CAPÍTULO 36
As montarias estavam fatigadas. A estrada no baronato de Fannel, tornara-se irregular e cheia de grandes ladeiras. Após um dia, alcançaram o dobro da altitude anterior e os ares mudaram subitamente. O calor do verão sofreu um forte corte, e brisas frias e agradáveis cruzavam a estrada. Seguiam a pé, com exceção do barão Dagon e sua incansável montaria. Lorde Calisto acatou as recomendações do cavaleiro Derek quanto a ceder algum descanso às montarias, especialmente naquele trecho de grandes subidas.
Dali, podiam ver o planalto de Or, e a floresta de Shind como um tabuleiro verde e uniforme, perdendo-se no horizonte. Ao longe, o verde vivo da floresta esmaecia tornando-se um fraco azul acinzentado. Ao norte, podiam ver os imponentes picos da cordilheira de Thai, com seus cumes brancos e azulados.
Calisto seguia ao centro e em cantos opostos estavam o silfo Elser e o mago Yourdon. Após o confronto provocado secretamente por Calisto, passaram a se detestar. O rapaz de olhos negros, sentia-se cansado e desconfortável. Estava de mau humor e questionava o porquê de estar naquela situação. Estava ali, junto a um bando de estranhos, viajando em busca de um demônio rebelado. Qual seria o real significado daquilo. Com tantos necromantes, por que escolhê-lo para uma incumbência destas? Poderia ser algum tipo de teste, e sendo um teste, teria que passar. Apesar de todo seu poder, Calisto era muito perspicaz e sabia que ainda era jovem e tinha muito que aprender. Aceitava o fato de estar com os pés, pernas, virilha e costas doloridas como uma espécie de aprendizado. Seja como fosse, esse tal demônio rebelado sofreria em suas mãos. Calisto provaria a Thoudervon e a todos o seu valor.
Neste momento, Derek que seguia na dianteira do grupo, juntamente com Rayan, gritava algo. – Senhor! Chegamos.
– Chegamos? Mas não vejo nada.
– Não a nosso destino, chegamos à bifurcação na estrada que nos levará à Manille.
Calisto e ou outros alcançaram Derek tinha um olhar de satisfação nos olhos.
– O que há cavaleiro Derek? – questionou o pomposo Chris Yourdon.
– Chegaremos a Audilha em pouco tempo, antes do anoitecer! Vamos todos, vamos montar. – disse animado.
Yourdon ficou parado olhando para o radiante Derek, montar seu cavalo glabro. Calisto observou a expressão abobada de Yourdon quando ele indagou, – Cavaleiro Derek, o senhor tem família em Audilha?
– Não. – respondeu o cavaleiro sorrindo.
O mago franziu a testa. – Uma amante, então?
– Não. – disse novamente e tocou o cavalo na nova trilha que seguia para o norte.
Calisto impaciente revelou a Chris, – Vamos mago, suba em sua montaria e tire essa expressão idiota da face. Pode dominar os elementos da magia, mas está longe de compreender os sentimentos humanos.
Chris subiu em seu cavalo e indagou, – Qual o motivo de tanta animação? Se na realidade nos aproximamos de um momento difícil? Ele não percebe que nossas vidas estão em perigo?
– Suponho que sim. – Calisto impeliu seu cavalo cinzento ao trote. E Chris seguiu-o curioso. O jovem prosseguiu, – Conhecendo Derek, é natural imaginar que esteja animado justamente com algo muito simples. Comida e bebida.
– Não creio...
– Pois esteja certo, Derek não passa de um glutão. Pensava a viagem toda, apenas na boa comida das estalagens de Audilha e principalmente, no vinho e gentis serventes.
– E por que leva alguém como ele em suas expedições?
Calisto parou seu cavalou e explicou, – Seja o glutão que for sua função principal não é afetada. É um forte e destemido guerreiro, e principalmente, tem estômago. Em especial para as brincadeiras dos necromantes. – Neste momento o barão Dagon passou por eles deixando em seu rastro um forte cheiro de podridão. Calisto prosseguiu, – Ele é capaz de suportar por dias a companhia do barão Dagon, só isso já é um fato extraordinário. Um cavaleiro incomum, é verdade. Nem mesmo usa uma espada. Em seu lugar, usa aquele grande machado. Por isso, não duvide de suas capacidades de guerreiro. É mais equilibrado que muitos nobres e comandantes que já vi, e não é tão tolo quanto parece ser.
