05: Nem tudo está bem

— Sua avó pediu que eu viesse chamar você. — O amigo de Ur diz para mim, me olhando de uma forma tão fixa que me incomoda.

Sério que vovó Yame decidiu fazer isso comigo?

— Por que você...  — eu travo minha fala, desistindo da ideia de reclamar dele ter vindo até aqui ao invés de Ur.  — Esquece. — murmuro e fecho a porta na cara dele.

Eu suspiro antes de usar meu capuz outra vez. Não gosto do que a presença desse garoto me causa, me faz sentir que o ar nunca é suficiente, o que me preocupa muito. Sei da aversão que acabei adquirindo com relação a presença masculina, entretanto quando se trata dele é estranho que o medo diminui e coisas estranhas se espalham pela minha pessoa.

Eu tenho de me controlar, não é hora de pensar besteiras.
Não é hora de viajar Igith.

Volto a abrir a porta e me deparo com a imagem do garoto dos olhos intensos parado do outro lado do corredor. Costas coladas à parede, os olhos fixos nos própios pés e as mãos ainda enfiadas nos bolsos da calça. Eu franzo o cenho, um pouco surpresa. 

Por que ele decidiu me esperar?

E como se ele tivesse escutado a minha pergunta interna, seu olhar se ergue e encontra o meu quando estou fechando a minha porta.
Não faço questão de trocar olhares por muito tempo, apenas o suficiente para vê-lo desencostar da parede e remover as mãos dos bolsos.
Sem dizer nada eu passo por ele, fazendo caminho em direção à cozinha.

Sei que ele vem a minha trás e acho um pouco incômodo o fato dele poder estar me observando neste intante. Eu trinco os dentes começando a ficar nervosa. E devia ficar aliviada ao descer o último degrau da escada, porém, com a visão que tenho dos meus pais sentados no sofá da sala vendo TV  e comentando coisa e outra sobre o que passa na tela, eu passo de nervosa para aborrecida num piscar de olhos.

Decido desviar o olhar do casal e me volto para minha esquerda, para a porta da cozinha. Onde dá para observar Ur auxiliando minha avó a preparar o jantar.
Eu encho uma bochecha de ar com a vontade que tenho de rir, mesmo que sem humor. A situação que nos encontramos declinaria a ser cômica caso não fosse tão trágica.

Qualquer um que nos visse deste jeito diria que esta família é muito linda, talvez. No entanto, como todo mundo deve saber, toda família tem algum porém, e a nossa não é muito diferente disso, apenas os possui de maneira incontável.

Eu chego perto da minha avó parada de frente à bancada ocupada de panelas antiaderentes e tigelas de porcelana usadas por ela e lhe dou um leve abraço pelas costas. Consigo vê-la sorrir quando beijo sua bochecha e roubo uma risadinha contida da mesma.

A verdade é que, dentre todos os demais membros da família Kefrām, vovó Yame é a única com quem eu tenho mais intimidade na casa.

— É preciso chamar você para o jantar todos os dias, Igith? — pergunta vovó Yame num tom calmo, tirando a panela do fogão quando me desvencilho dela.

Eu comprimo os meus lábios parada à alguns centímetros dela, mas não respondo a pergunta.
Minha avó sabe da minha condição com a comida. Apenas participo dessas refeições por obrigação do meu pai.

— Essa daí só sabe ficar trancada no quarto mesmo, você sabe vovó. — Ur se exprime sarcástico, me fazendo revirar os olhos.
Olha o sujo falando do mal lavado. Como se ele ficasse em casa tanto tempo assim.

Ur é o meu irmão mais velho por apenas um ano de diferença na idade. — Ao contrário de mim, ele tem os cabelos castanhos igual aos do nosso pai, tem os olhos amendoados e um físico que eu diria "perfeito" de tanto que ele treina. Sua estatura é um pouco maior em relação a minha, quase alcançando a do nosso pai.
É raro que falemos um com o outro, primeiro porque não sou de trocar palavras com as pessoas e segundo porque temos nossas diferenças.

Embora Ur se atreva a fazer essas provocações sem graça quando está de bom humor.

E como sempre, eu decido que ignorar o seu comentário é o mínimo que posso fazer por nós dois. Estou indisposta a ter uma briga hoje.
Então, opto por ficar observando minha avó servir a comida nas tigelas de porcelana que a mesma comprou há alguns anos atrás numa feira organizada nas fronteiras da cidade.

