam saber. Mas, bem depois quando os portões se abriram souberam que o plano obtivera êxito. A madrugada estava próxima e a encosta da montanha abaixo da fortaleza estava silenciosa. Apenas o barulho de arbustos farfalhando contra os ventos e sons de insetos preenchiam a noite.
Calisto, Vekkardi e Elser aproximaram-se furtivamente da muralha e pelas sombras, chegaram até o portão aberto. Vekkardi surpreendeu-se, pois imaginava que Calisto não seria capaz de subir aquele caminho furtivamente. Durante a viagem, Vekkardi percebera como era grande a capacidade de aprendizado do rapaz. Temia aquela força que tinha em sua mente e às vezes Calisto percebia o medo de Vekkardi com prazer.
Elser tomou a dianteira e inspecionou o pátio com sua visão sílfica, um pouco melhor adaptada às condições de pouca iluminação do que a visão humana. Calisto seguia de perto, incomodado por não poder fazer uso de suas faculdades mentais e tecer uma análise dos perigos potenciais da situação. Logo avistaram Dagon e próximo dele dois corpos estirados no chão.
O pátio que iniciava a partir do muro se estendia até uma série de lances de escada quase sobrepostos acompanhando o relevo íngreme que levava até a entrada principal da fortaleza, que podia ser vista de fora da muralha.
Elser sussurou, – Teremos de subir juntos e dar um jeito naquelas outras sentinelas adiante – Apontou para o alto da escadaria, mas com exceção da visão sobrenatural de Dagon, não puderam ver as sentinelas que Elser indicava.
– Sim, estou vendo. – assentiu Dagon.
Vekkardi deu com os ombros e imaginou que assim como ele, as sentinelas provavelmente não podiam avistá-los daquela distância.
Elser subia os degraus sem fazer um ruído sequer. Após uma inversão de quase cento e oitenta graus na direção dos degraus, desprendeu o arco que trazia nas costas. Mais acima, tomando cobertura de joelhos atrás de uma rocha próxima ao final da escadaria, esticou o fio do arco e logo disparou contra uma das sentinelas. A flecha penetrou na cabeça do guarda que tombou emitindo um gemido. Antes mesmo que o outro guarda tomasse ciência do que estava havendo, Elser disparou com sucesso outra seta mortal.
Finalizaram a subida dos degraus e logo alcançaram o portão que dava acesso ao interior da fortaleza. Vekkardi estivera na fortaleza antes e já imaginava que o portão estaria fechado. Lembrou-se dos ensinamentos de seu falecido mestre Modevarsh e concentrou-se para fechar sua mente. Teriam de arriscar uma breve separação para que tentasse abrir o portão pelo interior. Após breve discussão, concordaram o risco e Vekkardi pôs-se a escalar o muro da fortaleza aproveitando a quina entre duas paredes. Seu caminho levava até uma janela sem vidros que servia de entrada de ar para corredores do nível superior. Ventava muito e Vekkardi sentia a rocha gelada mesmo através de suas luvas. Penetrara a fortaleza que estava muito quieta em seu interior. Não foi difícil encontrar o caminho de volta para a saída. Em seguida, ergueu a pesada tranca da porta com certa dificuldade e os outros também entraram.
O interior da fortaleza estava quieto. Vekkardi liderava o grupo, levando-os até uma escadaria que descia para as catacumbas. Calisto pensava, “Está muito quieto, deve ser uma armadilha”. Elser sentia-se um pouco nervoso e sua mão suava mesmo com o toque frio do orbe do Progresso que iluminava o caminho com seu brilho azulado.
Logo, chegaram a uma parede e Vekkardi sentiu-se confuso. – Havia uma passagem aqui. – declarou em voz baixa.
– Ótimo! – replicou Calisto irônico. – Chega dessa baboseira. Devia ter seguido minha intuição. Não acho que Radishi esteja no calabouço, um prisioneiro como ele seria mantido na parte alta. – Tomou a dianteira e completou, –Venham!
Ao chegarem novamente no salão próximo da entrada, depararam-se com uma homem do qual podiam apenas identificar a silhueta.
– É ele... – sussurrou Calisto.
Vekkardi disse, – Radishi, é você?
Na altura dos olhos da silhueta puderam ver um brilho amarelado. Calisto engoliu seco ao encarar os olhos faiscantes do opositor. Podia sentir a energia Jii emanando num forte fluxo. Mesmo a proteção do orbe parecia recuar frente àquela potência.
Confiante, Elser ergueu o orbe e convocou através dele iluminação forte e azulada. Revelou-se sob a luz da esfera o rosto de Radishi numa expressão obscura e a luz fez reluzir seus olhos azuis cristalinos tal como os olhos de um felino na noite. A pele do tisamirense parecia um pouco esfolada, principalmente na altura da testa. A tatuagem que tinha entre os olhos havia sido apagada cruelmente. Seu rosto estava sujo de seu próprio sangue seco e escuro.