– Estou impressionado. – admitiu Yourdon. – O senhor parece possuir um talento especial para compreender as pessoas, Lorde Calisto. Selecioná-las segundo suas capacidades...
– Pois sim, caro mago. Use sua inteligência e junte-se àqueles que carregam o futuro em suas mãos. Avalie bem suas ambições e lealdades. Pois é isso que vejo em você, muitas ambições e poucas lealdades. Pense um pouco. Talvez, depois de lidar com o tal demônio, tenhamos tempo de discutir a respeito de lealdades.
Calisto impeliu seu cavalo com decisão e logo as mechas de cabelo que lhe caiam sobre a testa eram empurradas para trás pelo vento criado pelo movimento do cavalo. Um pequeno sorriso esboçou-se nos lábios do jovem de olhos cheios de trevas. Pensava consigo mesmo, “Ótimo. Logo terei sob meu comando um representante da Alta escola dos magos. Ele estará em minhas mãos antes que possa perceber”.
O pique dos cavalos não durou muito, mas, mesmo assim, chegaram a Audilha antes do anoitecer. Foram recebidos pelo comandante Weimart da milícia local e fiel ao Lorde Lenidil, senhor de Manille. Calisto soubera através de Chris, que as províncias montanhosas de Fannel, eram um tanto independentes, mas cooperativas. Weimart era alto e possuía fartos bigodes negros que desciam até o queixo. Seu olhar não temia nada e por isso encarou Calisto de uma forma que poucos faziam.
Calisto sentiu vontade de insultar ou atacar o homem de alguma forma, mas decidiu que era um momento de diplomacia.
– Olá senhor Weimart, sou Lorde Calisto.
– Sejam bem-vindos a Audilha. Reservei seis quartos em nossa melhor estalagem, pois pensei que estivessem em número de seis. – Nesse instante, cruzou olhares com Derek por um breve momento. Derek fechou a cara e girou o braço sentindo certo desconforto.
– Somos seis – disse Calisto. – Mas um de nós prefere acampar fora da vila.
– Entendo, de certo não deseja ser perturbado.
– Sim, diga a seus batedores para não se aproximarem do barão, ele é muito excêntrico e poderá machucar seus homens.
– Um nobre? – perguntou Weimart enquanto alguns criados se aproximavam oferecendo-se para cuidar dos cavalos.
– Excêntrico, como disse. Não gosta que sejam feitos comentários a seu respeito – encerrou Calisto acompanhando Weimart até a estalagem.
Elser logo atrás, usava um capuz para não atrair atenção. Observava o pavimento da rua, composta por pedras cinzas, com tons azulados, dispostas em padrão hexagonal. Estava muito impressionado com o efeito que isso fazia na medida que as pedras se distanciavam. Era fascinado por construções. A vila lhe era agradável e em algum sentido fazia com que se lembrasse de sua cidade natal, no alto dos montes da ilha dos Hiokar. Pouco depois, Weimart e seus homens os deixavam. Disse-lhes que voltariam mais tarde naquela noite, para discutir sobre os rebeldes.
Antes de subir as escadas para os quartos, Rayan comentou com Derek, – O tal comandante, estava falando do demônio? São mais de um?
– Não Rayan, falava sobre os rebeldes normais.
– Entendo. Diga-me cavaleiro Derek, já conhecia o tal comandante?
– Como assim?
– Tive a impressão de que se conheciam.
– Sim, ele vem da mesma província que eu, Vaomont, ao norte de Liont.
– Sabia. – disse e deu as costas.
– Não vai subir e descansar, Rayan?
– Não, vou circular pela vila. Reconhecer o terreno e procurar por amigos.
– Não desapareça. Lorde Calisto...
– Poupe o sermão Derek, estou indo fazer o que o querido Lorde me paga tão bem para fazer. Espionar.
Após algum descanso e banhos, Lorde Calisto e seus acompanhantes estavam bem dispostos e encontraram-se no salão da estalagem. Derek fora o primeiro a chegar mostrando logo o ouro que carregava. Pouco depois, estava rodeado por comida e bebida.
– Aproveite bastante Derek, pois logo vamos caçar você sabe o que.
– Hoje ainda, Lorde Calisto? – indagou o gigante loiro, com a boca cheia.
Calisto penteou os cabelos molhados com as mãos, afastando algumas mechas do rosto e sorriu. – Não, por hoje descansamos.
