CAPÍTULO 24
A sorte estava lançada. Treze espíritos aventureiros, lançavam-se contra o perigo. Era alta madrugada e pouquíssima gente circulava pelas ruas tranquilas de Aurin. O portão principal da mansão de Shark era bem guardado. Toda a mansão era cercada por um alto muro de pedras lisas, difíceis de escalar. Havia dois sentinelas que eram observados cuidadosamente por olhares nervosos. Zoros aproximou-se lentamente do portão apoiado em uma bengala e vestido em trapos. Cambaleava e emanava forte cheiro de fovasco, um tipo de água ardente popular entre os silfos, produzida a partir das raízes leguminosas também usadas para produzir açúcar.
Forçou um tropeço caindo na direção da grade do portão. Segurou-se em uma das barras da grade e murmurou algo. Um dos sentinelas aproximou-se para enxotá-lo com o cabo da lança que carregava. Foi cutucado duas vezes com força, mas não largou o portão.
– Vai velho! Vá embora! Largue o portão e vá embora!
Zoros continuava com sua atuação insistindo em pendurar-se no portão, resmungar e xingar o sentinela procurando irritá-lo ao máximo.
O sentinela perdendo a paciência pediu auxílio ao seu companheiro.
– Já disse que o mataria, mas parece estar bêbado demais para entender.
– Muito bem, vamos arrastá-lo jogá-lo do outro lado da rua. – Retirou do cinto chaves do portão e antes que pudesse estranhou o súbito silêncio que o envolvera. Tentou falar e percebeu que não emitia nenhum som. Foi esta sua última percepção.
Duas flechas disparadas pelos Silfos leais a Melgosh atingiram-no, no peito e no pescoço. No entanto, não houve nenhum ruído sequer. Simultaneamente, outras duas setas atingiram o segundo sentinela que também morreu gritando envolto no campo de silêncio.
A fase inicial do plano tinha dado certo. Conseguiram abrir os portões e eliminar os dois sentinelas. Ao mesmo tempo, os outros sentinelas que estavam próximos da entrada da mansão, tinham cada vez mais forte em suas mentes vontade de dormir. Sentiam-se pesados e não puderam resistir à forte sugestão que Noran plantara em suas mentes.
Aparentemente tinham a situação sob controle, todos os sentinelas neutralizados e o portão estava aberto. Kyle, Archibald, Gorum e os quatro silfos fiéis a Melgosh juntavam-se a Zoros no portão. Enquanto isso, Noran pulava de cima do muro para aterrissar em plantas no jardim. Havia uma escada do lado de fora e era seguido por Kleon, Mishtra, Melgosh e Kiorina.
Enquanto os outros passavam pelo muro, Noran apressou-se em buscar chaves que estariam com um dos sentinelas próximos à porta principal da mansão.
Kyle sussurrava para Archibald, – Não gosto nada disso, está tudo correndo bem demais.
– Não seja pessimista, se tudo der certo, teremos total sucesso. – Respondeu no mesmo tom, ao atravessar o portão frontal.
Nesse instante, Noran retirava do cinto do sentinela adormecido as chaves da porta da mansão. Sentiu um calafrio e ao longe um traço de uma presença ruim. De costas para a porta encarou Kyle à distância, percebeu o desespero em seu olhar e viu o jovem levantar a mão direita lentamente indicando um perigo. Antes que pudesse gritar, escutou as intenções de seus pensamentos. “Cuidado Noran!!!” Não houve tempo para olhar para trás. Sentiu uma ponta gelada espetar suas costas, seguida de uma forte dor viu projetar-se de dentro de seu peito uma lâmina coberta com seu próprio sangue.
Kyle correu como um louco para socorrer o amigo. Mesmo ferido, Noran reuniu forças para encarar seu oponente. Ao vê-lo, entendeu porque não fora capaz de detectá-lo. Era um esqueleto animado, dele, nenhum padrão de pensamento era emitido. Com horror, mas com uma estranha calma, Noran observou um novo golpe da espada atingindo-o no abdome. Desligara sua mente conseguindo isolar a dor. Escutava a corrida de Kyle atrás de si e pensamentos e comentários horrorizados de seus companheiros. Escutou além das paredes, além de qualquer fronteira vozes mil. No terceiro andar da mansão, escutou a voz de Fernon dizer, – Que sorte! Eliminamos o mais perigoso!
