CAPÍTULO 71

Kyle tinha dificuldades em entender a organização do império de Dacs. Para começar, em Lacoresh, ouvira diversas referências a Dacs como sendo um reino. Mas não havia rei. Agora Kleon explicava que era na verdade um império. No entanto, o mesmo império não era governado pelo imperador. O imperador até existia, mas governava apenas uma cidade, a capital de Dacs, Rhodón. Todo restante era governado de forma independente pelas casas comercias de Dacs, que eram cinco. Havia tradições imperiais que vigoravam entre todas as casas, entre elas, a proibição de religiões e templos, fato que deixava Archibald muito intrigado.

Kiorina por sua vez, percebia na medida em que se aproximavam da costa dacsiniana, mudanças nos fluxos de energia. Sua capacidade mágica parecia enfraquecer rapidamente. Para confirmar, tentou gerar uma chama magicamente. O resultado foi bem pior que imaginava, teve muita dificuldade e o resultado final não foi superior à chama de uma vela. Era a primeira vez que tinha contato com uma região pobre em energias mágicas. De fato, havia lido sobre o assunto em diversos livros. Lera que seres cujas origens estão ligadas às energias mágicas poderiam sentir-se fracos, adoecer e até morrer em caso de permanecerem em regiões pobres em energia mágica.

A tripulação sílfica do navio não tardou a reclamar sobre mal estares, tonteiras e enjôo. Nenhuma novidade para eles que já sabiam do efeito que a proximidade com as terras dacsianas costumavam provocar nos silfos.

A cidade em cujo porto desembarcavam chamava-se Eril, pertencente à casa comercial Alexandra. A nau capitania dos Silfos não tinha porte para atracar no porto de Eril, portanto, o desembarque se deu através de três botes. A presença da nau capitânea dos silfos na costa chamou atenção, e quando os botes desembarcavam havia muitos curiosos, assim como autoridades locais.

Kleon contava a Kyle bastante sobre Dacs, mas o cavaleiro parecia preocupado com outro assunto. A pequena Lila, criaturinha que encontrara no palácio imperial dos silfos do mar, parecia sentir enjôos assim como os silfos. Logo, disse que não conseguia mais ficar voando, tão pouco, manter-se invisível. Pediu ajuda para Kyle. Arranjou um local em sua mochila acomodou-a.

Ao descerem no atracadouro, procederam conforme as orientações de An Lepard. Deixaram toda a fala para ele e Kleon. O dacsiniano vestia uma capa grossa com capuz e por baixo usava uma faixa que cobria parte do rosto. Aproveitando a fato de mancar naturalmente, fazia passar-se por uma pessoa de idade. Como Lepard tinha inimigos em Dacs que acreditavam que havia sido morto nas mãos dos silfos do mar, não era prudente anunciar sua presença. Precisavam agir com cautela. Lepard fazia o papel de guia dos estrangeiros Lacoreses em uma viagem rumo à cidade-estado de Tchilla, na terra dos nove vales.

Depois de trocadas algumas informações com as autoridades locais e o pagamento de algumas taxas, puderam seguir para além do atracadouro. An Lepard conhecia um lugar onde poderiam planejar a viagem que tinham a diante. Caminhando em direção à estalagem, o marujo se deu conta de que finalmente estava de volta a sua terra natal. Algo que chegou julgar impossível em tempos recentes. Assim que caiu nas mãos do silfo Shark, traído por seu imediato Erles, imaginava que morreria pelas mãos dos silfos e nunca mais veria suas terras, sua família. Ao pensar na família, desejou um pouquinho estar entre os silfos novamente, não sabia mais o que seria pior. Enquanto Lepard divagava ao andar pelas ruas pacatas de Eril, os Lacoreses voltavam seus olhares curiosos para os detalhes da cidade e de seu povo.

Cochichavam entre si, apontando para as construções e comentando sobre as pessoas.

Kiorina estava boquiaberta com o que via, – Nossa Kyle, você viu o vestido daquela mulher? Parece que vai a um baile, ou algo assim.

Kyle torceu os lábios, julgando fútil o tipo de comentário da ruiva e soltou apenas um monossílabo gutural. Archibald tomou seu lugar na resposta, – É mesmo Kiorina, muitas pessoas por aqui parecem vestir-se de maneira sofisticada. Observe como muitos usam chapéus.

