CAPÍTULO 47
– Sinto-me humilhada, como um animal. – rosnou Kiorina girando o bracelete de propriedade que tinha preso no pulso esquerdo.
Kyle respondeu com um sussurro irritado, – Quieta Kiorina! Não vê que precisamos fazer silêncio.
Kiorina tocou-se, voltando a mente para a missão que receberam. Controlou o impulso de reclamar da coceira que o bracelete provocava. Observou Allet imóvel na penumbra. A ruiva encostou-se em Kyle e sussurrou em seu ouvido, – Será que ele viu alguma coisa?
– Não sei, é melhor aguardar. – respondeu friamente um pouco mais baixo.
A madrugada estava silenciosa, e enquanto esperavam pacientemente, podiam escutar o quebrar constante das ondas do mar.
Kiorina alterou o tom de voz, e mesmo sussurrando transmitia impaciência, preocupação e certa fragilidade, – Ai Kyle, e quanto aos outros? Será que estão bem?
Kyle sentia o calor da proximidade excessiva da ruiva, aceitável na ocasião, e tentava controlar-se. Respirou fundo e respondeu, – Archibald e An Lepard, estão com Melgosh. Quanto a Gorum e Kleon acompanham Zoros. Eles vão ficar bem.
A ruiva aproveitou o momento, e mirou a pequena faixa do céu que podiam ver do beco. Estrelas cintilavam contra o fundo de azul profundo, enquanto uma das pequenas luas surgia naquela direção. Era Gicorne, a menor das luas. Estava quase cheia e refletia um fraco tom branco, levemente esverdeado. Seu brilho acentuava o tom verde dos olhos de Kiorina.
Disse baixinho, – Olhe Kyle, a pequenina. É tão raro vê-la assim, sozinha.
O cavaleiro olhou para a pequena lua e sentiu os cabelos da ruiva em sua face. Por um instante lembrou-se de sua infância. Ficava cuidando dos cavalos, muitas vezes até anoitecer, e no verão, quando o céu estava quase sempre limpo, observava as luas surgirem no céu, realizando sua dança constante. Não respondeu, mas por um instante cedeu. Recebeu Kiorina em seus braços e juntos observaram o céu.
– Ai Kyle, você tem estado tão distante. Tudo tem sido tão difícil. Perdemos nosso lar, nossas famílias, amigos... É tudo tão triste. – Kiorina chorava baixinho, um choro contido.
Era verdade, era tudo muito triste. Kyle não conseguia tirar da cabeça a morte de Noran. Alguma coisa estranha havia acontecido naquela noite. Sentia-se triste pela perda do companheiro. Sempre que tentava lembrar-se do ocorrido, seus pensamentos ficavam confusos, enevoados.
Um movimento brusco, porém silencioso, de Allet chamou a atenção de ambos. Afastaram-se, sentindo mais uma vez o frio da noite, nos pontos em que se tocavam.
Em seguida, puderam ouvir o barulho de correntes e passos. Escravos, uma dezena de escravos. Acorrentados, uns aos outros subiam a suave ladeira abaixo do beco. Kyle observou o silfo de ombros largos que conduzia os escravos e reconheceu-o. – É Marcik! O maldito que nos vendeu para Lefreishtra!
– É ele mesmo Kyle!.
Allet torceu os lábios e comentou, – Ai minha mãe do mar, isso só fica pior! O maldito Shark está envolvido mesmo...
– Não foi o que o sábio de vocês disse? – Kyle buscou confirmação.
Sussurou sarcástico, – Foi o que o conselheiro disse.
– Que seja.
Kiorina disse enquanto observava o progresso de Marcik, e dos escravos. – Por que estariam transportando escravos a uma hora destas?
– São preparativos. A competição começa amanhã cedo. Certamente pretendem fazer alguma coisa.
***
– Calem-se vocês dois! – disse Zoros irritado.
As risadas de Gorum e Kleon pararam subitamente. Em seguida, Kleon, não pode conter-se e deu uma risada reprimida com a boca fechada, fazendo certo ruído com a garganta. Gorum acompanhou-o, rindo baixinho, soprando ar pela boca. Kleon estava vermelho, ao encarar o olhar furioso de Zoros, não teve outra alternativa senão prender a respiração. Segurou por alguns instantes e Gorum voltou a ficar quieto. Observava a vermelhidão do rosto do Chiris aumentar, aumentar e aumentar.
