CAPÍTULO 69
Novamente o mar aberto. Os tons azuis eram generosos, no céu e nas águas. A brisa marítima era acolhedora. Apesar de todas as dificuldades passadas, um dia tão ensolarado, uma brisa tão generosa, o mar de beleza intensa, regenerava as mentes dos passageiros do mais grandioso navio sílfico. A nau capitãnea do império sílfico era obra da engenharia marítima aliada aos refinados conhecimentos mágicos do clã dos Maki. Melgosh como amigo pessoal dos Lacoreses, conseguira permissão para conduzir o navio sílfico até as imediações de Dacs. Os Lacoreses não sabiam, mas parecia que estava nos planos dos silfos do clã Orb ficar de olho em sua busca ao oráculo de Shimitsu.
Na proa, An Lepard tateava o braço esquerdo, sentindo as cicatrizes das torturas sofridas nas mãos de Shark. Pensava sobre o quanto havia mudado depois dos últimos meses entre os silfos do mar e os viajantes lacoreses. A perspectiva de, logo mais, chegarem às terras de Dacs trazia à sua mente imagens vívidas de seu passado. Sua trajetória até tornar-se capitão de um navio. E com isso, memórias sobre seu imediato Erles, que traíra a todos, que o entregou ao vil Shark. Que trouxe cicatrizes, amarguras profundas e fez com que perdesse o amor da bela e jovem Kiorina de Lars.
Às vezes observá-la, era como olhar para o mar. No momento, estava linda. Seus cabelos ruivos eram jogados pelo vento e brilhavam intensamente sob o sol forte. Usava um belo vestido sílfico branco e conversava com Kyle e Archibald, no outro lado do convés. Como olhar muito para ela machucava seu coração desviou seu olhar para o tombadilho, percebendo que o grupo de tripulantes do navio ao redor de Gorum aumentara. Já escutavam suas histórias há horas.
Sentiu um forte calafrio percorrer sua espinha, e logo seu braço começou a tremer. Da mesma forma que acontecia todas as noites, pesadelos, calafrios e tremedeiras. Mais uma vez pensou em entregar sua vida para o mar. Que sentido fazia viver? Mesmo quando achou ter tomado sua vingança de Shark, ele foi trazido de volta. Odiava os necromantes, tanto quanto Kyle. Aprendeu a gostar dos lacoreses através dos inimigos em comum que compartilhavam.
Surpreendeu-se com as mãos molhadas que seguraram a borda-falsa do navio atrás de si. Em seguida encarou o sorriso enigmático de Kleon, encharcado com a água do mar.
– Bom dia, capitão.
– Olá Kleon.
O pequeno e magro katoriano balançou-se como um animal espalhando água ao seu redor. Seus cabelos ruivos encaracolados haviam crescido um pouco, com mechas caindo-lhe sobre a face sardenta.
– Logo estaremos de volta em Dacs, não é mesmo?
– Pensei que estava lá em cima escutando as histórias de Gorum.
– Sim, mas já escutei-as muitas vezes... – Ficou sério e disse, – Ele me lembra do Georges.
An Lepard ficou sério e calado.
– Vamos atender o último pedido de Georges, não é mesmo capitão?
– Capitão, é aquele que comanda um navio.
– Sabe que pouco me importo para navios. Eu lhe devo muito e sempre poderá contar com minha lealdade, capitão.
– É bom saber disso.
– E a ruiva? – indicou Kleon.
– Devo deixá-la seguir seu caminho. É um caso perdido.
– Se depender daquele molenga do Kyle, ela vai continuar solitária.
O dacsiniano bateu com a bota contra o convés. – Não adianta. Sou um inválido, meu corpo não é mais o mesmo.
– Capitão, o problema não está no corpo, mas sim na cabeça. Tenho certeza de que depois de acertarmos as contas com Erles, Celix e toda aquela corja, o senhor irá sentir-se aliviado. E com isso, seu coração poderá buscar novamente a felicidade.
– Não é bem isso, Kleon. Ela me fez entender algo que nunca entendera. Ela partiu meu coração, isso nunca havia acontecido comigo. E depois disso, não consigo parar de pensar nas tantas moças com quem fiz o mesmo.
– Sim, eu me lembro.
– O lugar dela não é ao meu lado. Tenho alguém com quem preciso resgatar dívidas.
– Não é quem estou pensado...
– Sim, ela mesmo.
– Será que ela sabe?
– Meu irmão é um traste, assim como eu, mas fizemos um trato. Ele nunca deveria contar para ela que a troquei pelo Estrela do Crepúsculo.
– Ouvi dizer que An Lepaul casou-se com ela.
– Estou sabendo, por isso sei que pelo menos está recebendo o tratamento que merece.
– E quanto a eles? Será que nos ajudarão, se necessário?
– Não tenho certeza. Não gosto muito deste Kyle, muito menos o tal Archibald.
– Andei observando Kyle ultimamente. Acho seu comportamento muito estranho.
– O que quer dizer?
– Não sei, já vi ele conversando sozinho mais de uma vez.
– As vezes eu falo comigo mesmo, todos fazem, isso é normal Kleon.
– Não capitão, não estou falando disso. Ele fala sozinho por horas, mas como se estivesse conversando com alguém.
– Será que conversa com alguém por meios mágicos?
– Apostei nisso, tenho quase certeza.
– Com que freqüência isso ocorre?
– Que pude ver, quase todos os dias.
– Não estou gostando dessa história Kleon. Não estou gostando nada dessa história. Não quero saber de outro traidor... Se for mesmo um deles, vou abrir seu bucho e dançar sobre suas vísceras. – Naquele momento, os olhares de An Lepard e Kyle se cruzaram.
– Não gosto da forma que An Lepard olha para mim.