Elser apresentou-se. Calisto indicou-lhe o local para sentar-se e sorriu. Em seguida, o mago Chris chegou, vestindo calças cinzas e folgadas e um blusão branco. Sobre a cabeça, usava um pequeno barrete cor de laranja. – Boa noite! – disse gravemente. Sentou-se próximo a Calisto e cruzou olhares com Elser que tinha um incômodo sorriso debochado nos lábios e os olhos sombreados pelo capuz.
Houve certo silencio. Depois de alguns instantes, era possível escutar Derek mastigando e engolindo com grande satisfação. Calisto deixou-se distrair e olhou para o vazio, manipulando um copo de vinho. Deu espaço para sua percepção captar pensamentos e nuanças do seu ambiente. Elser tinha fantasias violentas com Chris Yourdon, enquanto cortava um pedaço de carne dura em seu prato. Já o mago odiava sua missão e lembrava-se das ordens de seu superior. Deixando a mesa, Calisto captou o temor das serventes e principalmente do dono da estalagem. Havia um medo incomum emanando dele, maior que a média. Encarou-o e neste momento, o homem, muito nervoso deixou cair a caneca que limpava. Calisto penetrou em sua mente e os olhos do estalajadeiro se arregalaram. Sim, ele havia ajudado rebeldes. Há poucos dias atrás houve uma briga na estalagem. Dois rebeldes dominaram o comandante Weimart e alguns guardas. Ele conhecia um deles, Will. Will era o nome do rebelde. Estava com medo de represálias. Sim, seria fácil fazê-lo cooperar.
Como prometera, Weimart chegou para que conversassem. Estava acompanhado por um cavaleiro de Fannel e cinco soldados da milícia local.
– Boa noite, Lorde Calisto. Trouxe comigo o cavaleiro Edréon, de Liont.
Calisto transferiu sua concentração do estalajadeiro para o cavaleiro recém Chegado. Edréon, curvou-se educadamente e disse. – Estou a seu serviço, meu lorde.
– Queira sentar-se. – indicou Calisto.
O cavaleiro tinha bigodes compridos, como os de Weimart, mas avermelhados. Era jovem, muito branco, com cabelos cacheados e usava uma capa verde. Edréon e Weimart se sentaram. Derek sorriu e ofereceu vinho somente a Edréon com animação exacerbada. – Há quanto tempo senhor! Fico sempre satisfeito em te ver.
– Obrigado Derek! Como vai Fortrail? É seu superior, não é mesmo?
– Sim. É um grande homem! Como sempre, a serviço do Rei. Um brinde ao Rei!
Calisto deu um sorriso amarelo e ergueu sua taça a contra gosto. Com exceção dos dois cavaleiros, que brindaram com vigor, o brinde foi murcho.
– Já está bom Derek. – ordenou Calisto.
Edréon percebendo que o Lorde estava ansioso por notícias anunciou, – Perdoe-me Lorde Calisto. Vim justamente para trazer-lhes informações. Estava presente na noite em que a coisa foi liberada.
– Estou ouvindo. – disse o jovem.
– Posso falar mesmo?
– Os que estão aqui estão preparados para ouvir e vieram justamente para a captura.
O cavaleiro concordou com um aceno e decidiu iniciar. Ao lembrar-se do que viu, Edréon perdeu um pouco do senso lógico. – Uma terrível visão! Eu vos digo. Uma criatura que não pertence a este mundo. Insanidade, com certeza. Uma terrível besta de fogo.
– Por favor, acalme-se! – ordenou Calisto.
Weimart franziu a testa. Não fazia idéia do que falavam. Para ele, discutiriam sobre a captura de rebeldes. Mas logo descobriria que estavam diante de algo bem pior.
Após beber uma taça de vinho num só gole, Edréon voltou a falar. – Tudo bem! Vamos do início. Vim para estas bandas a pedido de um bruxo, cujo nome não deve ser citado. Meu trabalho era capturar um rebelde perigoso. Um Tisamirense com poderes letais.
– Tisamirense, você diz. Qual seu nome?
– Radishi.
– Ótimo, prossiga.
– Pois bem, ao chegar fiz contato com Clefto e juntos preparamos uma emboscada para o tal Tisamirense. Mas falhamos. Fomos surpreendidos pelo Cavaleiro Vermelho.
– Cavaleiro Vermelho? – indagou Chris Yourdon.
– Sim, o mesmo das lendas. Mas real. O rebelde mais perigoso de toda a região, possuidor de uma legendária espada flamante.
Calisto sorriu achando a história muito interessante. – Prossiga Edreón.
