CAPÍTULO 53

Havia grande dose de surpresa e ódio nos olhos de Lévoro. Um oponente fraco poderia morrer apenas com um olhar irado do velho mago. Estava a um passo de obter sucesso em sua empreitada a não ser por um detalhe. Zoros, mago da embarcação do corsário Melgosh dos Orb. Em suas mãos uma vara de tosco acabamento que escondia atrás de sua aparência humilde, grande poder.

Nas mãos velhas, enrugadas e ossudas do poderoso Lévoro, o anel de Fernon, necromante do reino de Lacoresh. A pedra negra perfeitamente polida era um nexo que podia entortar o espaço e possibilitar saltos através do plano das sombras. Decidindo acertar as contas com Zoros em outra ocasião acionou o nexo, espalhando ao seu redor uma grande aura negra pulsante.

Zoros, determinado a deter Lévoro e Alderic, disse ainda abatido, – Não Lévoro! Não deixarei que escape!

Lévoro sorriu controlando sua ira e disse. – É mesmo? E como vai me impedir? – Ao fim de sua frase, Zoros podia enxergar através dos corpos de Lévoro, Alderic e Kyle que estavam etéreos e enegrecidos.

Zoros deu um passo à frente e girou a vara de madeira acionando enfim, seu poder. De imediato uma luz crescente tomou a superfície do artefato, interferindo com o transporte que Lévoro realizava. Toda câmara estremeceu e os objetos torceram-se como se tomassem consistência líquida.

Só então, Lévoro percebeu que a vara que desprezara, momentos antes, na verdade era um nexo de grande poder. A partir daquele instante, a vida de todos corria grande risco, e as conseqüências eram imprevisíveis.

O som distorcido da voz de Lévoro, carregando certa dose de desespero chegou aos ouvidos de Zoros com grande impacto. – Enlouqueceu? Quer nos matar?

A resposta foi incisiva. – Desista! Devolva a espada e deixe o humano em paz.

– Acha mesmo que vou desistir assim tão fácil, seu maldito inseto?

Novamente, mesmo em meio aos efeitos dos nexos que distorciam os arredores, Lévoro atacou o coração de Zoros. O marujo sentiu a pressão assassina, dolorosa e gelada dos dedos de Lévoro magicamente projetada para dentro de seu tórax. Ampliando a atuação de seus amigos, espíritos da água, Zoros manobrou transformando seu corpo em água. Logo, todo seu corpo tornou-se transparente e formado de água límpida. Com a transmutação completa, estava finalmente protegido dos ataques de Lévoro.

– Desista! – gritou Zoros olhando para os arredores com apreensão. Já não podia identificar um recinto. Nada além de uma grande massa de luz e cores estava em todo derredor.

Lévoro de posse da espada flamante, invocava uma grande labareda de fogo para desmanchar o corpo aquático de Zoros e mal percebia que seu próprio corpo mostrava sinais de decomposição. Alderic, assustado, soltou Kyle e correu, mesmo que seus pés não tocassem o solo. Kyle caiu, sem tocar o chão, como se fosse em direção a um grande abismo de cores e formas impossíveis. Sua mente sentia efeitos da distorção na qual estava e despertou.

Havia muitas cores e não podia se apoiar sobre lugar algum. Naquela intersecção de planos a realidade perdia o sentido. O jovem não sentia dor, mas percebia que seu corpo parecia tremer e perder pequenos pedaços. Parecia que estava derretendo. Em desespero, pediu socorro. – Socorro! Onde estou? Estou morrendo! Socorro!

Estava num espaço indefinido. Em lugar algum, perdido e parecia improvável que qualquer ser pudesse escutá-lo naquele local. Ainda assim, o jovem gritava desesperado assistindo seu próprio corpo decompondo-se. Sem saber porque, gritou pela segunda vez, por alguém que sequer conhecia. – Lila! Lila me ajude! Socorro!

