CAPÍTULO 67

Kyle, Kiorina e Gorum nunca imaginariam o estranho rumo que tomava suas vidas. Longe de suas terras, envolvidos em múltiplos conflitos dos silfos do mar, estavam prestes mais uma vez a conhecer novas terras, novas realidades.

O namzu, feriado sílfico, no qual muito sangue foi derramado, dificilmente seria esquecido pelos viajantes, assim como os silfos dos cinco clãs. Diversas batalhas ocorreram concomitantemente. Nas antigas catacumbas, os estrangeiros foram expostos ao desafio de Elluan. Na arena, nas arquibancadas, camarotes e interior do palácio sangue foi derramado. Vidas foram perdidas.

Os acontecimentos fizeram discussões acaloradas surgirem no conselho dos cinco clãs. Uma grande mudança política estava por acontecer. Mudanças enraizadas que há muito tempo precisavam de um acontecimento sangrento para serem desencadeadas. Como dizia um velho ditado sílfico: “Com as grandes mudanças vêm os rios de sangue”. Tendo encarado a morte e agradecido aos estrangeiros, por lhe terem salvado a vida, o imperador, sujeito passivo e desligado da política, passou a participar e interferir nas discussões do conselho.

A gratidão do imperador veio na forma de homenagens e condecorações oferecidas aos estrangeiros Lacoreses. As ações bem sucedidas do conselheiro Zil para evitar o golpe fizeram que o prestígio e influência do pequeno clã Orb aumentasse. A antiga discussão sobre a abolição da escravatura ressurgiu com força.

O clã dos Farmin, maior produtor e comerciante de bens dos silfos do mar sofria uma importante cisão ideológica. Jovens e progressistas, acreditavam na ampliação das atividades comerciais, acreditavam em abrir mão de escravos para conquistar a hegemonia do comércio marítimo entre os povos de todo o mundo. Acreditavam que no longo prazo, com domínio econômico, trariam de volta a antiga glória do Império Sílfico. Seriam novamente, o povo mais influente e poderoso da Terra das Nove Luas.

Por outro lado, os conservadores acreditavam que a economia não funcionaria sem a força de trabalho escravo. Além disso, muitos eram demasiadamente preconceituosos em relação aos povos humanos, que constituíam a maioria dos reinos dos três continentes.

Para Kyle, pouco importava as diversas discussões políticas dos silfos. Aguardava apenas a chegada de Archibald e Melgosh, de sua casa na ilha de Shind. Era para ser uma viagem rápida, de uma semana sílfica, porém já havia partido há mais de quinze dias.

A atuação de Kyle e Melgosh, no dia do desafio, ocorreu nos bastidores, no entanto, a atuação de Kiorina e Archibald, próximos ao imperador foi notória. Kiorina recebera condecorações públicas e tornou-se uma espécie de celebridade em Nish. Ficaram sob os cuidados do conselheiro Zil em sua mansão na parte alta da cidade. Em uma ocasião em que Kyle acompanhou Kiorina numa visita ao palácio imperial, Kyle deparou-se com o oponente que o derrotara dias antes, o conselheiro Alderic. O lacorês sentiu grande apreensão. Lutara contra o próprio conselheiro do clã Hiokar. E durante o encontro, na presença de princesa Aeycha, o conselheiro encarou o rapaz durante todo tempo. Mais tarde, Kiorina e Aeycha discutiram assuntos em particular enquanto Kyle teve a oportunidade de trocar algumas palavras com Alderic.

– É um jovem de sorte, humano.– Alderic disse ardiloso.

– Não acredito na sorte. – respondeu Kyle secamente.

– Sorte a sua que logo partirão. Não acredito que sobreviveria muito se ficasse por aqui. – ameaçou Alderic com olhar fixo e frio.

– Quem sabe a sorte então não é sua? – Kyle encarava-o com fúria velada.

– Se pensa que a sua atuação junto aos Orb ficará sem uma resposta...

Kyle interrompeu lhe, aumentando o tom de voz. – Com todo respeito, conselheiro. Não lhe interessa o que penso.

