CAPÍTULO 18

As torturas pelas quais An Lepard passava já teriam destruído a vontade de viver da grande maioria das pessoas. No entanto, em seu coração e em sua mente, uma forte combinação de sentimentos fazia-no resistir mantendo a sanidade. A vingança que desejava ter contra o traidor Erles, seu braço direito, lhe dava forças. O Amor que sentia por Kiorina, lhe dava esperanças. Quanto a seu corpo, percebeu que após torturas em série, sua sensibilidade diminuía, ou talvez sua resistência à dor aumentasse.

Outros pensamentos secundários o animavam ocasionalmente, como imaginar uma forma de livrar o mundo da existência de Shark, ou navegar de volta a sua cidade natal, beber com os amigos e dançar nas tavernas até o dia chegar.

Shark poupava suas piores torturas na manga, pois não queria estragar o presente para sua irmã, que chegaria em breve vinda de sua propriedade numa província interiorana da ilha de Frai. Queria preservar as forças do corsário para que sua irmã pudesse decidir que a que tipo de torturas o assassino de seu filho seria submetido. Shark tinha convicção de que sua irmã deixaria que ele fosse o idealizador e executor das torturas mais divertidas e prazerosas.

Enquanto o momento não chegava, achava um desperdício deixar que An Lepard descansasse a espera de Madame Hyunda. Além disso, Hyunda ficaria feliz em saber que o assassino de Sinevall, sofrera torturas enquanto aguardava sua chegada. Shark era um silfo cruel, além das médias de seu povo e por vezes seus próprios homens tinham reservas a sua forma de agir.

O salão luxuoso da mansão favorita de Shark era belíssimo. Sua decoração fora feita pelos mais talentosos artistas sílficos de todo o arquipélago. Ficava no terceiro andar e uma de suas paredes era coberta por vitrais e portões de vidro. Dali tinha-se uma bela vista de toda a baia de Aurin. Tons avermelhados eram usados em quase todas as peças de decoração e pinturas.

Shark reunia-se com clientes ao redor de uma grande mesa coberta com uma tolha amarela com bordados vermelhos. Ao seu lado, An Lepard, seminu girava lentamente preso ao teto por correntes no local onde um dos cinco lustres ficaria. Dois carrascos ficavam de plantão permanente municionados com os mais diversos instrumentos de tortura. Agulhas, lâminas, fogo, essência de pimenta, sal, chicotes, etc. O corpo do corsário estava repleto de chagas e no momento estava inerte e silencioso.

Após almoçarem e acertarem os negócios discutiam algumas trivialidades.

– Caro Shark, tu não exageras, ao manter em seu salão de negócios um prisioneiro sob tortura? – indagou um velho silfo que se vestia sobriamente com roupas cinzentas.

– Exagero? – exclamou Shark de forma teatral. – Ellosh! Vinte chibatadas e depois, salpique pimenta nos ferimentos!

Sem esperar, o carrasco começou a castigar o prisioneiro.

Sob os estalos do chicote e os gemidos de An Lepard, Shark prosseguiu, – acha que exagero por torturar o assassino de um dos nossos? O assassino de uma tripulação inteira dos nossos? O assassino de meu querido sobrinho Sinevall?!

– Não, não é o que quis dizer meu caro. Apenas me referia ao fato de que isso está sujando seus tapetes, enchendo o ar de seus finos aposentos com o fedor horroroso desta pobre criatura humana.

– Ah... Isso? Muito pelo contrário Lorde Guiss, isso valoriza minha decoração. Valoriza meus aposentos e me enchem de alegria. Pense bem, quando daqui a duzentas estações, eu olhar para as manchas neste tapete, vou lembrar-me que através delas fez-se parte da reparação, do irreparável assassinato de meu querido Sinevall.

Neste momento, o carrasco terminava o castigo e seu assistente esfregava uma esponja embebida em essência de pimenta nas costas pulsantes de An Lepard. O salão foi preenchido pelos terríveis gritos de agonia do corsário seguidos das horrendas gargalhadas de Shark.

– Muito bom! Muito bom! – disse o cruel silfo ao levantar-se. Gostava de participar das torturas e atingiu o prisioneiro com uma seqüência de socos e pontapés.

Lorde Guiss pediu para que Shark parasse alegando sentir um mal estar em suas entranhas.

– Perdoe-me a indelicadeza Lorde Guiss, esquecia-me que acabávamos de almoçar. Que tal continuarmos nossa conversa na varanda?

O velho silfo e seus acompanhantes aceitaram a proposta com alívio.

