CAPÍTULO 77

A batalha entre os quatro navios era eminente. Os navios inimigos surgiram das névoas, repentinamente e já muito próximos. Mesmo sendo a nau capitaneada por Melgosh mais robusta e veloz, estavam em cursos contrários e já não havia mais espaço para uma manobra evasiva. O que restava era traçar uma estratégia para a batalha no tempo mais breve possível.

No centro estava o antigo navio de An Lepard, o Estrela do Crepúsculo. Uma grande nau dacsiniana de três mastros e amplas velas bem esticadas. As duas outras embarcações, Lacoresas, tinham um desenho completamente diferente. A madeira era mais escura e tinham um formato largo e retangular, com apenas dois pequenos mastros e o convés principal era aproximadamente um terço mais baixo que o da nave dacsiniana. Sua principal força motriz vinha dos remos, vinte e oito pares de enormes remos projetados das laterais saindo de orifícios posicionados abaixo de grandes escudos com o brasão lacorês do dragão de duas cabeças. Tratavam-se de naus de guerra lacoresas.

Estavam em desvantagem numérica, mas contavam com o porte e robustez da embarcação sílfica. Era a que possuía o convés mais alto e em sua proa um poderoso aríete que constituído de madeira e metal. Apesar de não estar tripulado para guerra, a nau capitãnea do império sílfico era uma das embarcações de guerra das mais prodigiosas já construídas, ao contrário do Estrela do Crepúsculo que era apenas um navio voltado para transporte de cargas.

Melgosh dava instruções a seus homens do alto do tombadilho, sendo que parte do que falava não era entendido pelos Lacoreses presentes, mesmo eles sabendo a língua dos silfos. Parecia tratar-se de um dialeto especial para uma situação de combate. O timoneiro era muito experiente, já navegava há mais de quatrocentas estações e conhecia aquele navio como ninguém. Logo a nau capitãnea desviou-se do navio dacsiniano e direcionou-se para uma das embarcações lacoresas que eram conhecidas como Ceifadores.

Apesar de ainda enfraquecidos devido à proximidade com as terras almadiçoadas os silfos do clã Maki que compunham a tripulação dispunham de energia para uma convocação coletiva. Através da magia trocavam sussurros com o capitão e timoneiro apesar de estarem no interior do navio, numa câmara especial do terceiro convés. Nesta câmara, cheia de aparatos mágicos, havia um grande orbe de brilho azul celestial intenso encaixado em uma mesa ao redor da qual seis magos operavam uma grande conjuração.

Naquele instante, no exterior do navio, Melgosh avisava aos tripulantes humanos que estavam no convés principal, - Segurem-se com firmeza!

Kiorina matinha sua concentração para agir quando necessário e sentiu uma forte corrente de energia contrária a seu elemento principal, o fogo, surgindo ao redor do navio. De forma instintiva, decidiu extinguir as chamas que havia criado para facilitar a operação das magias aquáticas. Nunca em sua vida, nem mesmo do mais poderoso mestre da Alta Escola, havia percebido um fluxo mágico tão vigoroso. Seus instintos, além do aviso de Melgosh fizeram que se agarrasse à estrutura do navio. Ao mesmo tempo, Melgosh repetia, - Segurem-se todos!

An Lepard, sentia suas entranhas pulsarem, curioso, aproximou-se da proa, na lateral esquerda do navio para observar o que ocorria. Havia um certo brilho na água ao lado do navio e esta parecia mover-se de maneira estranha. O marujo dacsiniano estava impressionado com a manobra iniciada que entendera naquele momento. Estavam em curso de colisão com uma das embarcações lacoresas. Logo não pode deixar de notar as centenas de remadores que tinham uma aparência nada saudável. Queria imaginar que estava sendo enganada por seus olhos, mas logo soube do que se tratava. Eram criaturas mortas animadas pela magia maléfica dos necromantes. Tão logo se deu conta disso, a nau sílfica ergueu a proa subitamente impulsionada pela convocação dos silfos Maki. An Lepard tinha forças para segurar-se apenas com um dos braços e para evitar cair ou ser jogado para fora do navio conseguiu enroscar uma das pernas em cordas que ligavam a lateral nau a um dos mastros.