Archibald disse, – Concordo Kyle, até parece que estão tramando alguma coisa.
– Ai vocês dois! – exclamou Kiorina. – Dá para vocês pararem de pegar no pé do An Lepard? Ele sofreu muito, mas está do nosso lado, ora bolas!
Kyle fechou a cara. Detestava quando Kiorina defendia An Lepard.
Archibald estava inquieto e disse, – Tenho um péssimo pressentimento a este respeito. Ter An Lepard como nosso guia numa nação que da qual nada conhecemos...
– Podem parar vocês dois! Deixem de bobagens.
Kyle voltou o canto dos olhos para An Lepard e sorriu. – Tudo bem Kiorina. De qualquer forma, tenho meus meios para descobrir se estão tramando algo.
Kiorina torceu os lábios, percebendo o tom malicioso e raro, tratando-se do cavaleiro. – Que história é essa Kyle? Meios? De que está falando afinal, pode explicar-se? – Exigiu saber a ruiva.
Ele estava irritado, mas controlava-se para não alterar o tom de voz, – Escuta aqui Kiorina, você tem que aprender que não pode ter tudo o que quer. Isso é uma coisa minha e não vou te contar nada.
Archibald estranhava um pouco o comportamento de Kyle e refletia sobre como seu comportamento havia mudado, desde a morte de Noran. E recentemente, depois do confronto no palácio imperial dos silfos, havia mudado mais ainda.
Mas Kiorina não queria se conter e disse quase gritando, – Então é assim!? Por que não fiquei cuidando de Mishtra?
– Boa pergunta! Eu não chamei você. Para falar a verdade, preferia que tivesse ficado! Assim não estaríamos perdendo tempo com essa discussão!
Nisso, An Lepard aproximava-se seguido de Kleon. – Algum problema Kiorina? – intrometeu-se o marujo, educadamente.
– Ninguém te chamou aqui cara! – cuspiu Kyle.
– Temo não ter lhe dirigido a palavra Blackwing. – retrucou calmamente o dacsiniano.
Kiorina respondeu, – Não é nada demais, Lepard, é que o Kyle às vezes se comporta como um idiota!
An Lepard sorriu sarcasticamente, e tomou a mão direita da ruiva. – Então é o de sempre, devia imaginar... Por favor, venha comigo. Que Blackwing tenha um tempo para refletir sobre suas maneiras. – An Lepard curvou-se, secretamente desejando ser alvejado por um soco de Kyle, e após o cumprimento, levou Kiorina dali.
Ao mesmo tempo, Kyle engoliu a bile amarga fixando seu olhar irado sobre An Lepard.
Kleon olhou para Archibald e ergueu as sobrancelhas. Deu com os ombros e seguiu seu capitão.
Archibald hesitou antes de fazer comentários com o amigo, – Kyle, meu velho, você tem estado nervoso, acho melhor tomarmos alguma coisa para...
– Corta essa Archibald, você sabe que esse An Lepard é um porcaria.
– Amigo, você sabe de minha opinião sobre esse idiota. Ele só age assim para tirar sarro da sua cara. E você acaba caindo... Mas eu estava falando mesmo é da Kiorina. Tem sido difícil para ela...
– Não tenho culpa se ela fica toda afetada assim, sem mais nem menos!
Archibald colocou as mãos sobre os ombros de Kyle. – Você sabe que não é bem assim... Além do mais, tem alguma coisa esquisita com você. Olha Kyle, sou seu melhor amigo. Pode se abrir comigo. Eu sei que tem alguma coisa que está guardando.
– Você está certo, mas prometi não contar a ninguém.
– Contar o que?
– Você vai ter que confiar em mim. Você confia em mim, não é mesmo? Isto é, depois de tudo que já passamos...
– Kyle, olhe nos meus olhos. Lembra das coisas estranhas que estavam acontecendo comigo em Lacoresh? Quando eu entrava naqueles transes e matava as pessoas?
– Sim, me lembro, mas já passou, não é Archie?
– Sim, passou. Mas é disso que estou falando. Eu não sou mais capaz de confiar em mim mesmo... E se algo assim acontecer com você? Eu temo que você passe pelo que passei...
Kyle abaixou os olhos e ficou pensativo. Repirou fundo e disse, – Agora sei do que está falando. Eu vou te contar, mas não posso contar tudo. Prometi não contar. Vou tentar contar o máximo sem quebrar minha promessa.
Archibald indicou um local para sentarem e disse, – Certo amigo, estou escutando.
Kyle conversava baixinho, – Depois da luta contra os silfos negros no interior do palácio, aconteceu uma coisa muito estranha. Algo de errado durante a luta entre Zoros e Lévoro que fez com que conhecesse alguém.
– Alguém, como asssim? Durante a luta?
– Não, foi depois que Zoros e Lévoro sumiram. Estava tudo muito confuso, eu havia sido derrubado pelo conselheiro Alderic, mas não estava totalmente inconsciente, escutava algumas coisas e via algumas imagens. O fato é que conheci alguém que tem me ajudado. E prometi não contar sobre o assunto.
– Entendo mas...
– Não se preocupe Archie, ela está do nosso lado, vai nos ajudar. Já me ajudou. Eu confiaria minha vida a ela.
– E você não pode contar sobre ela para ninguém, estou certo?
– Sim, foi nosso trato.
– E se você pedisse para contar tudo para mim. Afinal, sou seu melhor amigo.
– Bem pode ser. Vou conversar com ela, e se ela concordar...
– Confesso que estou um pouco aliviado. Sei como é ruim guardar um segredo. Imagino que você tem estado um pouco nervoso por causa disso também.
– Acho que sim, de qualquer forma, continuo muito preocupado com nossa segurança em Dacs... Não consigo confiar em An Lepard.
– Vamos discutir um pouco a este respeito.
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