O confronto nada durou, pois quando o tisamirense atacou Elser com a força de sua mente, teve o ataque direcionado contra si mesmo. Após um breve grito de agonia sucumbiu colidindo contra o chão num baque abafado.
Elser riu e caminhou em direção do corpo caído afastando-se de Calisto e os outros. – De fato, mais fácil que imaginava – comentou torcendo o nariz para Calisto.
No instante seguinte, Calisto soube que o fluxo de Jii que sentira a pouco não vinha propriamente de Radishi. – Elser, cuidado! – alertou Calisto.
Era tarde, ao mesmo tempo em que Calisto gritava um forte estalo soou próximo a Elser. Em instantes, o teto ruiu e uma grande quantidade de blocos de pedra caiu sobre o Silfo atingindo-o no ar enquanto saltava para escapar daquela ameaça. Mas nem os reflexos do Silfo puderam salvá-lo da queda repentina de boa parte do teto. Atingido severamente, seu corpo ficou estirado coberto de escombros. Sua mão direita ainda segurava o orbe, que mesmo atingido, parecia não ter sofrido um arranhão sequer. Após uma série de espasmos a esfera girou abandonando a mão do Silfo e rolando até atingir escombros próximos da lateral do salão.
O local ficou escuro assim que a esfera escapou das mãos de Elser e uma grande quantidade de poeira pairava no ar. Calisto e Vekkardi cobriam o rosto e tossiam enquanto Dagon avança sem incomodar-se com o pó suspenso.
Logo Calisto pressentiu, estavam liquidados.
O buraco no teto trazia iluminação para o salão na medida que a poeira abaixava. Com os olhos pressionados Calisto viu o vulto que flutuou do andar superior pousando próximo a Elser. Dagon soube que precisava agir rápido. Com violência e precisão o morto-vivo arremessou a espada encantada, que pertencera ao Cavaleiro Vermelho, envolta em chamas, contra o peito do oponente. Um simples gesto do poderoso opositor desviou a lâmina encantada que se fincou contra um grande móvel de madeira na lateral do salão. As chamas aos poucos se espalharam iluminando o local. As chamas revelaram a frieza no olhar de Arávner. Seus cabelos brancos cacheados estavam presos formando um rabo de cavalo. Ele o mais alto homem que Calisto já havia visto, olhava para Dagon inclinando a cabeça para baixo, era mais alto até que o cavaleiro Derek. Suas mãos eram enormes e com dedos compridos e moviam-se em gestos aracnídeos. Vestia uma roupa escura cujos detalhes não eram evidentes na penumbra e esta cobria todo seu corpo, exceto o rosto e as mãos.
Vekkardi encarou o orbe e correu em sua direção, logo dava cambalhotas sucessivas na esperança de desviar-se dos projéteis que Arávner arremessava com a força de sua mente. Calisto viu oportunidade de utilizar o anel encantado que recebera de Thoudervon. Apontou-o para Arávner, mas no momento em que disparou a bola de fogo, teve sua mão desviada contra sua a vontade pela força cinética comandada pela mente de Arávner. Como resultado, o projétil de fogo atingiu o Barão Dagon pelas costas envolvendo-o em chamas. O grito de agonia do morto-vivo preencheu o local. A agonia de Dagon não era conseqüência da dor, pois não era capaz de tal sensação, mas sim pela perspectiva de ter seu corpo destruído pelas chamas. Calisto acompanhou com os olhos a corrida desesperada do cavaleiro que se atirou contra os vitrais no fundo do salão. Seu grito horrendo diminuiu aos poucos na medida que caia no precipício e rolava montanha abaixo.
A distração, no entanto, fora suficiente para que Vekkadi conseguisse por as mãos no orbe do Progresso. Com outro gesto Arávner arrancou a espada de Dagon da madeira e dirigiu-a com velocidade incrível contra a coxa de Vekkardi. A espada atravessou a perna do discípulo de Modevarsh pregando-o contra a parede do salão. Usando todas suas forças, Vekkardi agarrou-se à esfera na esperança que ela pudesse ser sua salvação.
O vento gelado da noite penetrava no salão através da vidraça estilhaçada por Dagon fazendo o fogo vibrar.
– Tolo! – exclamou Arávner, – Tu acreditais que podereis mesmo usar este brinquedo?
Calisto concentrou forças para um ataque procurando aproveitar-se da atenção de Arávner estar focalizada em Vekkardi. Mas antes que liberasse o golpe sentiu forte pressão contra sua garganta. Em seguida, seus pés não mais tocavam o chão. Arávner apenas olhou para Calisto com o canto dos olhos que tossia e debatia-se desesperadamente suspenso no ar, enquanto era enforcado pela força mental do senhor da fortaleza. – Logo cuidarei de ti, escolhido...– proferiu com asco na voz e expressão facial.