Atrás do esqueleto, já com a visão turva viu criaturas mortas vivas. Mais esqueletos e seu silêncio mental, alguns zumbis com resquícios débeis de pensamentos, balbuciando palavras e repetindo ordens de atacar e matar em suas mentes. Atrás deles a fonte de sua ativação. Outro necromante, possuía a face pálida e um nariz muito pontudo, ele sorria e guiava os passos e ações das criaturas mortas vivas. Antes de perder os sentidos Noran lembrou-se de que já haviam se encontrado antes, tratava-se de Arete.
Kyle avançou por sobre o corpo de Noran atingindo o esqueleto com grande fúria. Sua espada partiu a espinha da criatura animada atirando seu corpo ao chão.
Atrás de Kyle a forte oração de Archibald combatia a magia do Necromante Arete. E pela força de sua fé, foi capaz de dissipar a energia maligna que mantinha os esqueletos de pé.
O choque de ver Noran tombar diante de seus olhos fez com que Mishtra voltasse a enxergar as ondas do mundo invisível mesmo sem querer. Viu uma forte aura luminosa ao redor do corpo de Noran. Mas logo seu olhar fora atraído para seu pai, que passava diante de si, correndo para a porta da mansão. Fixou os olhos num halo luminoso que havia ao redor do cabo da espada que seu pai mantinha embainhada.
Surpreendeu-se ao ver dois espíritos malignos surgir atravessando as paredes da mansão. Um deles avançou contra Kleon atingindo-o com suas garras afiadas. Kleon confuso golpeava inutilmente o vapor gelado que o atacava causando-lhe terríveis arranhões dolorosos. O outro espectro avançou contra seu pai. Mishtra enviou-lhe pensamentos de alerta. “Pai! Cuidado um espírito maligno atrás de você!”
Melgosh virou-se encarando o vapor azulado que avançava em sua direção. Respirou fundo, fechou os olhos e desembainhou a lâmina ancestral. Um forte ruído preencheu o lugar. Zoros ficou paralisado ao observar a espada que Melgosh usava. De imediato uma forte brisa atingiu o local fazendo tecidos e cabelos esvoaçarem. O vapor espectral desviou-se da espada enterrando-se no solo. Sob a visão de Mishtra, o espírito reagiu com horror ao encarara o brilho da espada, gritou e fugiu em desespero. O espectro que atacava Kleon também fora repelido deixando o katoriano no chão praticamente sem forças.
O vento aumentava cada vez mais e pequenas gotas d’água geladas acompanhavam a direção do sopro. O zunido do vento forçou Zoros a gritar, – Meu senhor! Coloque a espada de volta na bainha!
Melgosh atendeu ao apelo de Zoros e ao guardar a lâmina fez o vendaval cessar.
Enquanto isso Kyle e Gorum entravam na mansão. Blackwing era cercado por dois zumbis que ignoravam os golpes de sua espada, forçando-o a recuar. O gigante dava combate a um outro, que continuou lutando mesmo após ter o crânio rachado em dois por uma forte espadada. Sendo aquela uma operação em que a velocidade e o silêncio eram imperativos, Gorum e todos seus companheiros usavam pouca proteção ou nenhuma. Foi atingido com uma estocada no braço logo após separar o crânio de seu oponente morto vivo em duas partes. Reavaliou a condição da luta com cuidado, percebendo que não podia baixar a guarda mesmo quando surgisse uma situação favorável.
Mais em mais zumbis emergiam da escuridão e as gargalhadas de Arete ecoavam no rol de entrada da mansão. A partir de janelas e sacadas no segundo andar da mansão, guardas de Shark atiravam flechas contra os que estavam fora. Mishtra rolou na grama e respondeu com uma flecha certeira de seu arco. Os quatro silfos de Melgosh davam cobertura enquanto Archibald, Zoros e Melgosh entravam na mansão.
Kleon estava deitado e vulnerável, mas por sorte não fora alvejado pelos guardas no segundo andar. A principal preocupação deles era eliminar, os silfos de Melgosh e Mishtra.
