CAPÍTULO 73
Chegar em Porto Baltimore, tinha sido a parte mais fácil. Depois disso, Melgosh teve de gastar algum tempo para convencer a tripulação do navio a aguardar mais um dia até que An Lepard pudesse retornar. Teria de arranjar de uma nova embarcação para Kyle e os demais seguirem viagem. Afastaram-se da costa para evitar o mal estar geral. Os silfos chamavam a costa de Dacs de Tanka Poshooruir, terras amaldiçoadas. Longe da costa, no entanto, era difícil ancorar o navio. Já haviam dito, que se o dacsiniano não retornasse até o dia seguinte, partiriam.
Kiorina sentia apenas resíduos da falta de energias mágicas e praticava alguns truques para não perder a prática. Kyle, como de costume, ficava sozinho procurando meditar. Gorum estava na cabine do navio contando histórias de Lacoresh, a maioria delas, com toques cômicos. O gigante já aprendera até uma coisa ou duas sobre o senso de humor sílfico, o que chegou achar ser inexistente nos tempos que conviveu com o silfo Roubert, anos atrás em Lacoresh. Melgosh e outros oficiais do navio apreciavam as histórias enquanto degustavam licores provenientes de Aurin.
Archibald permanecia no grande tombadilho do navio, observando o mar e os céus. Estava um dia muito bonito e o vento marítimo era bastante agradável. No entanto, o mar sacudia o navio intensamente. Lembra-se com melancolia de Noran de Tisarmir, pois certamente estaria enjoado numa situação destas. Mais cedo, ao observar sua imagem refletida no grande espelho da sala de mapas do navio, percebia o quanto o tom de sua pele havia mudado. Tivera pele muito clara nos tempos do monastério em Lacoresh e agora, sua pele tinha um forte tom bronzeado tal qual dos silfos do mar. Respirava profundamente e sentia que as idéias em sua mente estavam claras. Algo que não acontecia há tempos. Havia acontecido uma grande mudança desde que pisara nas terras de Dacs. Depois de saber de Kiorina sobre a escassez de energias mágicas em Dacs, imaginou se de alguma forma, o feitiço implantado no fundo de sua mente teria sido desfeito. Estaria a salvo de perder o controle de sua mente e atuar como um assassino implacável? Ou se voltasse para as terras de Lacoresh voltaria a cair na influencia da magia negra da qual acreditava ter sido vítima? O que sabia era que havia um alívio profundo em sua alma. Tamanho era, que em uma oração, sentiu vibrar dentro de si as energias numinosas. Recordava-se com carinho de seus companheiros do monastério, como o irmão Meinard e Ourivart. E pensava sobre o fato de ter sangue sílfico. Se fosse mesmo verdade, por que não teria passado mal como todos os outros silfos?
Além de tudo, pensava no misterioso senhor Atir e na conversa que tiveram observando do alto, na praça de Meia-Lua em Kamanesh. Atir chamava a atenção de Archibald para enxergar a realidade sob outros pontos de vista, outros ângulos. E agora que sua mente parecia ter se livrado de um véu, voltava a pensar dentro destas possibilidades. Sabia que An Lepard não preparava boa coisa em Porto Baltimore. Tentava pensar, colocando-se no lugar do marujo dacsiniano. Qual seria seu interesse em ajudar a causa que tinham? O que os ligava a An Lepard, que conheceram apenas como capitão de um navio a transportá-los como passageiros para Dacs? Conhecia tão pouco sobre ele, confiava tão pouco nele. Seria preconceito? Ou teria razão em suas suspeitas? Logo descobririam.
No início da noite, uma sensação incomodava Kyle e Archibald. Kyle, estava na proa, enquanto Archibald, estava no tombadilho orando e pensando. Um calafrio fez com que Archibald escorregasse. Kyle parecia inquieto na parte de baixo e Archibald observou Melgosh saindo da cabine e caminhando em direção ao cavaleiro. Melgosh usava uma capa comprida e bloqueava a visão de Kyle. Conversaram por alguns momentos e em seguida desceram juntos para os níveis inferiores do navio. De que assunto eles estariam tratando? Muitos questionamentos povoavam a mente ativa do ex-monge Naomir.