– Eu poderia lhe ensinar muito, humano. Inclusive sobre boas maneiras.

– Há algum propósito em nossa conversação? O que deseja? – Kyle estava prestes a perder seu autocontrole e dava sinais disso.

– Vocês humanos por vezes são tão diretos... Mas sempre tolos. Como seus rivais, aqueles bruxos necromantes de segunda categoria.

Vendo oportunidade de chacotear de Alderic, Kyle voltou a ficar calmo e disse, – Então é por isso que vocês estão se aliando aos necromantes? Para aprender um pouco, talvez?

– Suas tentativas de me perturbar são inócuas. Mal sabe que os necromantes não passam de peões em nossas mãos.

– Está dizendo que vocês, daqui do arquipélago, tem algo a ver com o golpe dos necromantes em Lacoresh?

Alderic apenas sorriu. Kyle tremeu e irritado deu sinais de que atacaria Alderic.

– Nem pense numa bobagem dessa, rapaz. Seu pai sucumbiu por causa de uma ação semelhante.

– Meu pai? O que sabe sobre meu pai?

– Seu ponto fraco não é rapaz? Acha que saberia tão pouco sobre meus inimigos?

Kyle encarou-o confuso.

Alderic voltou a sorrir. Deu-lhe um tapinha nas costas e saiu. Antes de deixar a sala, voltou-se para Kyle e disse, – Pense bem. Não há nada que você, sua nação ou qualquer exército desse mundo poderá fazer para opor-se a nossos planos. Por que resistir ao inevitável? Pense bem em quem serão seus aliados no futuro. Você tem potencial, assim como seu pai antes de você. Alie-se aos vencedores e viverá, mantenha-se com os perdedores e perecerá, assim como seu pai antes de você.

E Kyle inquieto, refletiria sobre as palavras ditas pelo silfo Alderic por muitos e muitos dias.

Poucos dias depois, Melgosh e Archibald retornavam a Nish. Trouxeram notícias de que Mishtra passava bem e que tinha saudades de todos. Fariam uma última conferência antes de partirem deixando para trás toda complexidade das disputas políticas dos silfos do mar.

Reuniram-se à mesa do conselheiro Zil e em sua companhia, Melgosh, Kyle, Archibald, Kiorina, Gorum, Kleon, Allet e An Lepard.

Como era comum na casa de Zil, carne não era servida. Gorum erguia as sobrancelhas com os lábios torcidos e encarava Archibald enquanto servia-lhe um pouco do cozido de aspecto verde viscoso. Archibald tentava escamotear suas risadas. Muitas vezes Gorum podia fazê-lo rir mesmo sem dizer uma palavra, era como se pudesse ler seus pensamentos. Kiorina constrangida beliscou a perna de Archibald por baixo da mesa.

Archibald surpreso encarou Kiorina e sussurou, – Ai! É o Gorum!

– Vocês não vão crescer?

Gorum logo retrucou bem humorado, – Se eu crescer mais não passo pelas portas.

Kiorina virou o rosto olhando para o alto desistindo do assunto. Kyle parou de comer por um instante observado a cena com um discreto sorriso nos lábios.

Melgosh parecia tenso e alheio ao que ocorria na mesa. Zil era um muro de tranqüilidade enquanto Allet parecia apreciar bastante a comida. Como costumava dizer, o tempero era semelhante ao de sua mãe.

An Lepard, ao lado de Gorum, parecia detestar a comida assim como parecia detestar estar entre os silfos. Depois de atacar Shark e vê-lo retornar no feriado de Namzu, idéias fixas de vingança voltaram-lhe à mente. Kleon parecia compreender bem o que se passava com o dacsiniano e tinha um semblante triste. Enfim, ao redor da mesa, podiam ser notados humores variados.

Kyle elevou a voz, – E então Melgosh, como estão os preparativos para nossa partida?

Melgosh direcionou a reposta para Allet com um olhar. O marujo respondeu em seguida, – A nave está carregada. Partiremos com as primeiras luzes da manhã.