Kyle perdia na luta contra os zumbis, eram incansáveis e incapazes de sentir dor. Mesmo decepando o braço de um de seus oponentes, que no momento somavam quatro, não conseguia derrotá-los. Foi desarmado por uma mordida em seu pulso.
Gorum dividira um zumbi em dois com um corte horizontal, mas a criatura arrastava-se sem as pernas e segurava suas pernas. Archibald imprimia fortes golpes com um bastão ajudando Kyle a livrar-se de um zumbi que o agarrava.
Zoros preparava um feitiço para atacar Arete, mas nunca consegui finalizá-lo. Fora vítima de uma terrível maldição que fazia surgir besouros em sua boca. Cuspia-os aos montes incapaz de recitar palavras para desfazer a terrível magia.
Melgosh eliminava zumbis com facilidade e em poucos momentos tornou-se o foco de atenções de Arete. Sua espada vibrava e espalhava pedaços dos zumbis em todas direções. Arete foi ágil em convocar os dois espectros para um ataque sorrateiro contra Melgosh. Surgindo do solo, logo atrás do silfo, um deles investiu contra e perna esquerda e o outro mirou as costas. Sentindo fortes dores, Melgosh ficou de joelhos e brandiu a espada para atingir um dos espectros. O simples contado da lâmina com a criatura fez com que estourasse. O outro aproveitou-se do momento para atingir a cabeça do silfo. Sentindo facas geladas penetrando em seu crânio, perdeu os sentidos largando a espada.
Gorum avançou para obter a espada mas foi atacado pelo espectro. Zoros esforçou-se para dizer, entre um cuspe e outro, – Não! Arcgh! Toquem... Ptchu! Na espad...ugwarrrr...
Archibald percebia que a situação piorava cada vez mais.
Do lado de fora, dois silfos ainda davam combate aos arqueiros do segundo andar, que eram muitos para contar. Mishtra escondia-se atrás de um arbusto e tinha uma flecha atravessada no antebraço. Concentrou-se por um momento. Preocupada estabeleceu contato com Archibald., “Meu amor! Você está bem?”
Archibald estava ocupado tentando defender Kyle com seu bastão e respondeu falando, – Ainda luto! Saia maldito! Mas...
Mishtra sentia-se inútil. Em um momento decisivo ficara atordoada pelas visões do mundo invisível. Agora estava ferida e podia ser alvejada a qualquer momento. Tentava contato com seu pai, mas não conseguiu. Escutava gritos de Gorum, a voz de Zoros, diversos gemidos, gritos e risadas. Não captava sinais de Kiorina. Teria sucumbido também? Teria morrido atrás de seu amor? Sabia que morrer assim valia a pena. Fazendo força, usou seu espadim para cortar a ponta da flecha. Retirou-a do braço combatendo a dor com sua vontade.
Fernon divertia-se junto a Shark e sua irmã, Madame Hyunda, observando os eventos através de uma esfera de cristal. Arete evocava outro feitiço que fez com que a espada girasse pelo solo até chegar a seus pés. Ao tocá-la teve um choque. Sua percepção alterou-se e visualizou em sua mente o inimigo que mais desejava encontrar. A silfa que quase tirou sua vida com uma flechada no pescoço, na estrada para Lacoresh. Observou o progresso da luta e satisfeito com o que viu, evocou seu feitiço de transmutação. Converteu-se em dezenas de besouros ágeis que cruzaram os salão dirigindo-se aos jardins da mansão. Deixou para trás suas roupas e a espada de Melgosh que atingiu o chão de pedra emitindo uma vibração aguda e descansou próxima às escadarias que levavam ao segundo andar da mansão.
Gorum não pôde combater o espectro e tombou em seguida. Kyle tomado por forte emoção entrou em profunda concentração. Sentiu seu sangue esquentar e seus pelos arrepiar. De mãos limpas atingia os zumbis, minando suas forças com poucos golpes. Primeiro salvou Archibald que estava caído no chão com um zumbi por cima que mordia seus braços. Percebeu que o espectro tornara-se nítido e partiu para o ataque. Teve seu braço esquerdo arranhado, mas em seguida acertou-lhe golpes que fizeram com que sofresse. Em seguida, o espectro dissolveu-se num caldo opaco um pouco brilhoso.