– Pois sim! – e abaixou o tom de sua voz, quase sussurrando. – Seguimos a trilha dos rebeldes até o bosque. Um pequeno grupo. Além dos que citei, havia um silfo e outros dois. Conforme soube, um local chamado Will e um forasteiro chamado Vekkardi.
– Will, não é mesmo? – disse Calisto em voz alta encarando o estalajadeiro por um momento. O homem tremeu e virou-se quase se atirando atrás do balcão.
– Sim. – confirmou Weimart. – Este Will é um rebelde muito perigoso, precisa ser detido.
Edréon desamarrou uma pequena bolsa que trazia na cintura e colocou-a sobre a mesa. – Quando chegamos ao bosque, Clefto e um outro de sua estirpe chamado Hendrish convocaram a besta. Depois, como sabem, o bosque ardeu em chamas e nada sobrou em seu lugar. Eu e meus homens investigamos o local e não encontramos corpos. Hendrish foi embora e Clefto tentou capturar a besta e desde então desapareceu.
– Entendo. – disse Calisto. – E o que é isso? – apontou para a sacola.
– É o que encontramos, próximo ao rio. – Retirou da bolsa uma pequena garrafa metálica enegrecida. – Estava nas mãos de Clefto na última vez e o vi.
Elser arrastou a cadeira afastando-se da mesa e murmurou, – Fenat toei! Fenar toei!
Calisto examinou a garrafa com indiferença enquanto Chris arregalava os olhos e deixava o queixo cair. O lorde olhou-o de lado e demandou uma explicação.
Chris tocou-a com cuidado e disse assustado e maravilhado, – É um nexo. Muito poderoso, muito perigoso.
Calisto inquiriu, – De certo o que pode enviá-lo de volta, não é?
– Sim senhor.
– Pois bem, dê me isso.
Chris obedeceu e Calisto levantou-se. Levou o recipiente até a lareira e atirou-o nas chamas.
– O que faz, meu senhor? – indagou o mago preocupado.
Lorde Calisto empinou o nariz e declarou confiante. – Não estou interessado em mandá-lo de volta. Quero capturá-lo vivo. Quero subjulgá-lo.
A surpresa de todos manifestou-se de maneiras diferentes. Derek parou de comer. Elser contraiu os músculos, Chris abriu a boca descrente e Weimart ergueu as sobrancelhas sem entender bem a situação. Edréon teve a reação mais visceral. Ficou de pé e disse vem voz alta. – Não posso crer! Não compreende o poder daquela besta!
Os poucos clientes da estalagem ficaram alarmados e um murmúrio preencheu o local.
Calisto olhou-os com calma e disse, – Eu sei, eu sei caros habitantes de Audilha. Sei que sabem da terrível besta que está vagando causando morte e destruição. Mas acalmem-se, pois eu Lorde Calisto vim para salvá-los. Vim para afastar o mal e capturar todos esses malditos rebeldes. Sim, pois saibam que tais criaturas são trazidas pelos bruxos rebeldes que desejam o poder, desejam acabar com a paz. Desejam que haja caos, malditos aliados dos de bestiais e demônios.
Aproximou-se do estalajadeiro que suava como um porco e levou suas mãos brancas e lisas ao rosto suado. – Tenha calma! Tenha calma homem. Não tema os rebeldes. Eu sei como eles são. Eles fazem chantagens, não é mesmo? – O homem deu um sorriso nervoso. – Me desculpe, desculpe senhor! – e ajoelhou-se chorando. – Eu só acobertei os rebeldes por que tinha medo deles. Eles podiam destruir minha estalagem. Me perdoe, me perdoe Lorde Calisto.
– Viram isto? Viram essa comovente confissão? – sorriu Lorde Calisto deixando todos admirados.
– Não temam! É chegado o fim para esses arruaceiros. É chegado o fim para a rebelião. Logo não haverá mais medo, não haverá mais perseguição. Não haverá mais desconfiança. Haverá apenas a paz. Pois foi professado! Os deuses professaram. A Real Santa Igreja professou! Disse que quando as crianças com a marca do eclipse chegarem, um novo período dourado virá. Paz e prosperidade em todo nosso reino meus amigos. Paz e prosperidade!
Aproveitando a deixa, Derek ergueu sua taça e disse, – Um brinde ao Lorde Calisto! Um brinde à paz e a prosperidade.
Após alguns instantes de hesitação, todos na estalagem ergueram seus copos e taças em homenagem ao enigmático menino de olhos negros.
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