Alguns dos passantes pareciam olhar os estrangeiros Lacoreses com desdém. Kiorina animou-se com a conversa e retrucou, – Aliás, chapéus horrorosos! Olha o chapéu daquele homem, com tantas penas coloridas parece até um chapéu de mulher. Nem eu mesma usaria. E o tamanho do chapéu daquela mulher? Mais parece um guarda sol!.

Kleon intrometeu-se, – Como vocês podem ver, nem todos estão tão bem vestidos assim. – Indicou com um sinal um grupo de pessoas próximas a um arco de madeira, em frente a uma casa de três pisos. Eram pessoas de aparência pobre, vestidos com roupas simples e sujas.

Gorum, que caminhava atrás de Kyle, estava animado com os ares da cidade. Estava especialmente impressionado com as construções. Haviam diversas casas com sobrados altos, de três e quatro pisos. Alturas em Lacoresh só alcançadas em castelos, templos e construções maiores. Em geral as construções comuns das cidades do reino de Lacoresh eram de um ou dois pavimentos. Além das edificações, estranhava o fato dos guardas locais não usarem nenhum tipo de armaduras. Aliás, havia praticamente ausência de armaduras e escudos em toda a parte. Parecia que o povo de Dacs não possuía uma tradição militar forte como a de Lacoresh e reinos vizinhos como Homenase. Porém, era notável o número de homens portando espadas finas e longas como as de An Lepard, meros brinquedos aos olhos de Gorum.

Enquanto Kiorina e Archibald debatiam a respeito das pessoas, Gorum chamou a atenção de Kyle, – Ei garoto, percebeu que tem dois guardas nos seguindo desde que deixamos o porto?

– Sim, mas parece que não fazem questão de se esconder.

Gorum coçou sua barba e concordou, – Percebi isso, acho que querem deixar claro que estamos sendo vigiados. Além do mais, não são nada discretos usando aqueles uniformes vermelhos. Na verdade, estamos sendo seguidos por dois tomates com pernas, e narigões muito feios. – deu um tapa nas costas de Kyle, para enfatizar sua piada, mas o tapa atingiu a mochila, deixando Kyle preocupado.

Kyle repreendeu Gorum e nem sequer sorriu para sua piada. Gorum gargalhou e disse, – Garoto você nunca muda! Devia aprender a rir para variar.

Enquanto isso, o jovem cavaleiro conferiu o conteúdo de sua mochila, nela viu que a pequenina Lila parecia dormir em posição fetal e ainda estava intacta. Gorum, por sorte batera no outro lado da mochila.

– O que foi garoto, tem alguma coisa de quebrar aí na sua mochila.

Kyle respondeu ríspido, – Tem!.

– Foi mal, eu não sabia... Pode deixar que, da próxima vez, darei um chute na sua... – Foi interrompido por An Lepard que os chamou: – É aqui. Chegamos!

A estalagem era pequena e movimentada. Havia uma escada estreita que levava ao segundo andar. No meio da subida, o teto baixo dava dificuldades a Gorum. Chegou a bater a cabeça uma vez. Reagiu de forma teatral e Kyle imaginou que se tratava de uma piada. Batera a cabeça de propósito apenas para provocar risadas. Archibald, Kleon e Kiorina se divertiram, enquanto Kyle e An Lepard pareciam bem sérios.

Havia uma mesa no canto na qual se posicionaram. Muitos dacsisnianos ficaram de olho neles e em suas características de estrangeiros. Kiorina sentia-se um pouco mal e oprimida. Sentia que havia muitos olhos voltados para ela. Logo procurou ajustar as roupas, cobrindo mais seu corpo. Percebera que as mulheres de Dacs usavam muito mais roupa que as lacoresas.

Kleon pediu bebidas enquanto Lepard interpretava seu papel de guia e ancião. Próximo à janela, aves marítimas pousavam e levantavam vôo com freqüência. As pessoas que ali comiam costumavam jogar restos de comida pelas janelas. Estes não duravam por muito tempo sobre as telhas adjacentes.

– E então, o que faremos agora? – indagou Archibald.

An Lepard tinha um olhar distante e disse, – Teremos de esperar um pouco. Já sabem que nós precisaremos de uma embarcação para prosseguir viagem.

– Não seria melhor procurar um navio, ao invés de ficar aqui esperando? – sugeriu Kyle, um pouco impaciente.

– Não. É melhor ver se há alguém interessado em oferecer serviços.

– Não estou entendendo o propósito disto... Tão pouco estou gostando. – revelou Kyle procurando por aprovação dos outros presentes.