Zoros foi perspicaz e ao perceber que o humano não suportaria. Estava prestes a soltar uma alta gargalhada. Veloz, convocou um feitiço de silêncio, que envolveu Gorum e Kleon. O Chiris perdeu o controle e soltou uma forte gargalhada. Nenhum som foi produzido, mas ele não parecia se importar.
Ao ver Kleon, fora de controle , abraçando a barriga com os braços, Gorum caiu na gargalhada. Nos instantes seguintes quando perceberam que não podiam emitir sons, deram vazão total a suas vontades de rir. Kleon caiu no chão e ria tanto que estava sem forças. Suas costelas doíam, e Gorum, sentia a musculatura da face doer, de tanto rir.
Gorum arrependeu-se das piadas que contou a Kleon. Apesar de divertidas, puseram a missão que tinham em risco. Mesmo assim, não conseguia lutar contra a força das risadas, que brotavam das profundezas de sua alma.
Zoros balançava a cabeça desconsolado. Pensava na grande capacidade que os humanos possuíam para idiotices. Com os dois sob controle, voltou sua atenção para as ruas abaixo. Como imaginava, o barulho feito pelos humanos não passaria desapercebido. Dois sentinelas da guarda de Nish aproximavam-se do local onde estavam. Zoros convocou um segundo feitiço desnecessário, bastante irritado. Os sentinelas logo foram investigar outros ruídos que surgiram na direção oposta.
O coração de Zoros gelou, e tomados por um estranho pressentimento, Gorum e Kleon pararam de rir. O portão da grande mansão pertencente ao duque Hiokar abriu-se. Uma fraca luz amarelada foi projetada na rua. Uma sombra surgiu no meio da luz projetada e puderam acompanhar a saída de uma estranha figura de dentro do portal.
Zoros sentiu um forte aperto no peito e grande temor. Tratava-se de Lévoro. Um bruxo que tinha a fama entre os bruxos, de usar magias das trevas. Muitos diziam que Lévoro, assim como seus ancestrais, tinha sangue de demônios em suas veias. Zoros lembrou-se de quando era um jovem silfo e ingressara na grande escola de magia dos Maki. Lembrou-se de seu único e aterrorizante encontro com Lévoro. O bruxo já era velho, devia ter mais de oitocentos anos. Nunca imaginava que ainda pudesse estar vivo. Mas então fazia sentido, como diziam, o sangue demoníaco estendia-lhe ainda mais a vida. Que idade teria agora? Mil e duzentos anos?
Havia um brilho amarelo em seu peito! Seria Sargentium? Zoros torcia a face e o aperto que sentia no peito, fazia com que se lembrasse da forte náusea que sentiu no seu encontro com Lévoro na escola. O rosto disforme do ancião, era assustador, mas era do toque gelado de sua mão, que nunca esqueceria, provocou-lhe forte náusea e por cinco dias, esteve febril, vomitando e com as vísceras desarranjadas. O preço que pagou por sua impetuosidade. Ouvira dizer, que Lévoro, antigo membro do conselho de professores da escola, estava de visita e consultava alguns volumes antigos na biblioteca. Contavam todo tipo de histórias sobre Lévoro, inclusive uma pela qual era especialmente famoso. Acontecera, nos tempos em que Lévoro era estudante.
Nas catacumbas profundas da escola, abaixo do mar, estavam selados uma série de demônios capturados pelos Maki durante a guerra de milênios. Um acidente, libertou uma das bestas, que tinha grande poder e causou muitas mortes e destruição. Um memorial, no pátio da escola, honrava os vinte e três estudantes e seis professores mortos na ocasião. Fora Lévoro, apenas um estudante (porém, como diziam, o mais poderoso de sua turma), que após uma batalha indizível com a criatura, voltou a aprisioná-lo em seu silo.
Zoros prosseguia, remontando em sua mente os acontecimentos que cercaram seu encontro com Lévoro. Movido por uma curiosidade irracional, ainda jovem, seguiu para a biblioteca, que estava deserta. Todos sabiam que Lévoro não gostava de companhia, e muito menos de ser incomodado quando em visita à escola e à biblioteca.
Lá, deparou-se com o silfo, baixo e feio. Cabelos brancos até a cintura. Olhar fulminante. E suas próprias palavras estúpidas ficaram gravadas em sua mente, para nunca mais serem esquecidas. – Olá, senhor Lévoro? Eu... eu... sou seu admirador, e sempre quis conhecê-lo. – E sua mão tremula estendida que recebeu o aperto de mão gelado do famoso o horroroso bruxo.