Mishtra assustou-se a ver besouros negros se juntarem diante de si. Sem conseguir reagir prontamente teve a garganta atingida pelas mãos brancas de Arete que surgiram a partir dos besouros. Cravando-lhe unhas compridas, o necromante nu, sugava-lhe as forças vitais. Arete gargalhava e mantinha os olhos vidrados no rosto de Mishtra, sentindo enorme prazer. Em desespero a silfa atirou-se para o lado saindo de trás do arbusto. Os muitos arqueiros posicionados nas janelas e sacadas atiraram flechas na direção dos dois. Arete gritou irado, com três flechas atravessadas em seu corpo. Uma na coxa direita, uma no ombro esquerdo e outra no abdome. Mishtra também fora acertada por duas flechas. Uma pegou-a pelas costas e outra acima das nádegas.
A silfa caiu de lado e teve forças para arrastar-se de volta para a cobertura da folhagem. Arete mal acreditava no que acontecia e irado lançou maldições contra os arqueiros. Três deles escorregaram e caíram com das sacadas acertando as cabeças no chão de pedra. Uns assustados com o que viram esconderam-se mas outros reagindo com grande reflexo dispararam mais flechas na direção do bruxo. Duas mais o atingiram, no peito e no braço esquerdo. O necromante fraquejou caindo com a face contra a grama. Uma das flechas enterrou-se mais fundo em seu peito pressionada pelo solo.
No terceiro andar Fernon xingava, – Idiota! Idiota! Idiota!
Hyunda, um silfa de cabelos negros que vestia-se de forma extravagante, comentou, – Parece que os humanos acabam por fazer besteiras mais cedo ou mais tarde, não é mesmo irmãozinho?
Shark sorriu, mas também ficou ligeiramente nervoso. Além do mais, detestava quando sua irmã chamava-o de irmãozinho. – Fique quieta, Hyunda! – encarou Fernon e disse, – Talvez devamos enviar o restante dos guardas agora.
Fernor respondeu. – Sim, estão debilitados e não poderão lidar com tantos guardas.
Shark deu o sinal para o capitão de sua guarda que aguardava instruções, próximo ao corredor que levava às escadarias.
Hyunda impaciente cobrava de seu irmão, – E então irmãozinho, e quanto a moça ruiva por quem o assassino miserável está apaixonado? Onde está? Não posso esperar por uma tortura tão deliciosa! – Os olhos de Hyunda brilhavam como os de uma louca. – Torturar a menina em sua frente e depois, quem sabe? Fazê-lo cozinhar e comer a própria amada!
– Hyunda, você é doente! – sibilou Shark. – Mas é por isso que gosto de você! Shark saltou assustado pelo estrondo que penetrara o ambiente. Atravessando um dos vitrais, envolvida em chamas, Kiorina pousou próxima a Hyunda. Irada apontou a mão na direção da silfa e gritou. – Estava procurando por mim? Bruxa asquerosa!! – Enquanto falava projetou um forte jato de chamas que incendiou o vestido de Hyunda.
A silfa envolvida em chamas gritou em agonia. – Irmão! Faça alguma coisa! Salve-me!
Shark, face a face com um perigo mortal, foi célere em acionar um dispositivo que fez girar a cadeira em que estava sentado jogando-o para o interior de um corredor secreto. Kiorina concentrada em Hyunda não pode ver de que maneira o silfo desaparecera. Reconheceu o necromante e pensou que talvez devesse tê-lo atacado em primeiro lugar. Hyunda em desespero atirou-se através do portão de vidro e depois da sacada, lembrando-se dos lagos que havia nos jardins da mansão.
– Fernon!! – Kiorina gritou assustada. Num rápido reflexo atirou uma bola de fogo contra seu antigo algoz.
Fernou aceitou a bola que tocou-o sem causar efeito. – Finalmente nos encontramos de novo, Srta. DeLars. Vou adorar tê-la de volta nas minas.