Arávner trocou a expressão e o tom de voz para dirigir-se a Vekkardi. – Vekkardi! Meu adorado Vekkardi. Tu que és o discípulo daquele verme sílfico. Tu que tiraste de mim, meu precioso Noran. Tu que serviste ao propósito de capturar o bom Radishi e ao propósito de denunciar e condenar à morte teu próprio mentor! De fato devo admitir que és muito corajoso. Ou que és muito estúpido!
Vekkardi segurava a dor entre os dentes e disse com ódio, – Vejo apenas um verme aqui.
– Pois bem, fazei um favor à tua mercê! Entregai à mim esta esfera.
– Não.
Arávner deu uma gargalhada suave. – Sugere que eu espere até que sangres até a morte? És ridículo, assim como Rodevarsh que depositou muita confiança em tal brinquedo. – Com um gesto, arremessou Calisto contra a parede com violência e deixou que retomasse seu fôlego. Enquanto Calisto tossia curvado no chão, Arávner aproximou-se de Vekkardi e sussurrou em seu ouvido. – Minha paciência está curta – e gritou – Dai-me o orbe!
Vekkardi cuspiu em Arávner. Este se afastou e disse, erguendo ambos os braços, – Tal artefato pode impedir que lhe faça um ataque direto, porém, da mesma forma que o silfo Modevarsh sucumbiu, tu sucumbirás!
O senhor da fortaleza mobilizava contra Vekkardi uma rocha após a outra. Logo seus ossos começaram a quebrar e após uma dezena de pedradas Vekkardi tombou deixando rolar o orbe. Os olhos de Arávner brilharam enquanto observavam a esfera de luz própria girar sob o chão escuro. Foi então que sentiu uma fisgada em suas costas.
Calisto enterrara um punhal que carregava preso à bota nas costas de Arávner que descrente virou-se para encarar o rapaz. – Como pudeste? Como? – gemeu Arávner.
Quando Calisto falou, lembrou-se imediatamente da voz de seu instrutor, Irmão Weiss. A voz era rala, quase apenas um chiado. – Você me subestimou maldito!
Arávner murmurou sua resposta rolando os olhos. – Faz sentido... Radishi tinha razão, tu tens potencial. Tua técnica de ocultamento... Argh... – Arávner cambaleou e sentiu que o punhal havia penetrado em seu coração. Após dois passos, tropeçou no corpo de Radishi e caiu sentado. Esticava seus longos braços tentando alcançar o cabo do punhal que saía de suas costas. Sangue saia pela boca do gigante que encarava Calisto com olhos vidrados. – Tu não tens idéia do que fizeste menino! Há séculos... Argh... Não sofria um ferimento.
Calisto estava surpreso, pois acreditava que ele já devia estar morto àquela altura, e não falando.
Sacou a espada e estava determinado a separar a cabeça de Arávner de seu corpo. Avançou ligeiro, mancando um pouco, mas antes de atingi-lo sentiu enorme força contra seus braços provocando choque tal que a espada voou longe.
A segunda surpresa veio quando Arávner pôs-se de pé e conseguiu retirar o punhal das costas atirando-o no chão.
– Mas isso é impossível. – murmurou Calisto assoberbado, – Tenho certeza que atingi o coração.
– Não estou vivo há milênios por poucas razões menino! – disse Arávner controlando sua ira. – É preciso mais que um punhal contra meu coração para acabar comigo.
Calisto recuou apavorado ao encarar o olhar monstruoso de Arávner. Nem Weiss, Dagon, o demônio Therd Fermen ou mesmo Thoudervon teriam causado tal efeito de horror em Calisto. – O que é você? – perguntou dando mais um passo atrás. Repetiu até que ficou contra a parede e gritou, – O que é você!?
– Queres mesmo saber? – o sorriso diabólico de Arávner fez o coração de Calisto acelerar. – Contar-te-ei! Sou aquele que fará que tu aprendas uma lição!
Três fortes estalos fizeram Calisto gemer de dor. Seu braço havia sido quebrado em três lugares diferentes. Nem parecia mais um membro humano, mas sim o braço de uma marionete. Os estalos se seguiram, um, dois, três, quatro, cinco, seis, até dezoito. Foram ossos de ambos os braços, dedos e costelas se quebrando. Calisto foi ao chão e sentiu o gosto da pedra e poeira entrando em sua boca aberta.
– Menino maldito! Eu deveria matá-lo pelo que fizeste! Mas não desejo atrapalhar nossos planos. Tão pouco desejo criar alguma animosidade com Thoudervon. Não, não permitirei que desmaies rapaz! Irás sentir da minha dor e lembrareis que nunca mais devereis impor-me um desafio.
Calisto mal podia falar. Mas antes de desfalecer viu um forte brilho alaranjado surgir no outro lado do salão. Ao que parece, não era o último confronto de Arávner naquela noite. E assim como seu próprio fim não havia chegado o mesmo valia para Radishi, Vekkardi e o Barão Dagon.
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