A impressão geral, fora a mesma, parecia que o navio viraria da forma mais impossível. A proa apontava para o alto como se o navio fosse alçar vôo. Permanesceu neste ângulo por alguns instantes. A queda violenta da proa da nau capitãnea deu-se sobre o navio lacorês, esmagando-o como se fosse uma marreta. Houve um grande estrondo seguido do som de madeiras quebrando, cedendo e rangendo. Um grande spray de água foi projetado para o alto e para os lados. E depois que a água baixou, pode-se ver o estrago. O navio lacorês estava partido em duas partes, sendo que uma delas começou a afundar de imediato. A tripulação em sua grande maioria composta de criaturas mortas-vivas continuava a exercer sua tarefa. Remavam e remavam, mesmo enquanto sua embarcação afundava.

Uma das embarcações inimigas estava eliminada, mas não sem seu preço. A força do impacto fora enorme, uma parte menor da embarcação partida projetou-se contra a lateral próxima de onde estava An Lepard. Várias cordas se romperam e estilhaços de madeira foram projetados naquela região. Uma das velas não agüentou, perdeu a sustentação descendo violentamente contra o convés principal. Alguns foram feridos e aparentemente, apenas um ou dois silfos foram projetados para fora do navio. Duas lascas de madeira atingiram An Lepard causando-se ferimentos no braço ruim e nas costas. Mas isto não foi a pior, parte do navio lacorês ficou enganchada na nau capitãnea removendo boa parte de sua capacidade de manobra.

Foi assim que esta logo foi alcançada pelo Estrela do Crepúsculo pela lateral direita e pela outra nave lacoresa pela esquerda. Da nau lacoresa dezenas de grandes ganchos eram arremessados por mecanismos semelhantes a pequenas catapultas. Em pares, os ganchos traziam atrás de si escadas formadas por cordas. Através destas, como insetos saindo de uma colméia, centenas de criaturas mortas-vivas subiam rumo ao convés principal do navio comandado por Melgosh. Enquanto isso, a partir da embarcação dacsiniana cujo convés era apenas um pouco mais baixo, ganchos menores eram lançados, assim como pequenas escadas de madeira. Ao mesmo tempo, marujos sob o comando de Erles, conseguiam abordar saltando para o convés sílfico usando cordas.

Kyle, Kiorina, Archibald, Gorum e Kleon estavam próximos, entre a saída da cabine e o mastro principal, nenhum deles havia se ferido, uma vez que o ponto de impacto fora próximo da proa. Kiorina logo lançou um extenso jato de chamas contra uma das escadas e deixou que o fogo fizesse seu trabalho. Enquanto isso, Gorum e Archibald acertavam os zumbis e carniçais que suabiam através das chamas, atirando-os ao mar. Kiorina foi acompanhada por Kyle, que vigiava sua retaguarda em direção à outra escada atirada pelo navio necromante.

Melgosh no tombadilho, avaliava a situação. Se tivesse uma tripulação completa para guerrear, poderiam vencer o combate, disporia de seiscentos ou setecentos silfos. Mas agora, não tinha certeza se os seus chegavam a duzentos. Observava, que apesar do bom trabalho dos arqueiros alvejando as criaturas mortas-vivas que subiam aos montes, o avanço destas era pouco prejudicado, se fossem homens ou silfos, boa parte destes não tocaria o convés. Mas duas ou três setas nas costas daquelas criaturas eram como agulhas espetadas que não diminuíam seu avanço. Duas das escadas, próximas do tombadilho recebiam tratamento diferenciado por parte da jovem Kiorina. Sorriu ao perceber que uma das escadas cedera pela força do fogo derrubando no mar uma dezena de criaturas. Não havia muito mais o que ver nem muito mais a comandar. Melgosh desceu as escadas que iam do tombadilho direto para o interior da cabine. Era hora de combater.

Os silfos tinham dificuldades para derrotar os mortos-vivos, que sobreviviam a uma, duas, três, quatro, cinco ou mais dos golpes de suas espadas leves. Os marujos sílficos eram experientes e capazes de eliminar um inimigo vivo num único golpe, em geral atingindo o coração ou algum outro importante ponto vital. Mas perdiam espaço para os zumbis e carniçais que logo se amontoavam sobre eles rasgando-os com suas garras e dentes furiosos.

Kiorina e Kyle conseguiam eliminar mais uma das escadas, mas não havia espaço para avançar além dali. Kyle protegia Kiorina lutando sem armas contra os inimigos. O foco de concentração permitia que ao atingir um morto-vivo com um golpe, a energia que o mantinha fosse dispersada, mas isso variava com o golpe, sua concentração e a força da criatura. Para um deles, foram necessários dois socos e um chute antes que caísse como um boneco, sem vida. Adiante, visualizavam uma confusão de silfos, marujos dacsinianos e mortos-vivos combatendo. Do mastro principal até a proa da embarcação uma furiosa batalha estava em andamento e parecia que os silfos perdiam espaço a cada instante. Logo se formou uma linha de defesa por cerca de trinta silfos, imediatamente atrás do mastro principal.