***
Ora, na mesma noite, na cidade de Porto Baltimore, An Lepard finalmente reencontrava seu irmão, após longa data. Foi um choque para An Lepaul ver seu irmão num estado de total decadência. E mesmo a forte rivalidade que possuíam entre si, ficou de lado por um instante. As injúrias sofridas pelo marujo nas mãos dos silfos do mar eram aparentes. Seu braço direito ficara trêmulo e torto em conseqüência da flechada de Celix. Estava manco e seu semblante estava envelhecido. Para An Lepaul era como ver seu irmão dez anos mais velho.
An Lepard, penetrou o escritório com a cara fechada e disse, – O que está esperando seu velhaco? Pode rir da minha desgraça!
An Lepaul, estava perplexo demais para zombarias e ficou em silêncio por alguns instantes. Era um pouco mais baixo que seu irmão. Vestia-se com roupas nobres e escuras. Por baixo da túnica abotoada com grandes botões prateados com motivos em baixo relevo, vestia uma camisa vermelha com golas altas. Apenas seu rosto estava a vista, pois vestia uma calça comprida de couro com textura característica do gado do sul de Dacs e larga bota da mesma estirpe. As mãos eram cobertas por luvas do mesmo couro escuro adornadas com anéis de metal. Sob a cabeça, uma boina alta de pano fofo e avermelhado, prendia seus cabelos loiros e cacheados que desciam pelas laterais da face, cobrindo-lhe as orelhas. Seus olhos eram verdes, mas maliciosos e seus lábios finos e rosados. Era muito magro e de longe, poderia ser confundido com uma mulher. Presa a cintura, uma espada leve, mas de fino acabamento.
Lepard voltou a falar, – Devo estar com uma aparência péssima pelo que percebo em sua expressão.
An Lepaul ergueu o nariz para falar, – Não que vê-lo em desgraça não me agrade, caro irmão, mas devo confessar que estou duplamente chocado. Em primeiro lugar, soube de uma fonte segura que estaria morto. Depois disso, não fosse por sua maneira peculiar de falar, imagino que não lhe teria reconhecido.
– Fonte segura, não é?
– Pois sim, o próprio Erles disse que... – Mal pode completar a sentença, pois An Lepard furioso atacou seu irmão levando as mãos contra o pescoço erguendo-o pela gola da camisa. – Onde está o desgraçado Lepaul! Diga-me onde está?
Mais uma vez, An Lepaul ficou perplexo. Nunca vira tal fúria nos olhos de seu irmão e sentiu gelar a espinha. Teve certa dificuldade para desvencilhar-se e gritou, – Acalme-se Lepard!
Lepard contorceu a face abaixando o rosto, como se estivesse envergonhado, mas era mais que isso. Era a agonia de ter tido sua vida destroçada. Deu um passo atrás e como costumava, segurou com força o antebraço direito para senti-lo doer no local onde a seta de Celix ficara alojada por dias.
An Lepaul foi até a janela do escritório fez com que essa deslizasse e massageando o pescoço, respirou aliviado. A brisa marítima veio junto com os sons de música e conversa misturada, provindos dos andares inferiores. Estavam na parte mais alta do mais luxuoso bordel de Porto Baltimore, controlado por An Lepaul. Em seguida, abriu a porta de um pequeno armário retirando dele uma garrafa de vinho doce e forte que costumavam tomar durante a juventude. Ao voltar-se para Lepard, percebeu que ele ainda apalpava o antebraço distraído, como se nem estivesse ali.
Convidou-o para sentar e serviu-lhe vinho numa dose generosa. Primeiro, An Lepard contou toda sua história. Desde da traição de Erles, os maus tratos que sofreu nas mãos de Shark e dos tempos que passou entre os silfos. Depois de falar bastante, já bebiam da terceira garrafa e Lepard parecia bastante calmo.
– Vou responder sua pergunta irmão.
– Que pergunta? Eu não perguntei nada, ora!
– Sobre Erles. Sobre seu paradeiro.
Ao escutar o nome do traidor, metade do álcool que estava na mente do marujo pareceu evaporar. – Pois sim!
– Esteve trabalhando para mim. Um tolo, você sabe. Em pouco tempo perdeu o Estrela do Crepúsculo para mim. Não tem o talento para comandar uma embarcação. Mas tive pena dele, algo do que já me arrependo, e emprestei o navio em troca de parte do lucro de suas expedições.
– Não acredito que emprestou o meu navio para aquele diabo!