— Igith, coloque os pratos e copos na mesa, querida. — Pede a mais velha, passando o recipiente de vidro para que o meu irmão o leve até a mesa onde sei que o outro garoto está sentado.

Eu aceno afirmativamente com a cabeça, me aproximo dos armários e abro as portas dele. Na ponta dos pés eu consigo tirar alguns pratos com um pouco dificuldade. Pois os meus 1.60 metros de altura não ajudam muito.

— Querin, querido, ajude ela por favor. — A bondosa da minha avó teve de acrescentar isso.

O amigo de Ur nem reclama. Ele diz um simples "sim" e no minuto seguinte está do meu lado fazendo o que a minha avó pediu e de certa forma me deixando um pouco furiosa por ele ainda estar aqui em casa.
E decido que são meus pensamentos que me fazem ficar tão distraída a ponto de, na  segunda volta, por puro descuido meu, eu quase cair junto com os pratos que segurava se o motivo dos meus devaneios não tivesse me segurado com reflexos habilidosos.

E como se ele sentisse que o meu coração agitado estivesse se acalmando, o mesmo solta os meus ombros sem muita demora, o que me deixa um pouco desnorteada. Mais ainda, a sua sentença.

— Tenha mais cuidado, Igith. — Adverte ele em tom ameno, antes de voltar a se virar e finalizar sua tarefa.
Estou irritada que suas frases sejam sempre tão curtas e objetivas. Embora nunca parecem uma ordem, isso me incomoda nele.

— Não adianta dizer para ela ser cuidadosa, desde criança Igith é uma desastrada. — Milnha avó rebate em meio a uma risada cômica. E admito que eu estaria aborrecida com o clima desta cozinha com muita facilidade, isto se não tivesse olhado para ele e notado a primeira sombra de um sorriso se formando em seus lábios.

O que me faz pensar que ando com atitudes muito questionáveis desde mais cedo. E que tenho de analisar melhor o que está se passando comigo.

Terminamos de arrumar tudo quanto necessário para o jantar, desde talheres aos guardanapos e nos sentamos à mesa após meus pais terem vindo se juntar à nós. Como de costume, minha avó dirige a oração para todos nós, sendo acompanhada pelos demais que nos mantemos de olhos fechados e finalizamos a oração com um amin.

Segundo ela, é sempre necessário agradecer à Deus por tudo quanto temos. Não que eu ligue muito para isso ultimamente, mas já é um hábito orar antes de jantar.

Não sou muito religiosa quanto ela ou os meus pais, mas creio sim nas maravilhas que Deus faz na vida das pessoas.
E que ele tem os seus favoritos.
Tanto como que eu não pertenço nessa lista.

Não entendo o porquê de todos estarem indiferentes ao fato de termos mais uma pessoa na mesa como se ele fosse membro da família há anos. Eu observo de soslaio meus pais conversarem tão abertamente com ele, que penso por segundos se algum dia já tive esse nível de intimidade com os mesmos.

Estou mexendo na pouca comida com que me servi, criando coragem para colocar uma porção dela na boca vez e outra. Não que não esteja boa, a comida da minha avó é fantástica. O problema está comigo e com a minha falta de apetite na maior parte do tempo.

Então, mesmo que não queira, eu ouço a conversa deles e chego a conclusão de que sou a única que não o conhece afinal. Eles os chamam de Querin. Também ouço que está fazendo faculdade de direito e que quer sim se tornar um advogado.
Depois os ouço falarem sobre a economia do país até a conversa chegar aonde eu não queria que chegasse: A mim.

— E como vão as aulas, meninos? — pergunta meu pai após ter limpado a boca com auxílio do guardanapo.

— Muito bem — responde meu irmão entre goles d'água. Ele deixa o copo sobre a mesa e mostra um sorriso animado para o que diz a seguir: — Já iniciamos os preparativos para a cerimónia de formatura. O time de futebol está cada vez melhor, e as competições são a melhor parte.

Claro que tudo é bom para ele. Afinal, Ur sempre se dedicou aos estudos e sempre teve ótimas notas. O que de certa lhe garante a bolsa de estudos oferecida pela nossa escola anualmente aos alunos mais destacados do último ano do ensino médio.

