CAPÍTULO 63

Vekkardi limpava o suor do rosto e fazia careta de cansaço. Apesar de todo frio, havia escalado paredões e caminhado por trilhas tortuosas quase o dia todo. Os picos gelados ao norte assumiam tons rosados, pois o crepúsculo estava próximo. O peso de sua missão torturava-lhe a alma. Como levar sozinho seu irmão de volta à necrópole? Como obter a obediência de um carniçal sedento de sangue? Carregá-lo sozinho seria impossível. Mas ao mesmo tempo, não podia contar a ninguém que estava negociando com necromantes. Principalmente ao velho silfo Modevarsh.

Desde que deixara a necrópole, há muitos dias, não conseguiu concentração para meditar. Imagens terríveis do que viu e sentiu, estando no epicentro de todo mal que se espalhava por Lacoresh, não deixavam-no descansar. Em parte, já estava arrependido por ter feito um contrato com tais bruxos das trevas, amantes da morte e destruição. No entanto, depois de tanto, recuar não era mais uma opção.

A noite fria tinha ares sinistros e o céu mantinha tonalidades púrpuras. Nuvens escuras cruzavam com velocidade impulsionadas por ventos pujantes. Mesmo cansado, fazia exercícios físicos para manter-se aquecido. Exercitar-se o ajudava a limpar sua mente. Há tempos não conseguia trazer à consciência um estado de limpeza tal qual naquele momento. Era como se nuvens escuras se afastassem de seus olhos trazendo a tona, ecos do passado.

Durante anos Vekkardi foi um aluno dedicado aos ensinamentos de seu patrono, Alunil. Aquela noite trazia lembranças da primeira vez em que teve sua mente aberta para as energias do Jii e da Mana, que tudo cercam. Através de meditação profunda foi capaz de enxergar os pequenos Nan-lus, espíritos invisíveis da natureza, dançando na noite escura.

Logo, a noção de que não havia espaços vazios deixou-o fascinado. De que como o ar, invisível aos olhos, mas possível de sentir na forma de vento, havia forças invisíveis com as quais podia tomar contato. Como o ar, que se tornava visível em forma de nuvem, neblina ou fumaça, a sensibilidade à Mana e ao Jii dava forma aos Nam-lus, auras e até pensamentos.

Assim, com boas lembranças do passado, sem lembrar-se do drama de seu irmão por alguns instantes, Vekkardi adormeceu.

Não muito longe do local de descanso de Vekkardi, Radishi meditava profundamente sobre graves questões. Descansava em um pequeno chalé isolado ao norte da província de Vaomont. Preocupava-se com Calisto e com seus planos para o jovem. Dias antes, teve uma longa conversa com Modevarsh no esconderijo das montanhas. Precisava saber sobre as previsões do velho silfo. A conversa deixou-o apreensivo e intrigado. Percebeu que as forças do velho silfo se esvaíam. Havia um olhar sombrio nos olhos do velho silfo, como se soubesse que a morte se aproximava.

– Filho – dissera o velho. – Breve irei deixá-los.

Radishi preocupado tentara minimizar. – Não fale assim. Apostaria que ainda viverá muito mais que a expectativa de vida humana poderá me oferecer.

– Talvez, bom Radishi, talvez se eu não tivesse abandonado minha proteção na pele do vigoroso Alunil. Mas, agora sei que minha hora está próxima. É o preço que devo pagar por tentar ludibriar o tempo. Tentei me alinhar com um processo de purificação dos antigos para o qual não estava preparado. É triste constatar a ruína que caiu sobre minha raça.

Radishi ficara em silêncio por alguns momentos e Modevarsh desabafou. – Queria eu deixar essa terra, pela simples ação do tempo. Percebo, no entanto, que me está reservado um destino menos ameno.

– O que quer dizer? – perguntara o Tisamirense com olhos preocupados.

– O que por muito tempo imaginei e agora tenho certeza. Que confrontarei meu irmão Rodevarsh, muito em breve. Sempre soube, talvez por isso tenha fugido, talvez por isso tenha me tornado Alunil. Mas, agora nosso encontro é apenas uma questão de tempo... – o velho silfo fora reticente e havia pesar em sua face, velha e cansada.

Radishi novamente permanecera silencioso e Modevarsh voltara a falar. – Sim, sim. Perdoe-me o desabafo, sei que não é por isso que veio tão longe. Está preocupado com Lacoresh, não é mesmo? Preocupado com seu discípulo, o jovem e ambicioso Calisto.

– Sim. Temo que se meus esforços para usar sua força a favor da rebelião falharem, seria o fim...

– Em meu sonhos tive visões terríveis quanto ao futuro próximo. Sofreremos irreparáveis baixas. Vejo uma terrível escuridão se aproximando, mas quanto a seu trabalho, estou certo de que os resultados serão significativos. Mas para que ele trabalhe de vez do nosso lado, você sofrerá.

Na ocasião. Radishi levantou-se e passou a mão sobre a barbicha. Estava inquieto, algo incomum em seu comportamento e inquiriu curioso, – Como assim? O que mais pode me dizer?

– Minhas visões não são precisas. Não estou certo de como será o progresso dos eventos. Apenas sei. Como soube que o pobre Rikkardi sucumbiria ao decidir enfrentar os necromantes.