– Garotos... – chamou os carrascos. – Sejam maus com ele enquanto me ausento. Mas lembrem-se. Sem exageros... Deixe-os para amanhã. De certo vamos cometer um excesso ou dois com a chegada de Madame Hyunda.

Os carrascos escolhidos a dedo por Shark por sua crueldade, sorriram sadicamente voltando a castigar An Lepard.

Fora do salão, Lorde Guiss respirava aliviado e pensava na insanidade de Shark. Arrependia-se parcialmente dos acordos que fizera com ele, mas por outro lado, se quisesse obter a posição que desejava precisava acumular recursos e estender suas conexões e influências. Mesmo sendo Excêntrico, Shark era um dos melhores negociantes de todo o arquipélago e sua boa fortuna já era reconhecida, inclusive pela família imperial. Invejava a amizade que Shark possuía com o Príncipe Kiel e sua penetração na corte.

Gshandei, um jovem e elegante silfo, braço direito do Lorde Guiss disse, – Senhor Shark, já ouviu sobre os últimos comentários vindos do porto?

– A que se refere, caro Ghsandei? Refere-se a embarcação humana que atracou no porto principal no fim desta madrugada?

– Sim, há algo de intrigante quanto ao caso. Serão humanos corajosos ou apenas estúpidos? Afinal, o que pode esperar uma tripulação humana atracando em nossos portos?

– Ainda não sei, mas em breve terei detalhes. Tenho com seu capitão um jantar agendado para esta noite.

Lorde Guiss surpreendeu-se. –Tu és veloz em suas conexões, caríssimo Shark. Pois então, podes nos contar o que descobriste a respeito dos estranhos forasteiros?

– Pois sim, estimado Lorde Guiss. São provindos do Reino de Lacoresh. Acredito serem portadores de um poder de combate considerável. São manipuladores das esferas abissais da magia e, pouco antes de sua chegada, afundaram um navio escravagista. Felizmente, não foi um dos meus.

– E o senhor vai recebê-los?! – exclamou Gshandei. – Não seria loucura? E quanto a Guarda Aurínea? Não foi acionada? Como pode ser uma coisa destas?

– Interferi no assunto e pedi para que os forasteiros fossem recebidos, por serem meus convidados.

– São vossos convidados, então? – indagou Guiss.

– Bem, digamos que agora o são.

***

A escuridão chegara. Era uma rara noite de escuridão, muitas estrelas podiam ser vistas nos céus. Naquela noite, nenhuma das nove luas nos céus, nenhuma luz exceto a vaga luz das estrelas. Em outra cidade, que não Aurin, isso significaria uma imersão em um profundo breu, porém a imponente cidade sílfica, era iluminada como nenhuma outra por milhares de focos de luz mágica. Sendo uma bela cidade durante o dia, sua beleza tornava-se insuperável durante as noites, especialmente noites sem luas.

Shark usava uma toca vermelha sobre a cabeça, argolas nas orelhas, vestia uma camisa folgada de seda branca, calças vermelhas, muito justas, e botinas brancas de ponta fina. Amava a vista de sua sacada em noites como aquelas. A maré estava cheia e gostava de observar o reflexo das luzes distantes no mar. Havia muitas baias em Aurin, e de sua sacada observava o cabo no qual fora construído o maior dos faróis de Aurin, a Torre Fressni. Num instante, o silfo após uma breve brisa gelada, sentiu um aperto em seu estômago. Sentiu crescer sobre suas costas uma sombra, algo raso. Virou-se.

Lá estava, atrás de si, um humano de características peculiares. Tinha sua altura, seus cabelos pareciam ser feitos de um material quase sólido, eram encaracolados e duros como buchas, despenteados formando diversas pontas. Seu olhar era fixo como se fosse feito de vidro e seu rosto magro lembrava fome e morte. Suas roupas escuras e sujas subiam até o pescoço.

– Sua aparição, por assim dizer, não era nada menos do que esperava. Seja bem-vindo ao meu lar.

O humano disse num tom sombrio e sólido, – É um prazer conhece-lo senhor Shark. Chamam-me de Fernon. Venho das terras de Lacoresh.

– É um humano incomum, diria eu, não é mesmo senhor Fernon?

– Fernon apenas... Tais formas de tratamento não combinam comigo.

– Certo Fernon. Que tal entrarmos?

Fernon sorriu. – Sim. Diria que estou fora da média. Fora do cíclo: mulheres, comida, trabalho e descanso. Tenho meu olhar voltado para as grandezas deste mundo, e a sutileza de outros tantos.