Em seguida, uma forte luz preencheu o local e o cegou. A luz cessou, mas Kyle tinha a vista ofuscada. Aos poucos percebeu o peso em seu corpo. Estava deitado. A rocha era fria. Um caldo quente atingiu seu braço esquerdo. Havia um forte cheiro de sangue no local. Aos poucos pode ver que estava na câmara do tesouro. O caldo quente parecia ser sangue. Uma grande quantidade. Kyle esfregou os olhos para ter certeza do que eles lhe mostravam e sentiu-se enjoado ao ver que havia uma espécie de cascata de sangue jorrando da distorção espacial da qual acabava de escapar. O local estava silencioso e coberto com uma estranha penumbra. Aqui e ali, enxergava pequenas fagulhas de luz colorida. Tomou um grande susto quando escutou o barulho de metal caindo contra o chão. Era a espada flamante. Estava coberta de sangue que logo borbulhou e foi evaporado. Viu cair em seguida um pedaço de madeira torta e um anel. Teve a nítida sensação de que nunca mais veria Zoros em sua vida. Porém, as surpresas ainda não haviam acabado. Um pipoco seguido de vários lampejos coloridos, trouxe ao local uma estranha e pequenina figura vinda daquele espaço interdimensional.

Um ser de aparência humana. Uma mulher minúscula, que caberia nas palmas das mãos de Kyle. A pequena figura caiu girando como um inseto que atingia a luz quente de lamparinas. Instintivamente Kyle aparou a pequenina na palma de sua mão direita. Era incrivelmente leve e frágil, como se fosse feita de papel. Kyle observou a criatura com grande curiosidade, esquecendo-se do ambiente macabro que o cercava. Notou que pequenas asas delicadas e quase transparentes saiam das costas da mulherzinha. Ela balançou a cabeça e ergueu seus olhos encarando Kyle com curiosidade mútua.

Muito baixo, disse uma série de palavras estranhas que Kyle não pode compreender.

Kyle estava intrigado e respondeu, em sílfico. – O que?

A pequenina sorriu e indagou na mesma língua, – O senhor não é um elfo? O que o senhor é?

– Sou Kyle.

– Você é um Kyle? E qual o seu nome Kyle?

– Não, meu nome é Kyle. Eu sou um humano.

– Ah sim, senhor humano Kyle, chamo-me Lila. Sou uma fada.

“Fada?” pensou Kyle, “Devo estar sonhando. Afinal, nada disso faz sentido... Espera aí. Lila? Acho que já ouvi esse nome em algum lugar.”

– Lila? Seu nome não me é estranho.

– De alguma forma, sinto que o conheço de algum lugar. Mas isso é impossível, o senhor Kyle é o primeiro senhor humano que conheço.

Kyle sorriu. O observou os pequenos detalhes da fada. Uma criaturinha muito bonita e graciosa. – Você fala de um jeito engraçado fadinha.

– Fadinha?! – disse Lila irritada. E saltou. Surpresa, desequilibrou-se e caiu, agarrando-se ao polegar de Kyle.

– Ei, ei, senhorita Lila. Não precisa se irritar.

Lila fez força para escalar na palma da mão de Kyle novamente e só conseguiu com um empurrãozinho do indicador esquerdo de Kyle.

– Que engraçado! Não consigo voar.

– Bem talvez não seja a melhor hora, senhorita Lila. Parece que teremos companhia.

– Companhia, senhor humano? Mas que lugar estranho! O que todo esse caramelo fedido está fazendo aqui?

– Caramelo?

Kyle andou em direção a saída e viu dois guardas que vinham ao longe, verificar a confusão. Kyle fechou os dedos e instruiu, – Segure-se, vamos precisar correr!

Lila parecendo entender a situação de alguma forma, segurou-se, mão esquerda no dedo mínimo e mão direita no indicador.

Kyle abaixou-se e com sua mão esquerda, segurou a espada de Melgosh, a Maré Vermelha. Ao fazê-lo, teve os sentidos ampliados e visualizou o que ocorria à distância. Viu diante de seus olhos um monstro enorme que avançava contra seus amigos, Archibald e Kiorina. Distraído, não escutou Melgosh sussurrar implorando-lhe para soltar a espada.