– Seu monstro, o que faz aqui? Onde está An Lepard? – aos poucos as chamas que envolviam a feiticeira dissipavam-se e ela temia o que poderia lhe acontecer.
– Vim para buscá-los. E quanto a seu queridinho, como pode deixar de notar sua presença? – Fernon indicou o corpo pendurado em correntes do outro lado do salão. Kiorina sentiu um forte aperto no coração e distraiu-se.
Fernon convocou pragas malignas e movendo-se como uma sombra tocou o rosto da ruiva. O toque gelado paralisou seu rosto e sua boca ficou dormente. Não podia falar nem tão pouco realizar magias em geral, mas as magias do fogo... Tentou novamente queimar Fernon, mas de novo as chamas não fizeram efeito.
Fernon riu. – Impressionante! É capaz de chamar o fogo sem pronunciar os ritos... Tola! Não pode me atingir com magias elementais. Durma antes que cause mais estragos por aqui... – Tocou-lhe a testa causando grande fraqueza e tirando-lhe os sentidos.
Kyle sentia seu corpo reagir como um pequeno bote em meio ao oceano furioso. Sua vontade e suas forças eram pequenas diante das ondas energéticas que varriam seu corpo trazendo à tona instintos de luta. Percepção e reação fluíam diretamente do seu âmago para suas ações coordenadas, usando todos os músculos de seu corpo. Desta vez, tinha uma fagulha de consciência do que ocorria. De alguma forma seu corpo, toda sua carne, ossos e pelos estavam conectados com uma força superior. E soube naquele momento, que era parte de um todo. O mesmo todo que Noran podia contactar e transformar. O mesmo todo que Kiorina era capaz de contactar e transformar. O mesmo todo que Archibald podia contactar e transformar. Era aquele imenso oceano, o próprio cosmos com o qual tinha contato naquele momento. Era enorme e incompreensível, tocava e percebia apenas uma pequena fração deste. Percebeu que havia algo que conectava tudo. Conectava todos. Noran podia ler mentes, podia até controlá-las. Kiorina podia mover os ventos, criar chamas e diversos outros efeitos mágicos. Archibald evocava força, agilidade e gentis poderes curativos. E naquele ínfimo instante de iluminação, que ocorreu entre dois golpes de seus punhos, Kyle Blackwing percebeu que também tinha sua própria forma de interagir com o todo. Ele lutava. Seus sentidos estavam ampliados e seu corpo era envolvido por uma energia fantasmagórica que podia ferir aqueles seres malignos. E de todos aqueles pensamentos, foi este último que fixou-se em sua mente. Podia ferir os seres malignos, podia ferir as criaturas mortas vivas, incluindo espectros.
Com os zumbis e espectros derrotados, Kyle, Archibald e Zoros eram os únicos de pé no grande rol da mansão de Shark. Archibald apertava com força uma tira de tecido de suas próprias vestimentas ao redor de seu braço esquerdo, ferido pelos zumbis. Zoros sentia em sua boca o gosto amargo deixado pela nigromancia de Arete, misturar-se com o gosto de seu próprio sangue.
Os sentidos de Kyle foram atraídos para os dois lances de escada que davam acesso ao segundo andar, no fim do rol.
Archibald anunciou. – Vão sem mim. Estou ferido e preciso cuidar de nossos companheiros caídos. Se não receberem cuidados...
Kyle compreendeu as palavras de Archibald que chegaram a seus ouvidos um pouco abafadas. Precisava manter-se concentrado para permanecer em conexão com a energia. Sabia que simples palavras poderiam por fim ao seu esforço e concordou com um aceno positivo. Zoros advertiu Archibald apontando para a espada de Melgosh, abandonada por Arete. – Não toque a Maré Vermelha! Isto pode trazer conseqüências graves e imprevisíveis.
Archibald clamou, – Que os deuses os levem e tragam em segurança.
Zoros seguiu em direção à escadaria da esquerda enquanto Kyle dirigiu-se para a outra. Ambas eram largas e possuíam degraus cobertos por um carpete vermelho. Os corrimãos eram belíssimos e tinham diversos detalhes dourados.