Zil encarou Melgosh por uns instantes e foi direto ao ponto. – Está levando a Maré Vermelha consigo, caro Melgosh?

Melgosh fez que sim. Estava tenso e o assunto chamou a atenção de todos. E então disse, – Aconselha-nos a deixá-la sob seus cuidados aqui em Nish?

– Já não está no cofre em sua cabine? – indagou o alto conselheiro.

Melgosh acenou positivamente.

– Pois então é melhor que ela os acompanhe. Perdoe-me por não desejar mantê-la aqui comigo em Nish para aliviar seu fardo. Mas devo lembrar-lhe que já não conta com o apoio de Zoros em sua tripulação.

– Estou ciente disso.

An Lepard intrometeu-se, – Desculpem-me questionar a sabedoria sílfica. E quanto a tal Espada Flamejante de Quill? Por que deixaram que estrangeiros a levassem? Se essas coisas são tão perigosas como vocês dizem, por que não destroem-nas de uma vez por todas?

Zil retrucou – foi esse tipo de lógica dos seus antepassados humanos que levou nosso mundo à ruína.

An Lepard riu sarcástico. – Para que me incomodar em perguntar? Humanos são burros não é mesmo? É por isso que os Silfos não se dão ao trabalho de responder...

Archibald reagiu, – Por favor, desculpe o comportamento de An Lepard. Mas senhor Zil, não compreendo. Pode explicar porque essas armas perigosas não devem ser destruídas?

– Caro Archibald. Você devia saber que não adianta que se destruam armas. Enquanto houver a guerra dentro dos corações, novas armas serão construídas. Um dia, quando o desejo e necessidade de lutar desaparecerem, as armas continuaram a existir como objetos de decoração e lembrança de tempos nebulosos.

An Lepard não fez questão de esconder o desgosto e retrucou, – Utopias sílficas sem sentido! Esse dia nunca irá chegar. Eu não vejo nada em nosso futuro que não sejam mais guerras e conflitos. É só observar o mar. Não há paz. Apenas uma constante luta. Peixes maiores comendo menores, apenas os mais fortes sobrevivem. São assim as leis de nosso mundo, vale para os animais, vale para os homens, silfos e os demais.

Zil parecia não se importar com a reação visceral do capitão dacsiniano. – Veja Archibald, minhas palavras confirmadas. Eis novamente a lógica humana que trouxe as sementes malignas à Terra das Nove Luas.

Kyle concordava com An Lepard, ao menos em parte, e disse, – Conselheiro Zil, essa lógica ao meu entender não é humana. Ou Alderic e os Hiokar tem uma outra lógica a qual não posso diferenciar?

– Caro Kyle Blackwing, de fato a lógica que precede as ações dos Hiokar não tem a mesma natureza das observações feitas pelo capitão An Lepard. As observações de An Lepard representam a lógica pura aplicada sobre a observação superficial ou mesmo aparente do mundo e seus fenômenos. Não é uma lógica ruim, é apenas desprovida das emoções mais profundas e leis naturais não aparentes de profunda compaixão e amor. É uma lógica de observação imparcial, por assim dizer, que muitas vezes traz boas conclusões e más. Porém a lógica dos Hiokar é de total exclusão. É vil e egoísta por natureza, pretende privilegiar uns poucos a favor da escravização e destruição de outros tantos.

– Sim, compreendo, mas Alderic...

– Seu confronto com o conselheiro Alderic lhe deixou profundas marcas e dúvidas, não estou certo?

Quando percebeu o rumo da conversa ir de encontro às suas fraquezas levantou-se. – Sim, mas não desejo discutir o assunto – Em seguida, deixou a mesa demonstrando nervosismo.

An Lepard chacoteou, – Apelou Kyle? Não vai embora não, a conversa estava ficando boa...

Kyle respondeu ríspido antes de deixar o salão. – Hoje não An Lepard.

Kiorina perguntou a Zil, – De que o senhor estava falando?

– Pergunte a seu amigo. Talvez ele se abra com você.

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