CAPÍTULO 65
Vekkardi estava tonto. As luzes do alvorecer penetravam na cabana agora bastante quieta. Aos poucos recuperava o comando dos músculos de seu corpo. Além da forte dor de cabeça, sentia-se angustiado. Houve grande prejudício por causa de sua fraqueza. Radishi fora subjulgado por Arávner e os principais membros da rebelião teriam sido revelados.
Fora uma madrugada amarga. Presenciar impotente o ataque do impiedoso gigante branco contra Radishi. Mal pode ver todo ocorrido. Em alguns momentos, podia apenas escutar as gargalhadas de Arávner e os gemidos de dor de Radishi. O tisamirense se recusava a aceitar o invasor como mestre e fora castigado longamente. Procedendo da mesma forma de castigar Will, Arávner arremessou Radishi contra paredes, contra o teto e contra o chão. Em determinado momento, Radishi caira ao lado de Vekkardi e este pode ver o seu rosto ensangüentado. Em seguida, Arávner torceu-lhe o braço com a força invisível de sua vontade até que soou um estalo. Estava quebrando os ossos de Radishi, que continha os gemidos de dor e recusava-se, vez após vez, a pronunciar a palavra: mestre. E isso Arávner exigia escutar. Com o tempo, o tisamirense perdeu as forças e desmaiou. Saiu da cabana carregado. Interessado apenas em Radishi, Arávner deixou Vekkardi para trás.
Após alguma reflexão, o discípulo de Modevarsh concluiu que não estava longe do esconderijo principal. Imaginou que se houvessem tropas movendo-se montanha acima, poderia ter uma chance de chegar antes. Conhecia atalhos que a maioria das pessoas não poderia tomar, em especial na neve. No porão da cabana havia algum material para escaladas e suprimentos. De posse dos mesmos, Vekkardi pôs-se a correr antes dos primeiros raios do sol tocarem a cabana.
Depois de tanto tempo, percebia claramente como havia sido tolo. Sabia de seu egoísmo, mas não havia percebido como este seria capaz de prejudicar a tantos. Com um fio de esperança, avançava montanha acima. Com a machadinha que carregava, planejava improvisar uma prancha com a qual desceria a alta montanha até as proximidades do esconderijo. Com alguma sorte, poderia chegar no dia seguinte.
Antes de anoitecer, pode confirmar suas suspeitas. Estando próximo do topo, pôde ter uma boa visão do caminho entre duas as duas altas montanhas que precediam o vale do esconderijo principal. Avistou uma tropa de aproximadamente duzentos homens. Era possível que sentinelas entre os rebeldes já tivessem visto as tropas se aproximando. Acreditava também que através de magia, fosse de Modevarsh, fosse dos outros anciãos, já saberiam do ataque iminente. Mesmo assim tinha que chegar o quanto antes. No caso de um embate, precisariam de sua ajuda.
Enquanto Vekkardi seguia obstinado em sua escalada, seu antigo tutor, o silfo Modevarsh andava com dificuldade em direção da saída da caverna. A habitação que construíra através de meses ficaria intacta e escondida. Do lado de fora observou os cinco grupos que fugiam montanha acima. Logo estariam separados, seguindo cinco rotas distintas. Era hora de fechar a caverna. Ele fechou seus olhos trêmulos e apontou os dedos para o alto. Logo a voz da montanha pode ser ouvida, enquanto grandes blocos de rocha e terra deslizavam para fechar a entrada.
Modevarsh não pode sentir a presença de um abutre negro que sobrevoava o céu logo acima, observando com atenção. Apesar de não pressentir a presença da ave, pode perceber o contrário. A falta de presenças. Sabia que havia alguma força operando nos arredores. Em seguida, fez contato visual com a ave. Era mais escura que qualquer ave poderia ser. Sabia de quem se tratava. Era seu irmão mais jovem, Rodevarsh.
Rodevarsh sabia ter sido avistado e não parecia surpreso. Em seguida, fechou as asas caindo num mergulho veloz. Aproximando-se do terreno coberto por grossas camadas de neve, seus movimentos desaceleraram e caindo como uma pluma, a ave desfez-se num tipo de chuva de plumas negras. Das plumas emergiu a figura alta e esbelta de um silfo de cabelos alvos, lisos e soltos. Com seu único olho encarou o irmão com quem não se encontrava há centenas de estações. O tapa-olho negro estava firmemente preso à sua cabeça. Seu olho e sobrancelhas estavam contraídos. A vista semicerrada indicava ódio ou desgosto.