Subindo os degraus, o silfo e cavaleiro depararam-se com uma dezena de guardas sílficos que desciam armados e prontos para um confronto. Zoros produziu um esguicho d’água que se partiu em milhares de gotas umedecendo vários degraus superiores. Um segundo feitiço levou um vento gelado que criou uma fina camada de gelo. Sem exceção, os quatro guardas que desciam em sua direção caíram, deslizaram e o rolaram por vários degraus. Com os oponentes caídos, Zoros pôde lançar novos esguichos d’água, desta vez mais volumosos e pouco depois crescer em toda parte cristais de gelo que uniam-se uns aos outros formando uma rede que além de capturar os quatro guardas, desencorajava qualquer um de atravessar a escadaria naquele ponto. O velho feiticeiro sílfico demonstrava sérios sinais de fadiga, mas reuniu forças para prosseguir. Afinal, para ele, o gelo não era um sério obstáculo.
Kyle, por sua vez, tinha mais dificuldade em lidar com o capitão e os quatro guardas que desciam na escadaria direita. Percebeu que estava em desvantagem. Ainda assim pode com movimentos ágeis desviar-se da lâmina do primeiro guarda. Segurando-o pelo braço lançou-o, por sobre seu corpo, escada abaixo. Forçado a recuar chegou novamente ao rol onde escutou os cânticos curativos de Archibald operando para trazer de volta os sentidos de Gorum e Melgosh. Como que por coincidência, pisou sobre a lâmina de Melgosh, que Zoros chamara de Maré Vermelha. O capitão, vestindo uma placa prateada sobre o peito e carregando uma bela lança de mesmo brilho investiu contra Kyle. O cavaleiro foi ao chão girando sob seu próprio corpo e envolvendo com os dedos o cabo frio e de relevo espiralado da Maré Vermelha. Naquele momento, sua concentração quebrou-se, mas uma imagem surpreendente surgiu-lhe na mente. Viu a imagem de Fernon, no terceiro andar da mansão apreensivo aguardando o resultado final da batalha. Deitado no chão, Kyle golpeou a perna esquerda do capitão da guarda de Shark, atingindo-a na altura do joelho e parindo-a como um graveto. O capitão gritou o foi a chão levando ambas as mãos à perna esquerda, que não sangrava. O corte gelado da lâmina, congelou o sangue na superfície de corte decepando a perna sem derramar sequer uma gota do líquido rubro. De posse da lâmina encantada, Kyle enfrentou os guardas um a um derrotando-os sem dificuldades. Neste momento, um grande e forte vento espalhava-se por toda a mansão. Objetos eram derrubados e quebrados, quadros e papéis voavam, portas batiam e janelas eram abertas. No segundo andar, alguns arqueiros foram projetados para fora, enquanto outros se seguravam nas grades para não voar. Os cabelos e as roupas de Archibald, chicoteavam no ar e de olhos fechado intensificava os cânticos curativos que traziam seus primeiros efeitos em Melgosh e Gorum.
Fernon pressionava o estranho anel que tinha em sua mão esquerda e observava apreensivo o que ocorria a sua volta. O vento parecia não afetá-lo, mas via tudo que estava ao seu redor mover-se. Evitou uma pesada cadeira que voou em sua direção mas foi atingido por um prato que estilhaçou-se em seu ombro, causando-lhe muita dor. As correntes que prendiam An Lepard no teto, no encaixe de um lustre eram fortes, mas o teto logo cedeu levando o corsário de encontro ao solo. O corpo de Kiorina era arrastado lentamente no chão carpetado.
Kyle avançava sem dificuldades, inabalável pelo vento que era cada vez mais úmido e gelado. Zoros segurava-se ao corrimão e gritava desesperado. – Kyle! Guarde a espada! Guarde a espada antes que seja tarde demais! GUARDE A MALDITA ESPADA!
Kyle via Zoros sendo castigado pelos ventos e gritando algo que mal podia escutar. Lutou para guardar a espada, que por um instante, parecia ter vontade própria e querer continuar sendo empunhada.
Aos poucos o vento abandonou o local, deixando-o totalmente molhado e revirado.
Zoros disse aliviado, – Graças aos espíritos da água! Você foi forte o bastante para impedi-la!
– Impedi-la?