— Que maravilha, meu querido. — diz minha mãe feliz por ele, levando a mão a cobrir a sua do outro lado da mesa num gesto afável.

— E você, Igith? — indaga senhor Onur, o meu pai. Me fazendo então parar de brincar com a comida de imediato ao erguer o olhar para fitar suas íris castanhas como a terra.

— Eu o quê?

— Como vão as aulas? — acrescenta minha mãe.

Eu dou de ombros num gesto tranqüilo.

— Ah, ótimas. — O que não é de todo mentira. Apesar de não me esforçar tanto quanto o meu irmão, ou simplesmente não conseguir me concentrar para isso, eu consigo notas boas em algumas provas. E acho isso suficiente.

— Só isso? — indaga minha mãe como se esperasse por algo mais.

— Claro, o que mais você queria ouvir? — pergunto mordaz, recostando as costas no encosto vazado da cadeira escura igual as outras dispostas em torno da mesa.

E de repente, o clima da mesa parece estar tenso demais. Porque todos estão olhando para mim de maneiras diferenciadas. Até mesmo o "convidado de Ur", que diferente da expressão derrotada do amigo, ou então da careta de repreensão da minha avó enquanto mergulha um pedaço de pão na sopa, ele somente me encara com a expressão ilegível, mas como se esperasse pelo que está por vir.

A minha mãe tem os lábios levemente comprimidos agora, o olhar fixo no braço coberto pela manga de um outro vestido bege folheado. Enquanto que o meu pai faz um som de desconforto com a garganta me alertando a parar por aqui.

— Igith, olha para o tom de voz... — ele adverte, o tom baixo. E é como se nós estivéssemos disputando quem encara mais quem neste momento, porque não desvio o olhar do dele um segundo sequer conforme levo uma garfada de salada para a boca apenas para o desafiar, mesmo que não sinta fome alguma. Papai não gosta nem um pouco disso. — Sua mãe só quer saber se tudo está bem com vocês.

Eu rio com escárnio antes de largar o garfo de uma vez por todas ao lado do prato e os fitar seriamente.

— Ah, quer? — Indago irônica, olhando somente para o meu pai agora, embora eu tenha total noção de que os outros me encaram. — Então por quê ela não se preocupa em saber como está a outra filha isolada naquele maldito quarto há quase dois anos? — Eu começo a ficar irritada e sei que o irrito também, porque suas mãos estão se fechando em punho sobre a mesa enquanto ele me encara duramente.

— Ah, espera, deixa eu lembrar aqui — faço uma encenação dramática igual a pausa que dou. — Talvez seja porque ela finge que nunca teve a Bursüm e vive se enterrando em trabalhos para esquecer que um dia você...

— Chega Igith! — Berra minha mãe se levantando bruscamente da mesa e me silenciando. Ela detesta que eu fale sobre isso. Todos detestam que eu ouse levantar o tapete. Meu pai segue o mesmo movimento que a esposa e se levanta com mais calma, o olhar fervilhando de raiva e decepção. — Eu não permito que você volte a tocar nesse assunto. Nunca mais. E se você não consegue respeitar os seus pais, respeite ao menos a visita que temos à mesa.

Mamãe joga o guardanapo sobre a mesa e pede desculpas silenciosas ao moço que eu não me importei com a presença. Ela afasta sua cadeira e se retira da cozinha seguida pelo marido.

Depois, ouço a risada baixa e arrastada de Ur do outro lado da mesa. Eu o encaro de soslaio consoante ele coça a nuca com uma das mãos e desalinha os cabelos castanhos crescidos, apertando os lábios numa linha fina antes de jogar o garfo no prato e desistir de comer.

— Missão cumprida, jantar de família arruinado com sucesso, maninha. — Ur diz sarcástico se retirando também após ter plantado um beijo na testa da nossa avó.

A qual também está se levantando agora, indício de que também se vai embora.
Ela nem olha para mim enquanto coloca comida em outro prato que sei bem a quem se dirige.

— A Bursüm deve estar faminta, vou deixar a comida dela e aproveitar comer a minha junto, num lugar mais tranquilo.

Somos apenas eu e Querin na mesa agora. Ambos em silêncio. Ele comendo uma última vez da sua comida e eu olhando para os pratos com a comida pela metade que os outros deixaram.
É um desastre.
Nós somos um desastre como família.