– O que devo fazer? Se Rikkardi tivesse escutado o senhor, tempos atrás, não teria sucumbido, estou certo? Quero dizer, nossas ações e decisões fazem a diferença não é mesmo, senhor Modevarsh?

– Sim. Fazem. Mas nem sempre. Se não fossem os mistérios profundos que regem os astros e as milhares de vidas em nossa esfera, não seríamos nada além de carne animada por magia necromante, sem real vontade própria e com destinos indiferentes.

Houve um longo silêncio. Parecia não haver mais nada a dizer. Radishi estava pronto para partir quando Modevarsh aproximou-se o abraçando.

– Adeus meu filho. É possível que seja a última vez que nos falemos.

– Adeus Modevarsh.

O velho silfo estava bastante alterado. Radishi nunca o havia visto daquela forma. E então o velho disse pausadamente, – Se me permite, há algo mais que gostaria de lhe contar. Um peso que me oprime o coração. Tenho sua permissão para aliviar o meu e constranger o seu?

– Sim. Penso que aliviar o peso de seu coração é o mínimo que posso fazer.

Seus olhos experientes brilhavam esbugalhados. Por um instante, deixou de olhar para Radishi focalizando a vista no horizonte distante, invisível de dentro da caverna. – Pois então escute: Trevas. Terríveis acontecimentos aproximam-se. Não falo do que os necromantes representam. Pois da morte, sempre retornamos, de uma forma, ou de outra. Aprisionamento e corrupção estão à espreita. Das fendas esquecidas, dos abismos distantes, o mal, puro e pungente deseja escapar. Algo pior que a ambição e guerras trazidas pelos necromantes. Algo que não pode ser permitido. Mas meu tempo se esvai. Não estarei mais aqui para ajudar quando chegarem notícias do oráculo. Pois só o oráculo será capaz de revelar como estabelecer os antigos elos e afastar o mal mais uma vez, que deseja apossar-se desta terra. O mal que imprimiu tanto sofrimento nos povos, o mal que arruinou nossas raças, um dia mais belas e puras.

Radishi ouviu com atenção e por empatia, ampliou seu elo mental com Modevarsh. A dor e desespero que sentia eram imensas. De imediato, seus olhos claros se encheram de lágrimas. Frente a maior das escuridões, seu pensamento voltou-se a maior das luzes. Tisamir. E logo, uma projeção de possíveis discussões que teria com os mestres de Tisamir tomou sua mente. Toda discussão veio acompanhada da conclusão inevitável. O povo de Tisamir, com seu modo de vida e pensamentos elevados não se misturariam às trevas de forma alguma. Conseguir seu auxílio seria impossível. Não podiam manchar sua virtude adquirida misturando-se aos conflitos emergentes. A indiferença dos tisamirenses tirava Radishi do sério. De que vale tanta virtude, tanta pureza, tanta luz? Se não puder ser usada em favor do bem? Nada.

Modevarsh tocou o ombro do jovem trazendo-o de volta ao momento. Tinha algo em sua mão esquerda. Um pequeno amuleto de cerâmica lustrada, preso a um cordão. Algo semelhante a um anel, porém de formas elaboradas. O silfo deu-o a Radishi e disse. – Esta peça é muito especial. Não é um amuleto mágico, como poderia pensar. No entanto, é feito de terra que não é desta esfera. Algo raro, que pode passar desapercebido ao olhar de muitos nesse mundo. No entanto, é um presente divino. Use-o. Pois sinto que lhe será útil.

Radishi tomou o amuleto nas mãos e observou-o de perto. Suas formas não eram familiares e apenas com grande atenção pode notar, algo escrito com caracteres minúsculos.

– O que diz aqui? – estava curioso.

– Muita coisa. Se traduzido para nossa língua, poderia ser tão extenso quanto um livro, ou curto como uma sentença. Depende da interpretação.

Radishi franziu a testa. Estava intrigado. – Como assim?

– Não importa. Carregue sempre contigo e lhe trará boa sorte.

– Como conseguiu? De onde veio?

– Está na minha família há muitas gerações. – Após uma breve reflexão, completou, – Meu irmão, nunca pôde compreendê-lo. Em seu senso de praticidade, chegou a desprezá-lo. Só depois de muitos anos, aprendi um pouco sobre este amuleto. Na realidade, não é nada mais que terra aquecida. Sem magia, apenas terra. Porém, o que vale é seu significado simbólico. O que simboliza.

– E o que este amuleto simboliza?

O velho enumerou, com calma. – Compaixão. Misericórdia. Esperança. Amor.

– Entendo. – disse o jovem como forma de concordância

O velho sorriu e disse. – Não, ainda não entende. Mas um dia vai entender.

– Não pode escapar a estas trevas que se aproximam? Escapar de um confronto com seu irmão?

Modevarsh sorriu bondoso, voltando a seu estado de espírito usual. Como se o peso do que guardava dentro de si, tivesse todo ido embora. – É meu destino, meu filho. Um resgate de dívidas que não posso mais adiar. Devo ao menos tentar ajudar meu irmão a livrar-se das trevas.

Radishi olhou-o nos olhos, pela última vez. Despediu-se com um sorriso. O velho silfo reforçava suas crenças. As mesmas crenças que fizeram com que optasse por deixar, possivelmente para sempre sua terra natal. As crenças que faziam com que ficasse frente a frente com as trevas confrontando-as. Diferente de seus conterrâneos, decididos a evitá-las a todo custo.

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