– O navio era meu, você estava morto, lembra? Enfim, há poucas semanas, chegaram duas embarcações de Lacoresh, com gente muito estranha. Bruxos, como dizem, agora muitos têm medo dos Lacoreses e suas bruxarias. Felizmente nossa terra é protegida contra tais ameaças, você sabe. Os que ainda têm coragem de comercializar com eles, contam muitas coisas sinistras. Como se uma sombra tivesse surgido após a coroação no novo rei. Mas, para quem estou falando essas baboseiras? Você sabe de tudo isso melhor que eu, não é mesmo?
– Deve ser o vinho. Você falava sobre as embarcações de Lacoresh.
– Sim, sim! Os tais bruxos, sujeitos sinistros, estiveram aqui uma noite. As mulheres se recusaram a deixar-se com eles, pois fediam como carniça. Mas demos um jeito nisso, pois eles eram generosos com o ouro. Procuravam por trabalhadores para montagem de um pequeno porto em uma ilha a leste daqui.
– Quanto a Casa Baltimore? O que pensa disso? Estrangeiros fazendo portos tão próximo de nossa costa? Isso é absurdo!
– Concordo, mas parece que o ouro, ou seus argumentos convenceu alguém do alto escalão. Ouvi dizer que desejam expandir relações comerciais e que os portos de Dacs não são apropriados. Para mim, procuram um lugar onde possam operar suas bruxarias. Já alertei a Casa a este respeito, mas parece que o ouro fala mais alto do que a razão, por vezes.
– Então é isso. Erles está trabalhando para eles.
– Sim, mas não se preocupe irmão. Amanhã mesmo iremos até os ouvidores da Casa e contaremos sua história. Assim que voltar, Erles será preso e julgado e você poderá ter de volta seu navio.
– Onde fica a tal ilha?
– Eu sinto o desejo de vingança em seus olhos Lepard. Lembra-se do que ocorreu com nosso pai? Deixe que a justiça seja feita pelas leis. Não seja tolo de buscar sangue e vingança.
– Onde fica a maldita ilha Lepaul!
– Escute, você só vai chafurdar ainda mais nessa lama em que está. Deixe Erles comigo, ele vai ter o que merece.
– Eu preciso do navio, Lepaul, pois devo uma para os Lacoreses. Devo o resto de minha vida miserável a eles. Preciso ajudá-los a lutar contra a sombra que dominou seus lares.
– Não faça isso irmão, se não for por mim, que seja por Claudine.
– Claudine? Que absurdo! Não coloque Claudine no meio dessa história!
– Ela já está irmão.
An Lepard parecia realmente intrigado. – O que quer dizer?
– No passado, trocamos desejos. Eu desejava sua amante, você desejava o navio de nosso pai. Fizemos uma troca e você partiu lhe o coração. Deu-me oportunidade para que eu pudesse conquistá-la. Mesmo assim, quando chegaram notícias de sua morte, a luz de seus olhos se apagou. Tornou-se calada e distante. Foi então que percebi que ela não gostava de fato de mim. Talvez enxergasse em mim algo do que você não pode dar para ela. Não sei. Mas agora que você voltou, se você se for de novo...
– É simples, não conte para ela que estou vivo.
– Não tem jeito, acho que ela já está sabendo, na realidade, acho que muitos estão sabendo.
– Outro absurdo! Você se casou com ela. Como pode me dizer esse tipo de coisas? O que pretende com isso?
– Desfizemos o casamento. Você sabe como eu sou. Ela envelheceu, mesmo que pouco. E aqui, há tantas mulheres, jovens e belas todas a meu serviço. Como supõe que eu possa lhe ser fiel? Nosso casamento talvez não tenha durado um ano. Também, não nos suportamos. Mas, mesmo depois do fim, eu tenho lhe oferecido compensações. Ela não vive mal, mas esperava sua volta a todo o momento. E quando chegaram as notícias de sua morte... – An Lepaul abaixou a vista.
– Entendo.
– Pois então, eu tenho certeza, ela vai querer cuidar de você, não importa seu estado. Não se arrisque numa vingança desmedida. Depois de tudo, você ainda pode ter uma vida tranqüila por aqui, ou no mar, conforme seu desejo.
– Quem sabe? Mas vamos ao que interessa. Onde ele está? Pare de tentar me proteger! Se não me contar, eu irei descobrir de qualquer jeito!
Lepaul franziu o cenho mostrando irritação e disse, – Certo seu cabeça dura! Se quiser vingança, vingança terá!
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