– Olha vocês vão ter que confiar em mim, não vai ter outro jeito.

Kiorina estava um pouco preocupada. Percebia a impaciência e desconfiança de Kyle e Archibald em relação ao dacsiniano. – Lepard, por que não nos explica melhor a situação. Tenho certeza que todos ficarão mais calmos com maiores esclarecimentos.

– Tudo bem, ruiva. Não acho seguro contratarmos uma embarcação para nossa jornada aqui em Eril. Os navegadores da casa Alexandra não são confiáveis. E será difícil convencer pessoas dessa região a nos levarem até Tchilla.

– Por quê? – Quis saber Gorum, franzindo o cenho e puxando os fios de sua barba hirsuta e grisalha.

– É difícil explicar para vocês as sutis relações entre as casas nobres de Dacs. Digamos que será mais fácil conseguirmos o que queremos indo à casa dos Baltimore, ou mesmo até os Elenoir.

– Continuo sem entender. – insistiu Kyle, controlando a impaciência.

Lepard coçou a cabeça por cima do capuz e disse, – Acho que devemos ir até a cidade de Porto Baltimore, onde imagino que poderei contactar meu irmão.

– Seu irmão? – inquiriu Archibald. – Como nunca nos falou sobre seu irmão?

– Família é um assunto delicado para mim. Mas Kiorina pode lhes provar, já lhe falei muito sobre meu irmão, não é mesmo?

– Sim, é verdade – confirmou a feiticeira.

– Pois sim, escutem. – O sotaque de An Lepard parecia acentuar-se mais, apenas pelo fato de ter retornado à sua terra natal. – Meu irmão tem em sua posse, documentos com os quais poderei reivindicar, junto a casa Baltimore, um navio para usarmos de acordo com nossa vontade. Se conseguirmos um navio concedido para nosso uso, termos grandes vantagens em relação à contratação de uma embarcação.

Kyle balançava a cabeça. Não se sentia confortável tendo seu destino e de seus companheiros sendo manipulados por An Lepard. Apesar de tudo que passaram juntos, o cavaleiro não conseguia gostar e confiar no dacsiniano.

Enquanto conversavam, foram servidas bebidas e refeições. Os mariscos e peixes ensopados, com temperos que desconheciam eram muito saborosos. Todos apreciaram bastante, exceto Kiorina, que detestava catar espinhas de peixe. Se pudesse faria um encanto para procurar separar as espinhas, mas estava totalmente drenada de suas capacidades. Sentia até mesmo, uma leve fraqueza só de pensar em realizar encantos. “Puxa vida!” Pensava ao comer. “Que terrível a vida desse povo deve ser sem magias para facilitar um pouco a vida!”.

Para uma estalagem pequena, e para padrões Lacoreses, havia um alto grau de sofisticação nas comidas oferecidas. Algo que deixou Gorum, particularmente admirado. Enquanto comiam, Lepard levantou-se e providenciou junto ao estalajadeiro, hospedagem para todos. Passariam a noite ali, até negociarem uma viagem até Porto Baltimore.

Logo que Lepard saiu, a ruiva lembrou-se de algo que queria comentar com todos. – Quase me esquecia! Fiquei de conversar com vocês todos a respeito das pistas que consegui com a princesa Aeycha sobre o paradeiro do Oráculo de Shimitsu.

– Sério!? – Archibald, exaltou-se. – Puxa, como não falou conosco sobre isso antes Kina?

Kiorina sorriu sem graça e disse, – Acho que esperava uma oportunidade como esta. Na verdade, acho que tinha medo de ter certas conversas enquanto ainda estávamos em meio aos Silfos.

Kyle parou de comer e encarou Archibald, e seus olhos questionavam pensativos. “Será que Kiorina também não confiava em An Lepard?”

Kiorina prosseguiu, – Tivemos a oportunidade de consultar a biblioteca imperial a procura de livros e pergaminhos antigos. Puxa, como havia pouca coisa a respeito de Shimitsu. Parecia uma divindade adorada especialmente pelos povos humanos, mas entre os silfos, muito pouco popular. Enfim achamos um pergaminho que narrava as viagens do fundador do clã Orb, dos silfos do mar. Um silfo chamado Phelio Damantisque Orb.