Modevarsh sorriu e disse, – Olá irmão. Belo efeito de transformação este que me apresentou. Ainda tentando me impressionar?
Rodevarsh deu um leve passo à frente. Como se flutuassem, seus pés não chegavam a afundar na neve fofa, apenas deformando-a delicadamente. – Então é assim que acabou, não é irmão. Liderando um bando foragido de humanos sujos e incompetentes. – A voz rouca de Rodevarsh expressava uma ponta de prazer ao falar.
Modevarsh ainda sorria, porém seu coração batia acelerado. – Apurou seu senso de humor desagradável, não é mesmo?
– Não sei que humor... – Rodevarsh torceu a boca desgostoso. – Fico triste de ver o grau de degeneração alcançado por um silfo, tanto mais um de minha própria família. Você é uma vergonha para todos nós!
– Vergonha? Não sabe o que diz meu irmão. Diga-me, o que pretende juntando-se com tais bruxos das trevas? Necromantes profanadores de túmulos. Perturbadores dos espíritos e dos mortos? E ainda, segundo sua própria visão: aliando-se aos humanos!?
– Não passam de instrumentos necessários. Nada mais que joguetes.
– Necessários para que? O que pretende irmão? Não vê que isso tudo é um grande erro?
– O que pretendo? Não se faça de tolo meu velho irmão. Não diga que não sabe o que pretendo.
– Imagino, mas gostaria de escutar seu ponto de vista.
– Ah, agora, depois de tantos anos o meu velho e respeitável irmão está disposto a me dar ouvidos? Pois bem, dir-lhe-ei! Pois não vou negar sua última vontade.
– Entendo. Pretende me eliminar? Eliminar a vergonha que lhe causo?
– Pois sim, se é assim que percebe. Onde estava? Sim, estava prestes a lhe dizer porque me aliei aos humanos, por que eles são necessários aos meus objetivos. Eles apesar de criaturas toscas, sujas e desprezíveis, servirão seu propósito. Nos ajudarão a restaurar a glória de nosso povo. O grande império dos amaldiçoados silfos. Sim, sabe bem de nossa maldição não é mesmo irmão? Bem sei que tentou trapacear, mas vai morrer em breve. Como foi o nome que adotou em sua tentativa de escapar da maldição? Funil? Bunzil? Ah sim, Alunil. Pois saiba irmão, que você falhou! Se matar você, eu mesmo, provarei que é um mortal. Ou então, vai envelhecer ainda mais e morrer. Quanto a mim, irei restaurar o império e mais que isso, irei restaurar nossa condição de seres divinos. Voltaremos todos a sermos imortais e poderemos uma vez mais usar o título de nosso merecimento...
– Não diga irmão! – Alertou Modevarsh preocupado.
Mas Rodevarsh não segurou a língua. – Elfos!
Modevarsh sentiu o estômago embrulhar e em seguida vomitou. Baratas, escorpiões e outras pestes. As criaturas correram em seu caminho pela neve e Modevarsh surpreendeu-se ao olhar para seu irmão. Estava de pé, ileso.
– Mas como? Como pode ter se livrado da maldição?
– Não me livrei, ao menos não completamente. Ainda sou mortal. Porém com isto... – O silfo caolho e maligno retirou de sua manta de seda negra uma bola de cristal de azul profundo e brilho hipnotizador. – Uma das muitas habilidades do Orbe do Progresso.
Modevarsh tossia sentido a garganta arranhar. – Mas não pode irmão. Não pode ascender à antiga condição elevada de nossa raça por meios do mal. Nosso povo caiu, porque foi seduzido pelas trevas... Como espera ascender associando com forças do abismo?
– É justamente o que faremos. Eu descobri uma maneira de restaurar a glória de nosso povo. Para isso precisamos dos humanos, para que eles façam as besteiras que são próprias de sua imaturidade e impossível sede por poder. Que eles tragam mais uma vez as trevas para este mundo.