É sempre assim, dificilmente conseguimos terminar uma refeição em paz. Alguém começa um assunto "proibido" ou involuntariamente uma troca de farpas se inicia, e bom, nunca as concluímos porque as pessoas sempre se retiram da mesa. Uma por uma.
Geralmente permanece um ou então dois de nós, porém, é deveras difícil que isso aconteça, e o motivo é sempre a perda de fome por parte de todos.

Assim como estou agora, pior do que antes eu desisto de uma vez por todas dessa batalha no mesmo instante que o moço com quem estou compartilhando a cozinha se levanta e começa a recolher os pratos dispostos pela mesa.
Acho duvidosa sua atitude, porque não é da sua responsabilidade fazer isso.
Eu levaria os pratos desta noite e agora ele está os colocando na espuma que fez dentro de uma das cubas da pia de aço após ter juntado os restos de comida numa sacola plástica.

Eu me levanto, tiro o meu prato da mesa e me aproximo dele disposta a tirá-lo daqui.

— Não precisa se importar com isso. É tarefa minha levá-los hoje.

Querin se vira um pouco para mim fechando a torneira que jorrava água de encontro aos pratos sujos.
Olhos vazios que me causam curiosidade me encaram com serenidade.

— Hoje você pode me ajudar a secá-los.

Eu termino de tirar o resto de comida do meu prato e o deixo ali na bancada antes de  cruzar os braços e o fitar seriamente.

— Quem você pensa que é, hein? — Eu indago em tom azedo e afiado mesmo que minhas palavras não o abalem nem um pouco. — Não compreendo nem o porquê de ainda estar aqui. Não vê que todo mundo já se foi? Não segue o mesmo percurso por quê?

Seu peito sobe e desce num movimento lento como se ele suspirasse silencioso, antes de voltar a ficar de frente para pia, arregassar as mangas da camisa de malha até aos cotovelos e devolver com curiosidade:

— Você gosta de brigar, Igith?

Não entendo a minha reação de sentir uma leve vergonha me acometer por segundos fazendo com que eu baixe o olhar para encarar as minhas mãos fechadas em punho.

— Eu não gosto de brigar. — Respondo numa versão muito mais baixa da minha voz.

— Certo, então vamos terminar com isso para que você retorne ao seu quarto. — É sua última sentença antes que eu ceda e comece a ajudá-lo a secar os pratos que eu deveria estar lavando sozinha.

Me sinto desconfortável durante o processo todo com o silêncio auto-imposto por nós dois. Mas não me atrevo a abrir a boca e dizer qualquer coisa para ele. Se bem que, não há nada que eu possa dizer mesmo.
O que diria? Sobre o que conversaríamos?
Somos dois estranhos completando uma tarefa que não deveríamos nem estar fazendo juntos.

Quando terminamos, ele volta a se sentar na mesa colocando aquele caderno de mais cedo ali enquanto eu finalizo com a limpeza da pia. É algo que me deixa aliviada, como quem diz que a missão foi cumprida.

Eu estou de costas para ele e concentrada em lavar as mãos quando ouço sua voz atrás de mim, lenta e baixa.

— Quem é Bursüm? — acho sua pergunta um pouco invasiva, e fico ponderando se irei responder ou não.

Ele é paciente em esperar minha decisão e quando finalmente a tomo, eu me volto para o mesmo, o olhar impassível quando lhe informo:

— A minha irmã — o garoto assente parando de escrever que quer que seja naquele bloco de notas para prestar atenção em mim. — Mais nova. — Eu concluo.

— Aquilo que você disse mais cedo, é sério que ela não sai do quarto há dois anos? — afirmo com a cabeça a essa pergunta e completo:

— Mas não falamos muito sobre esse assunto. É meio proibido como pode ver.

— Lamento pelas perguntas, nesse caso.

— Bom, não faz muita diferença mesmo. — digo com indiferença me afastando dali, até sentir meu pulso parecer que vai entrar em combustão pela ousadia dele.
Querin o envolveu cuidadosamente com sua mão e eu não demoro a me soltar e o olhar com dureza.

— Não volte a tocar em mim, por favor.

— Me desculpe novamente. — Ele fala com sinceridade quando inclina levemente a cabeça. — Mas você devia parar de procurar confusão, garota ruiva.

Não gosto que ele use um apelido para mim. Muito menos que envolva a cor dos meus cabelos, uma vez que é por causa deles que sou importunada na escola. Mas eu ignoro isso quando digo firme:

— Lamento, mas por vezes acho que eu sou a própria confusão.