Gorum estava intrigado. – Engraçado... Ficamos tanto tempo entre os Orb. Melgosh, os silfos do povoado em que ficamos, Zil, entre outros tantos. Nunca nos falaram deste tal Phelio. Como não ter ouvido sobre alguém que teria sido tão importante?.

Archibald respirou fundo. A fala de Gorum trouxe às suas memórias uma visão de sua Mishtra. E enormes saudades apertaram em seu peito. – Escutem. – interrompeu Archibald. – Não devemos viajar para Porto Baltimore com dacsinianos. Acho melhor, negociarmos isto com os Silfos. Ainda estarão próximos a Eril, por causa dos suprimentos. Acho que devemos ir ao porto e verificar essa possibilidade logo pela manhã.

Gorum concordou com um aceno e Kyle colocou. – Estamos decididos!.

– Peço desculpas amigos, mas não deveríamos confiar nos planos de viagem de An Lepard? Afinal, é ele quem conhece bem essa região.

Archibald encarou o katoriano e disse, – Olha Kleon, concordo em parte, mas essa história está mal contada. Se vamos conseguir uma embarcação para irmos até Tchilla em Porto Baltimore, vamos aproveitar para chegar lá o mais rápido possível com a nau dos Silfos.

– Ei pessoal! – exclamou kiorina. – Estão se esquecendo que falava aqui sobre o oráculo?

Archibald disse, – Verdade, me desculpe. Foi algo que me tomou de súbito.

– Pois então. Phelio Orb teria viajado durante sua juventude em busca de respostas para seu povo. Isso teria acontecido logo após a guerra de milênios, há mais de três mil anos atrás.

– Tanto tempo? – Kleon estava admirado. – Acho que nem consigo entender o que significam três mil anos.

– Parece que após a guerra, o povo sílfico quase fora exterminado. Uns poucos bandos viajavam pelos oceanos em busca de um novo lar. Durante a guerra, cresceu a lenda do oráculo, que foi enviado por Shimitsu para ajudar os povos a descobrir seus caminhos tendo em si os conhecimentos perdidos das grandes civilizações que viveram antes da era maldita.

Kyle estava impaciente com tanta história. – Dá para chegar logo na parte que interessa? Os escritos dizem ou não onde está exatamente o tal oráculo?

– Esse é o problema. Parece que o oráculo não fica em um local exato. Mas costuma aparecer em vários lugares. Pelos escritos, Phelio teria viajado por mais de quatrocentos anos em busca do oráculo. No processo, descobriu que a cada aparição deixava pistas sobre sua nova morada. De alguma forma, o oráculo também parece estar ligado aos reinos bárbaros.

– Não temos quatrocentos anos! – disse Kyle irritado. – Nosso lar está sendo destruído e pervertido por aqueles malditos bruxos neste instante. Dia após dia, a esperança diminui para nossos conterrâneos!

– É verdade. – concordou Archibald com um aceno. – An Lepard nos deve explicações. Essa história precisa de esclarecimentos.

Kleon disse, – Por favor, tenham paciência com o capitão. Ele está passando por uma terrível pressão.

– E quem o está pressionando? – Gorum quis saber.

– Não tenho certeza, mas parece que se descobrirem que está vivo, ele e todos nós estaríamos em grande perigo.

– Se este é o caso, devemos deixar que ele siga seu caminho. Não queremos que nos coloque em risco.

– Vocês não entendem? Ele está tentando ajudar.

Logo todos ficaram em silêncio. Observavam o marujo dacsiniano aproximar-se.

– Vejo que sentiram minha falta! – brincou An Lepard. Sorriu para todos e disse, – Infelizmente minhas suspeitas se provaram verdadeiras. Estamos com problemas. Os bruxos Lacoreses estão em Dacs.

Gorum sorriu, – Mesmo? Talvez seja uma ótima oportunidade para acabarmos com eles.

– Como assim, quis saber Kyle?

– Pergunte a Kiorina.

Kiorina balançou a cabeça, captando os pensamentos de Gorum. – Estarão vulneráveis, incapazes de operar sua magia negra.

Gorum pegou no braço de An Lepard. – Lepard, Archibald acha que devemos ir para Porto Baltimore no navio dos Silfos, o que acha?

– Não sei. Pensava em chamar pouca atenção. Mas suponho que talvez não possamos ocultar nossa presença. Pensava até em viajarmos por terra, mas talvez seja mais importante chegar em Porto Baltimore o mais rápido possível.

– Concordamos pela primeira vez. – disse Kyle. – Está decidido!

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