De volta ao presente, Zoros sentia-se mal, apenas de olhar para o bruxo mais uma vez. Saberia o conselheiro Zil, sobre o envolvimento do duque Hiokar, com o famoso feiticeiro, Lévoro?
Lévoro olhou para o alto, na direção em que estavam, Zoros, Gorum e Kleon. Àquela distância, Zoros não saberia se estava olhando para eles ou para as estrelas atrás de si. O velho, desceu a rua, e Zoros pode perceber que os cabelos brancos do bruxo, estavam mais compridos, chegando até os joelhos.
***
– Não posso crer! É muita sorte. – sussurrou Melgosh.
– Ou muito azar. completou Archibald.
– O conselheiro estava certo. Shark realmente está planejando alguma coisa. – concluiu o silfo.
An Lepard desembainhou sua espada silenciosamente. Sentiu o ódio ferver seu sangue. Vingar-se-ia de Shark, era uma oportunidade perfeita.
Archibald e Melgosh não percebiam o que An Lepard estava prestes a fazer.
– Quem é aquele com ele? Parece um humano. – comentou Melgosh.
– É um humano, é o necromante de nome Fernon. – respondeu Archibald.
An Lepard preparava-se para agir, sentia o peso de sua espada nas mãos, e imaginava se ainda seria tão bom quanto antes. Sua intenção de agir, foi substituída pela perplexidade.
Ao verem os lábios do silfo tocarem os do humano todos ficaram surpresos. Melgosh mal podia crer em seus olhos e comentou, – Eu sempre soube que Shark era esquisito, mas isto?
– Não é o que pensa, Melgosh. Trata-se de um feitiço. Fernon está fazendo alguma coisa com Shark.
Naquele instante, An Lepard correu. Movido pela ira vingativa, ignorava a dor na perna, que em geral, fazia com que mancasse. Melgosh segurou Archibald pela roupa, impedindo-o de segui-lo. – Não Archibald, deixe-o. Ainda temos muito que fazer.
A concentração de Fernon em seu feitiço era grande e largou Shark, apenas quando An Lepard já estava próximo. O corsário investiu com tudo para cima do silfo. E sua lâmina banhou-se em seu sangue, retirando vingança. Shark despertou do transe, sentindo seu peito queimar e com as mãos encharcadas em seu próprio sangue. Foi ao chão, sem forças.
Fernon observava-o com frieza enquanto An Lepard investia uma segunda vez contra o silfo. Enterrou sua espada covardemente no corpo prostrado do silfo. Lembrado-se do encontro no porto seguro, da traição de Erles sua ira cresceu. Em seguida, lembrou-se das humilhações e dores que sofreu, preso ao mastro do navio de Shark. Sua ira transformava-se em fúria. Seguiu com a carnificina, investindo uma terceira, quarta, quinta e sexta vez contra o corpo de Shark, que não mais respirava. Lembrava-se das torturas que sofreu na mansão em Aurin e crescia dentro de si, enorme satisfação a cada golpe que atingia o silfo.
– Já terminou? – indagou Fernon sarcástico.
As palavras de Fernon trouxeram An Lepard de volta a realidade, porém ainda furioso. – Maldito! Morte a Shark e seus aliados! – Com isso, o capitão avançou com sua espada contra o necromante. Enterrou-lhe a lâmina no abdome, e para sua surpresa, o necromante sorriu e em seguida gargalhou. – Ótimo trabalho! – disse com ares de loucura.
An Lepard soltou a espada e levou as mãos ao próprio abdome. Havia um furo, do qual lhe escapava fluido vital. Cambaleou e afastou-se horrorizado. Seu golpe, ao invés de atingir o necromante, tinha atingido a ele próprio. Fugiu mancando e aos tropeços. Buscava a companhia de Melgosh e Archibald.
Chegando até eles, deixou-se cair no chão. Seu sorriso estava manchado de sangue e sentindo dor, disse satisfeito. – Acabei com ele! Destruí Shark. Tomei minha vingança.
Archibald, um pouco triste, levou as mãos no ferimento do Dacsiniano, e, evocou preces curativas. Em instantes, foi capaz de conter a hemorragia e disse. – Precisamos levá-lo de volta ao navio, deve repousar.
Melgosh voltou a observar a rua, a procura do necromante, mas nada pode avistar. Nem mesmo o corpo do falecido Shark.
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