– Sim... depois eu lhe explicarei. Por hora, precisamos subir. Pressinto a raiz de todo o mal que vimos acima de nós. Precisamos lidar com isto agora.
Fernon apalpava seu ombro e verificava com grande ódio, sua preciosa bola de cristal, estava em pedaços. Seus cabelos e seu corpo estavam encharcados. Não fosse sua proteção contra os elementos estaria tremendo de frio. Neste momento não podia prever os acontecimentos. Começava a perder o controle da situação e não gostava nada disso. Seu coração acelerado temia o que podia acontecer e sua mente perversa voltou-se para uma coisa só. Seu anel. A grande pedra negra, em forma de ovo, perfeitamente polida presa ao anel por pequenos e delicados ganchos de metal. Precisava usar seu presente, precisava chamar Mirtzlorgh. E assim o fez. Pensou no grande mal, humilhou-se e pediu-lhe auxílio.
– Mirtzlorgh, oh criatura dos abismos! Senhor das trevas que me guia. Ajuda seu servo em seu momento de agonia! Dê-me a vingança de que preciso. Venha a mim, Mirtzlorgh! Ouça a voz daquele que já lhe ofereceu grandes sacrifícios. Ajuda seu servo em seu momento de necessidade!
An Lepard, desperto e sem forças observava com horror a expressão de loucura do homem que evocava o mal. Uma voz negra e distorcida preencheu o recinto partindo do anel, fazendo o coração de An Lepard comprimir-se. – Fernon... Eu te escuto. Estás longe do templo... Estás longe de nós, mas ainda assim o escuto. Como sempre, o que lhe dou, tem seu preço...
Fernon tremeu e gritou. Ajoelhou-se no chão sentindo muita dor e observou sua mão murchar diante de seus olhos. Toda carne se esvaiu, e sua pele encolheu e ajustou-se, negra ao redor de seus ossos. O anel brilhou com uma bola de escuridão e desta, uma fumaça púrpura escapou. Fernon gemia enquanto a fumaça tomava forma ao seu lado.
Kyle e Zoros entravam no salão naquele momento. Zoros assustou-se com o que viu. Kyle observou o local e percebeu o corpo de Kiorina caído no canto. Furioso desembainhou a Maré Vermelha e partiu contra Fernon. A fumaça púrpura colocou-se na frente de Kyle e num instante deu forma a um terrível demônio.
Do anel, a voz de Mirtzlorgh disse, – Eu te dou, Fernon, um de meus filhos, Miorcrovus.
Miorcrovus era uma criatura horrenda. Possuía seis pernas peludas como as de certas aranhas. Acima destas, sua cabeça, tórax e abdome fundiam-se numa forma tubular lisa e gosmenta, em cuja ponta havia uma boca em forma de disco com centenas de dentes pontiagudos. Seus olhos eram mais de quarenta, vermelhos como brasas, dispostos em linhas circulares ao redor de seu pescoço. Logo acima do que parecia ser seu abdome, projetavam-se radiados, uma dezena de compridos tentáculos amarelados.
A criatura disse numa voz estridente, horripilante e descompassada. – Vou comer suas carnes e almas, ridículos mortais!
Kyle sentiu o horror da criatura, mas no momento sua fúria era maior e brandiu a Maré Vermelha contra um dos tentáculos amarelos decepando-o. O demônio chiou e com grande ódio, projetou quatro tentáculos contra Kyle. Os tentáculos possuíam pequenos pelos amarelos, como os de certas lagartas. Um deles enrolou-se no braço de Kyle com força. Kyle sentiu o toque do tentáculo como um fogo quente que lhe queimava a pele.
Fernon arrastava-se e pressionava a mão degenerada contra o peito cobrindo-a com sua mão saudável.
Em seguida, o outro tentáculo, muito ágil envolveu o braço com o qual Kyle empunhava a Maré Vermelha. O demônio lhe disse, – Solte esse brinquedo menino... – Com grande violência girou o Kyle retirando-o do chão e batendo-o contra a parede. Uma, duas, três, até que na quanta vez Kyle não resistiu e soltou a espada, justamente no momento em que uma leve brisa fria preenchia o quarto.