Kleon, preocupado com An Lepard abandonou a batalha em busca de um ponto mais alto. Subiu no tombadilho e conseguiu avistar seu capitão dando combate as criaturas próximo à proa. An Lepard atingia os mortos-vivos com seu sabre direto nos olhos procurando perfurar o cérebro, em geral conseguia derrubá-los. Alguns dos silfos que estavam a seu redor, e que possuíam domínio semelhante de suas lâminas, imitavam o dacsiniano com sucesso. Kleon suspirou aliviado, mas logo voltou a ocupar-se com alguns marujos que viu se aproximar. Foram seus ex-companheiros sob o comando de An Lepard. muito próximos a Erles. Kleon lembrou-se de seu grande amigo Georges que morrera pedindo vingança contra os traidores. Uma raiva incomum tomou conta do pequeno katoniano que gritou enquanto partia para o ataque.

Logo abaixo, o gigante Gorum girava uma enorme marreta e tinha uma técnica mais grosseira de livrar-se dos inimigos. O cavaleiro procurava ficar próximo da lateral do navio e arremessava os morto-vivos de volta ao mar com golpes pujantes. Archibald cobria a retaguarda de Gorum e por vários momentos não lhe restava muito a fazer. Logo percebeu que pareciam ainda haver centenas de mortos-vivos no ceifador e que seriam derrotados por sua força bruta. Eles eram combatentes incansáveis e logo todos os silfos e até mesmo o vigoroso Gorum estariam cansados e logo seriam derrotados.

- Gorum, me escuta! - o rapaz teve que gritar.

- O que!? - retrucou o gigante enquanto arremessava outro carniçal no mar. Com um chute empurrou mais um que caiu grunhindo. Estava com um sorriso no rosto. - Isso é divertido! Trabalho de cozinheiro, jogando a carne podre no mar... Mais um! Carne podre no mar...

- Não vai dar! Temos que cortar a cabeça!

- Ei, eu sei... - Agarrou um zumbi esquelético pelo pescoço e ergueu-o acima da cabeça. - ... o que estou fazendo, certo? Cortar a cabeça é mais difícil que simplesmente fazer isso! - Arremessou a criatura no mar. - Nossa! Esse nem tinha o peso de uma criança!

- Não Gorum, não é isso que quis dizer. Estou falando dos necromantes. Temos que...

- Cuidado moleque! Um rapidinho... - Archibald agachou-se enquanto Gorum girou a marreta derrubando mais um carniçal.

Archibald continuou mesmo agachado, - ... temos que eliminar os necromantes que estão no outro navio, vê? Isso que quero dizer com cabeça.

Gorum tirou o sorriso do rosto e franziu o cenho. - Boa observação! Mas como?

Naquele instante, provindo do interior da cabine, um vento frio espalhou-se pelo convés. Um instante depois, Melgosh surgiu e em suas mãos estava a lâmina encantada conhecida como Maré Vermelha.

A batalha parecia perdida, e de fato até o momento pareciam enfrentar apenas a ralé das tropas inimigas. Mas a presença da Maré Vermelha na batalha logo atrairia a atenção dos peixes grandes.

Kiorina escutara as palavras de Archibald e tentou chamar a atenção de Kyle. Ele parecia não ouvir. Kyle aprofundava-se em sua concentração e contava em sua mente a quantidade de inimigos nas proximidades, enquanto combatia um deles, seus olhos liam pequenos sinais do conjunto dos demais e previa seus movimentos. Já sabia o que fazer nos momentos seguintes. E por vezes, como se guiado por uma intuição além de seus sentidos virava-se para atingir um inimigo que espreitava pelas costas. Desistindo de chamar-lhe a atenção, a ruiva correu para perto de Gorum e Archibald.

- Olha só para aquilo! - exclamou Gorum. - Esse garoto lutando é uma espécie de fenômeno!

Kiorina ignorou Gorum e disse, - Certo Archie, escutei o que disse, temos que descer lá agora!

- Calma aí pestinha! - disse Gorum segurando Kiorina na cabeça. - Aquilo lá em baixo parece um formigueiro!