Depois daquela noite, eu acreditei que não voltaria a ver o amigo de Ur tão cedo, entretanto, hoje irão completar três semanas que ele passa as refeições em nossa casa mesmo depois da briga que tivemos domingo a noite.

Não que me incomode taxativamente com a sua presença, porém, seria muito melhor para mim que ele voltasse para onde morava antes, o que também lhe beneficiaria muito, uma vez que o clima daquela casa está mais insuportável do que nunca.
Minha avó parece gostar muito do rapaz, porque sempre está conversando com o mesmo de boa. E os meus pais, bom, eles sequer falam direito comigo nas últimas semanas, o que não é nenhuma novidade para mim.

Eu guardo os meus manuais dentro da mochila e passo o braço por uma de suas mangas. De tão desligada que costumo ser, geralmente fico como uma das últimas a sair da turma o que nem sempre é legal.
Uma infelicidade, é ter sido separada de Yudis ao entrar no ensino médio. Logo, ela estuda praticamente do outro lado da escola.

Estou saindo da sala, quando Agah, o meu professor de geografia chama o meu nome e pede que eu me aproxime com um gesto de mãos.
Eu atendo ao seu pedido sem muita vontade, e de frente a mesa dele, o homem de cabelos levemente grisalhos remove os óculos de grau e me encara com a sombra de um sorriso estampado no rosto.

— Igith, quero lhe dar os parabéns pelo desempenho em geografia. — Eu franzo o cenho, encolhendo levemente os ombros. Me lembro de ter melhorado na última avaliação, mas não foi nada de mais. Contando que muitos de nós acabamos colando na prova com tamanha distração do lecionador no celular. —Se esforçou bastante na última prova.

Colei bastante na última prova, ele tinha que dizer.

Eu comprimo os lábios numa linha fina e volto a ficar ereta, involuntariamente descansando a mão sobre a mesa.

— É, valeu. Mas tem outros alunos a quem esses méritos deveriam ir. O senhor sabe.

Ele dá uma risada baixa e forçada que me deixa desconfortável.

— Sim, muito sensato da sua parte lembrar dos outros. Porém, é importante incentivar os demais alunos quando começam a destacar-se. — Sua mão sobre a minha no minuto seguinte me deixa em alerta, porque diferente do toque do amigo do Ur, a chama que me percorre o corpo agora é entorpecente. 

Eu faço um som com a garganta e me afasto bruscamente do seu toque.

— Com licença. — direciono o olhar para a porta após ter assentido num movimento metódico às suas palavras. A sala está se tornando pequena demais para duas pessoas e isso me sufoca.

— Toda.

Quando estou fora daquela sala, o ambiente aqui fora não é tão bom assim. Porque sinto o olhar dos outros em mim. Em meus cabelos. Em meu corpo escondido nas roupas largas.
Eu detesto vir a escola. Me sufoca de formas diferentes.
Evito o refeitório, lá a agitação se torna maior.
O ar sempre parece pesado.

E agora estou paranoica limpando minha mão freneticamente contra a calça a ver se fica limpa do toque do meu professor. Porque por mais que ele seja meu educador, eu não consigo ver inocência em pessoa alguma. Nem mesmo em mim. Porque me desproveram disso faz tempo.

Eu queria que fosse verdade o que ele dizia, mas eu bem sei que não é. Eu tive aquela nota porque Yudis se dispôs a me ajudar com a matéria e o restante porque decidi colar num acesso de esquecimento momentâneo. Não costumo ter concentração suficiente para estudar desde muito cedo.

Eu precorro o caminho de concreto que leva aos portões da escola até ter no meu campo de visão aquele grupo de idiotas do colégio de quem estou sempre tentando escapar, mesmo que não abaixe a cabeça perante à eles.

Eu tento fingir que não os vejo e quero desviar dos mesmos, porém um deles coloca o braço à minha frente, barrando minha passagem. Eu suspiro antes de encará-los definitivamente impassível.

— O que vocês querem dessa vez, hein? — num gesto automático de defesa eu cruzo os braços sobre o peito.

Eles abrem sorrisos largos e arrogantes dirigidos à mim. Se divertindo com a minha posição.

— Qual é a pressa Kefrām? — pergunta Aznet em sarcasmo, sendo a única garota desse quinteto ridículo.