***

A criatura, tomada por ódio descontrolado fazia dos bravos guardas imperiais vítimas de seus ataques mortais. Mesmo estando um pouco cansado e ferido, o fomalediônio estava longe de ser derrotado.

Sendo impossível para Kiorina contrapor a criatura, decidiu que valeria como último recurso ganhar tempo. Lembrando-se de suas habilidades ainda pouco desenvolvidas no campo do ilusionismo, tentou forjar a imagem de um forte guerreiro para lutar contra a criatura. Temia que os sentidos da criatura não se enganassem com a imagem pouco realista do guerreiro que convocara.

O homem alto forte e barbudo, avançava com sua espada contra a criatura. Esta ficou muito confusa com o efeito nulo que suas mordidas causavam no guerreiro ilusório. Percebendo o que ocorria, Terimikril escalou o lombo da criatura e empunhando a lâmina sílfica conquistada nas catacumbas palacianas atingiu a nuca do formalediônio. O monstro guinchou e girou o corpo derrubando o silfo estrangeiro que com grande destreza foi capaz de rolar sobre seu corpo e posicionar-se de joelhos. Em seguida, conseguiu ficar de pé em posição defensiva. Auxiliado pelo guerreiro ilusório de Kiorina, o estrangeiro avançou contra a criatura confusa e num golpe de sorte, ou de genialidade, atingiu o olho esquerdo da criatura com a ponta afiada de sua lâmina.

Três guardas chegavam naquele momento e uma das longas lanças enterrou-se no pescoço curto da criatura. Arqueiros posicionados na entrada do camarote disparavam setas contra a criatura que sangrava cada vez mais se mostrando visivelmente cansada. O silfo estrangeiro inspirado por uma rápida troca de olhares com a princesa Aeycha, atirou-se num ato de bravura e loucura. Girando e desviando-se das enormes patas da criatura, rolou para baixo da mesma. Em posição privilegiada, não hesitou em erguer sua espada, cortando o duro couro do abdome da criatura. Em seguida, foi banhado com sangue e líquidos viscerais da criatura que encontrava seu fim. Deixando a espada no abdome da criatura saltou célere, escapando do esmagamento quando a besta finalmente caiu para morrer.

Ao seu lado, observou um grupo de silfos do clã místico que chegavam apressados a fim de colocar sua força à disposição do imperador moribundo. Archibald, drenado de suas forças, deu lugar aos silfos aliviado por imaginar que seu esforço em manter a vida do pai de Aeycha possivelmente não seria em vão. E não foi, pois, com grande habilidade, os silfos puderam soprar essência vital de volta ao imperador, que teria uma recuperação lenta a partir daquele dia que acabava de entrar para a história do povo dos arquipélagos.

***

Chegando a tempo de evitar maior desastre, o respeitado conselheiro Zil procurou acalmar a situação nos arredores da câmara de tesouro. Devido aos mortos e demais sinais de luta, seria um pouco difícil dar explicações convincentes. O conselheiro logo identificou Kyle e Melgosh como agentes que trabalhavam em seu favor, e, demonstrou através das evidências, que silfos negros tentavam roubar tesouros aproveitando-se dos eventos na arena. A história encaixava-se bem com o ocorrido, em especial pelo fato dos silfos negros terem assassinado as sentinelas. Naquele dia, Zil, mesmo perdendo algumas peças, sentia que havia vencido uma partida de seu jogo contra o conspirador Duque Hiokar. Infelizmente, não havia nenhuma prova ou forte evidência que ligasse o ocorrido às ordens ou ações de Hiokar.

Hiokar por sua vez, passaria a partir daquele dia, a reconhecer Zil como grande e formidável oponente. Talvez um dos únicos capazes de afastá-lo de suas ambições. Por hora, a perda de Lévoro forçava uma retirada e reorganização de planos. Durante tempos seguintes ambos passaram a partilhar uma característica em comum. Pensar no oponente e quais seriam seus próximos movimentos. O confronto daquelas duas mentes selaria, em breve, o futuro do império dos silfos do mar.

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