- Vocês dois, cobertura! - Kiorina fechou seus olhos verdes e respirou fundo entrelaçando os dedos e firmando as mãos como se segurasse um ovo grande. Um ponto de luz a calor intenso formou-se no entre as palmas das mãos curvadas. Ao abrir os olhos a ruiva disse, - Vamos ver como vai ficar depois disso! Nnnnaaarrrrrhhhhh!!! - Ao fim do seu grito, Kiorina abriu os dedos entrelaçados tocando os punhos e apontando as palmas das mãos para a área próxima do tombadilho. Uma bola de fogo voou deixando um rastro de fumaça até atingir o convés do ceifador. Uma forte explosão pode ser ouvida e um cogumelo fumegante de fumaça escura e chamas subiu até se desfazer acima da altura do mastro principal da nau capitãnea. Por alguns instantes, os mortos-vivos pareciam agir de forma desarticulada, mas logo voltaram a atacar com a persistência habitual. O convés do ceifador ficou em chamas e numa área de aproximadamente um quinto dele ficou paralisada, sem o movimento constante dos mortos-vivos.

Kiorina caíra de joelhos tomada pelo esforço. Archibald ergue-a pelos braços e perguntou, - Você está bem Kina? - Ela tinha suor cobrindo a face e apenas respondeu com aceno positivo.

Gorum disse, - Bom, parece que agora temos um espacinho para descer lá!

As coisas iam de mal a pior para os silfos que combatiam no meio e na proa do navio, restavam apenas uma dezena de pequenos grupos de três a cinco que se defendia desesperadamente. Os silfos do clã Maki finalmente emergiram do convés inferior. Logo usaram suas capacidades para eliminar alguns oponentes entre os grupos procurando uni-los. Ao mesmo tempo, Melgosh avançava brandindo a Maré Vermelha através do aglomerado, dividindo em duas ou mais partes seus oponentes e deixando-os inertes. Após derrotar alguns oponentes, Kleon havia sido ferido no braço esquerdo e na coxa direita. Não queria ser derrotado ainda e aproveitou a oportunidade para seguir os passos de Melgosh, utilizando seu avanço como uma forma de obter proteção.

Em instantes, Melgosh, Kyle e Kleon estavam lutando lado-a-lado. A Maré Vermelha brilhava e vibrava provocando ventos gelados que se espalhavam por todo convés. Seu corte congelante deixava partes dos inimigos ao redor deles.

Kleon comentou, - Acho que esse é nosso fim!

Melgosh retrucou, - Talvez haja esperança, Kiorina e Archibald...

Kleon deu com os ombros, - Não entendo...

Melgosh disse, - Não importa, fique perto de mim e agüente firme!

A tempestade evocada pela Maré Vermelha crescia célere. As velas da nau capitãnea se estufaram e, devido à diferença de impulsos, os dois navios amarrados foram puxados e em seguida as laterais colidiram, causando fortes impactos, atirando no solo do convés e no mar, humanos, silfos e mortos-vivos de forma indistinta. Uma boa leva de mortos-vivos que subiam pelas escadarias também caiu, sendo que duas destas se romperam no processo.

Gorum segurando-se na lateral do navio, gritava, - Como vamos chegar lá? Não vai dar! - Um dos seis silfos, feiticeiros do clã Maki, saltou do meio da batalha para pousar suavemente ao lado de Gorum, Archibald e Kiorina. - Chamo-me Farzul, irei ajudá-los.

Farzul era velho e tinha cabelos longos, vestia um manto bege e na cabeça uma grossa faixa esverdeada. Tinha grandes brincos com pedras preciosas cravejadas e um largo cinturão de ouro com símbolos místicos. - Segurem em minhas mãos - ordenou.

Sem muito questionar, obedeceram. Um outro salto e em poucos momentos flutuavam como se fossem plumas rumando em direção ao convés do ceifador dos necromantes. Kiorina, Archibald e Gorum sentiram gelar as entranhas durante o vôo. Ao pousarem no convés, sentiram um cheiro de podridão acentuado que passou a incomodar. O Silfo Farzul sorriu e disse, - De fato, fiquei imaginando se conseguiria trazer alguém tão grande quanto o espirituoso Gorum.

Enquanto isso, no convés do navio sílfico, Kleon enxergou sua oportunidade e correu para a proa a fim de encontrar-se com An Lepard. - Capitão! Vamos sair daqui antes que essas coisas voltem a lotar o convés!

- O que sugere? - quis saber Lepard.

- O Estrela do Crepúsculo. Se vamos morrer...

Foi interrompido por Lepard, - Busquemos a vingança!

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