Ridículo a ponto de me fazer detestar os meus cabelos, o meu tom de pele, os meus olhos e um pouco mais de mim.
Ridículo a ponto de fazer muitos dos outros alunos se sentirem inferiores.

— Faz tempo que a gente não conversa com você, tomatinha.

Eu cerro os punhos com esse apelido. Detesto ele mais que tudo.

— Diferentemente de vocês, eu tenho mais o fazer com a minha vida à importunar a dos outros.

Aznet fecha a cara, consoante os outros esperam que ela decida o que farão a seguir, como se fossem os cachorros de guarda dela.

— Escuta aqui, toma...

— Será que vocês não cansam de importunar a minha namorada? — Eu reconheço essa voz tranqüila me intitulando de namorada dele. Pela segunda vez.
O amigo de Ur está bem atrás de mim, o peito encostado à minha mochila.

Tento não reagir muito a esse nome, mas sim a expressão de choque que Aznet faz perante a insinuação de Querin. E pelos céus eu contenho tamanha vontade que me envolve de rir de sua cara.

— Você namora ela? — indaga a moça, tão surpresa quanto seus amigos. Eu descruzo os braços de modo tranquilo seguindo essa mentira esfarrapada do garoto. — A tomatinha?

— Namoro. E seria grato se vocês fossem simpáticos e a deixassem em paz. — Talvez eu estou vendo coisas, porque os garotos do grupo parecem apavorados ou coisa assim quando um deles puxa uma Aznet em choque pelo braço e se afastam de nós.

— Eu estaria muita mais grata ainda se você — Eu começo a dizer me voltando para ele. E tenho de dar dois passos para trás porque não existia nenhum espaço entre nós à princípio. O que me causou aquela sensação estranha outra vez, embora eu tenha me mantido fria. — parasse de me tratar por sua namorada.

— Talvez eu goste de dar esse título a você, embora prefira respeitar o seu pedido. — Ele articula de um modo tão natural que me faz o encarar por segundos duvidosos. Querin leva as mãos aos bolsos das calças, comprime os lábios numa linha fina e pergunta quando ambos estamos saindo da escola. — Está indo para casa?

— Onde acha que estou indo, afinal?

— Estou de carro, posso levar você se quiser.

— Não quero.

Semelhante aos outros dias, a casa está envolvida num silêncio aterrador. As luzes desligadas e as cortinas fechadas.
Eu estou me servindo de um pouco de água quando noto o post-it colado na porta do frigorifo. A caligrafia meio curvada para para à direita. A caligrafia do meu pai.

"Chego tarde hoje. Não me esperem para o jantar, organizaram uma reunião de última hora na empresa."

Amasso o papel com um sorriso triste nos lábios. Que ridículo ele dizer que chegará tarde por conta de uma suposta reunião. Eu devia imaginar que meu pai nunca mudou, e deveria sentir pena da minha mãe por isso. Mas nem isso ela está merecendo.

Ela se faz de tapada porque quer. Já vai anos que estão vivendo essa farça de casamento que acabou levando essa família a se tornar o que é hoje.

Sigo em direção ao jardim da vovó e acho estranho que ela não está em nenhum canto dele. Esse é o seu horário favorito para tratar de suas plantas e isso me causa uma leve preocupação. Acho bobo de primeira, então pondero que ela está no seu quarto fazendo alguma coisa, talvez. Decido que irei fazer uma surpresa porque é essencial para mim lhe dar um abraço quando chego em casa.

Bato duas vezes seguidas e nada dela responder. Não tendo outra alternativa, eu abro a porta lentamente para não acordá-la caso esteja a dormir. Giro a maçaneta com um meio sorriso nos lábios, o qual morre no minuto seguinte em que a vejo jogada no chão ao lado de sua cama, o que abre as portas para que o desespero se aposse de mim.

Pare de se preocupar
De qualquer forma eu estou bem
Ainda sou capaz de voar
Lembre-se, eu nunca precisei de ninguém
Então por favor não me atrapalhe
E deixe que eu cuide dessa dor
Que nunca me causou algum pavor.

Dinazarda

Gente, que capítulo foi esse???
A briga durante o jantar, a interação da Igith com o Querin e esta última parte...

Me digam o que vocês estão achando de tudo isso e farei os possíveis para responder o quanto antes.

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