– Não entendo seu raciocínio. Acha que apoiando os humanos numa insana jornada para reativar os antigos elos e nexos irá redimir nosso povo? Não vê que só trará mais sofrimento a todos os povos e raças deste mundo.
– Estou ciente do preço a pagar. Porém, desta vez nosso povo vai agir corretamente e quando chegar a hora, vai expulsar o mal de uma vez desta terra. Resgatar o apreço dos deuses e nossa verdadeira posição de glória imortal. Nos estamos pagando, até hoje, pela imundice causada pelos humanos há mais de quatro mil estações. É hora deles receberem o troco. É hora de nós alcançarmos nossa redenção.
E então uma lágrima rolou pela face de Modevarsh. Ele sabia que seu irmão estava perdido nas trevas e que nada que pudesse dizer trar-lhe-ia de volta à razão.
– Por que chora meu velho irmão?
– Percebi que não há mais esperanças para você. Nossa mãe...
– Não venha com esse sentimentalismo barato. Se estiver tão triste e desgostoso por ver o que me tornei, estou disposto a acabar com seu sofrimento. Se não resistir, vou ser misericordioso e oferecer-lhe uma passagem sem dor.
– Eu não estou sozinho. E agora sei de meu último dever. Devo poupar o mundo do perigo que sua loucura oferece.
– Então será como sempre imaginei. Iremos lutar.
Modeversh respirou fundo e depois de expelir todo ar dos pulmões. Seu corpo tornou-se rígido. A textura de pele havia mudado. Havia um novo brilho. No lugar de carne havia pedra.
– TOLO! – gritou Rodevarsh. – Eu também não estou só! – Ergueu o Orbe do Progresso ao alto e chamou, – Therd Fermen! – em seguida, um forte brilho azul ofuscou toda a vista.
Envolto em faíscas de energia azulada que rapidamente se dispersou, o demônio alado cruzou os céus aproximando-se dos irmãos. O demônio grunhia torcendo as feições humanas imperfeitas de seu rosto, vermelho e couraçado. Rasgava os céus, propelido por imponentes asas membranosas que emitiam rastro incandescente causado por centenas de chamas que cintilavam ao redor de sua pele enrugada, grossa como a cascas de uma árvore espinhosa. Seu sorriso maligno com dentes afiados como de um tubarão expressava sadismo e maldade.
Capturando o velho silfo petrificado em suas garras voou em alta velocidade em direção ao paredão rochoso da montanha. Atirou-o contra as rochas provocando forte impacto sonoro.
Em seguida, a voz zangada da montanha foi ouvida. Uma incrível avalanche de rochas e neve precipitou-se sobre o demônio ígneo e Rodevarsh. O silfo ficou surpreso e imóvel quando percebeu que não se tratava de uma avalanche natural. Quando viu sair da montanha uma forma que lembrava uma mão de três dedos, maior que o maior dos castelos, ficou descrente. De repente entendera o que o irmão queria dizer sobre não estar sozinho. Entendeu porque o irmão escolhera aquele local para o esconderijo dos rebeldes.
Do outro lado da montanha, as tropas necromânticas que vinham para perseguir os rebeldes, foram impiedosamente soterradas. Um grande terremoto espalhou-se por toda a região.
O demônio apavorado tentava voar para longe da montanha, mas era como um mosquito tentando escapar em vão de um gigantesco jato de terra e neve que o cobriu e soterrou em instantes, esmagando-o e apagando suas chamas.
Rodevarsh não pode evitar o soterramento e desapareceu sob um volume de neve, terra e rochas mais alto que as gigantescas árvores de Shind.
Ainda em cima da montanha vizinha, Vekkardi observou atônito e incrédulo a montanha mover-se, crescendo do solo como se fosse alcançar e rasgar o céu. Mal teve tempo de procurar por um abrigo antes que uma avalanche o cobrisse em sua própria montanha.
Em todo baronato de Fannel, pode-se sentir o tremor de terra. Cidades, vilas e aldeias foram atingidas com diferentes intensidades. Algumas mortes foram registradas. Muitos foram feridos e muitos bens foram perdidos.
O dia que a terra tremeu no reino de Lacoresh, seria conhecido para alguns como o dia em que o silfo Modevarsh, um dos mais fortes e queridos líderes da rebelião contra o regime mentiroso dos necromantes, feneceu.
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