Vendo a espada atingir o chão, o demônio aproximou de Kyle já inconsciente. A boca horrenda da criatura quase dobrou de tamanho ao abrir-se.
Neste instante, Zoros liberava toda sua energia em sua última cartada. Uma forte magia que evocou uma dezena de dardos de gelo que voaram com precisão contra o corpo disforme de Miorcrovus. Os dardos, do tamanho de espadas, enterraram-se na criatura que soltou Kyle no chão. Perdendo o equilíbrio, o demônio abriu as pernas tombando contra o chão. Para evitar o impacto, a criatura apoiou-se no chão com os tentáculos.
Kyle que estava inconsciente, ao atingir o solo visualizou uma forte e cegante luz dourada. Despertou em seguida e viu a criatura arrancando com os tentáculos lanças de gelo encravadas em seu corpo. A coisa gritava e parecia xingar em uma estranha e sinistra linguagem. Zoros transpirava e não tinha forças para ficar de pé. Não poderia evocar sequer um simples feitiço. A criatura se recompunha retirando, um dardo após o outro e parecia recobrar suas forças. – Tolo! Despresível... Vou fazer você sofrer seu maldito elfo. – A criatura mancava, com um dardo atravessado em uma das pernas e aproximava-se de Zoros cada vez mais.
Kyle tentava ficar de pé, mas sentindo uma dor lancinante, percebeu que havia fraturado a perna direita, na altura da canela. O cavaleiro, visualizou a Maré Vermelha, no chão e fazendo grande esforço arrastou-se em sua direção. Seus braços ardiam, e neste momento percebeu que havia bolhas vermelhas em tiras, justamente onde fora envolvido pelos tentáculos.
Zoros perdia as esperanças e via a morte horripilante aproximar-se. Desesperado, arrastava-se na direção contrária buscando as escadas. Sentiu uma forte pressão no tornozelo esquerdo. Fora capturado por um dos fortes tentáculos da criatura. Zoros cravava as unhas no chão, mas era arrastado para trás puxado pela criatura que salivava esticando a boca na direção do mago.
A dor de Kyle era imensa e não conseguia alcançar a espada. Lembrado-se dos ensinamentos de Noran, procurou concentrar-se. Precisava meditar, somente através da meditação teria alguma chance. Como que por milagre, escutou vozes do além. Dentre elas, escutava a voz de Noran.
Noran soava desesperado, “Eu preciso ajudá-los!”
Uma voz calma e plácida respondeu, “Não Noran, você não pode. Seu tempo acabou. Seu corpo já se foi. É hora de vir conosco.”
“Como assim não posso? Quem irá me impedir?”
“Por favor não vá!” pediu a voz de um homem. Uma voz feminina disse, “Se não voltar conosco, não poderemos ajudá-lo, você irá cair.” Outro completou, “Você já tem maturidade para entender, o destino deve seguir seu curso. E por hora, seu tempo de interferir terminou. Assim é a Lei.”
“Dane-se a Lei! Meus amigos estão sofrendo e morrendo lá, e eu não quero ir. Vou ajudá-los.”
“Se é assim, que você quer. Não poderemos ajudá-lo. Ficará preso.”
“E quanto a Kyle? Ele ainda está lá? Mas pelo que entendi, sua hora já passou.”
“Um infeliz acidente.”
“Já tomei minha decisão! Vou ficar.”
“É triste ouvir isto meu caro Noran, pois você merecia algo melhor.”
Zoros estava suspenso no ar pelos tornozelo. Encarava a terrível boca do demônio e sentia seu hálito sulfuroso. Foi solto pela criatura que contorceu-se num grande espasmo.
– O que? O que é isto? – urrou o demônio. – Não! Pare! Pare seu maldito, isso dói demais!
Kyle observou a criatura contorcer-se atirando-se no chão, xingando e gritando desesperada. Sua pele tornou-se instável e dela, jatos de gás púrpura saíam. Logo uma grande quantidade de muco borbulhante tomou o lugar da criatura e uma forte concentração da fumaça púrpura dispersou-se pouco a pouco.
Kyle virou-se procurando por Fernon, não havia sinal do necromante. Viu apenas Kiorina tossir e abrir os olhos.
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