Fernon fixou seus olhos em An Lepard. Sorriu novamente e disse, – Adorei sua decoração. Recomendarei ao meu senhor com toda a certeza, sabia que uma viagem iria alargar minhas perspectivas.

– Espero o mesmo. Que sua visita possa alargar minhas perspectivas. Queira sentar-se.

– É claro senhor Shark, poderíamos dizer que nossa relação poderá ser bastante lucrativa.

Shark era paciente, e de uma forma geral, todos os silfos tendiam a ter mais paciência que os humanos. Talvez por viverem mais. A paciência sempre se mostrava vantajosa.

– Eu acredito que o senhor tenha em sua posse, alguns escravos humanos, recém adquiridos os quais gostaria de negociar.

– Escravos humanos? Sim, tenho muitos, centenas deles!

– Sigo uma trilha... Reuni informações e sei que, há pouco, adquiriu em pessoa um grupo de humanos na ilha do porto seguro.

– Perfeitamente. Aí está um deles. O capitão do navio. – indicou Shark apontando com seu dedo cheio de anéis.

– Ótimo! Estou interessado em negociar alguns deles apenas. Uma moça de cabelos cor de fogo e olhos verde-mar, um jovem espadachim de cabelos negros, um homem tatuado, um velho e grande cavaleiro, uma silfa muda e um rapaz de olhar curioso.

Shark hesitou por um momento. Vendera todos os outros além de An Lepard. Reavaliou e movido pela curiosidade seguiu a negociação, afinal, poderia reave-los caso fosse pago adequadamente. – De que está falando, ouro?

– Se isso for o que quer...

– Digamos que não queira ouro, o que mais poderia me oferecer?

– Diga-me, posso observar sua aura? Permite-me a evocação de um feitiço inofensivo?

Shark sentiu seu coração acelerar. O que fazia era um tanto arriscado. Aceitar um feiticeiro humano em sua casa. Talvez devesse ter deixado a Guarda Aurínea atuar. Mas ao mesmo tempo o silfo deliciava-se com a sensação de perigo, excitação além do tédio de Aurin. Novidades e possibilidades.

– Muito bem. – consentiu Shark. – Faça sua feitiçaria.

Fernon tocou um amuleto em forma de caveira que tinha pendurado no pescoço. Seus olhos adquiriram estranho brilho e então sorriu. Sentiu enorme prazer.

– Devo dizer senhor Shark. O grande prazer que é ver uma essência tão bela quanto a sua. – E com isso. Fernon sentiu a atração que tinha pelo magnetismo poderoso de Shark aumentar. – Não entenda o que vou lhe dizer como bajulação. Não preciso disso... Mas o senhor possuiu uma bela aura. E uma grande força, grande determinação, crueldade e ambição além do que já pude ver em qualquer silfo. Poderíamos muito juntos... Você e nós... Poderíamos adquirir muitos lucros, muito poder. Diria até que com sua força, poderia tornar-se um monarca dentre os seus... Quiçá, um grandioso imperador.

Shark teve a certeza naquele momento que estava diante de si, um bajulador nato. Mas ainda assim aceitou com prazer os elogios. – Obrigado, mas somente os tolos desejam a evidência. Saiba que dominar este império e este arquipélago é algo possível e bem próximo de minhas possibilidades. Temo que por hora, precisemos negociar, não é mesmo?

– Diga o que deseja e terá.

Shark ficava intrigado com o estrangeiro. Seria um louco ou alguém realmente muito poderoso. – Diga-me porque esses seis humanos significam tanto para vocês? São uns fracos! Dê a isso tudo um sentido! Por quê? O que são eles senão insetos para vocês que afundaram um de nossos navios e ousaram atracar em nossos portos? Porque devo negociá-los e a que preço, quando posso apenas ordenar que você e seus companheiros sejam mortos?

– Primeiro, não são tão fracos quanto você possa imaginar. De certo seu julgamento a respeito destes foi falho. Segundo, são para mim preciosidades, já para os meus, e, para nossa causa, não passariam de vermes. Terceiro, é você, é com você, senhor Shark que desejo negociar. Quarto, se mandar nos matar, talvez se arrependa e por último, ainda não sabe dos ganhos que pode vir a ter.

– Pois me faça entender isso melhor. Minha paciência se esgota e confesso que sua presença começa a me perturbar.

Fernon sorriu. – Ó cruel e ambicioso Shark, podemos nos ajudar... Muito! Muitíssimo! Tenho certeza que não me recusará. Escute minha proposta e recuse-a se for um tolo!

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top