04: Um dia diferente

Ontem eu tive um pesadelo.

Tão vívido quanto alguns dos outros que costumo ter de vez em quando. Pesadelos que me fazem lembrar que eu detesto a cor verde tingida em lençóis. Pesadelos que me fazem desejar nunca usar um vestido, ou então pegar no sono à tê-los do modo que me apavoram durante as poucas horas que consigo dormir.

São todos sobre aquele dia e sobre ele. Mas Ontem, enquanto sentia aquele peso em mim alguém veio me tirar dali. Foi bobo, porque acreditei ter sido o cara dos olhos vazios. Mas lamentável, porque foi somente uma imaginação criada por minha mente incapaz de me impedir de chorar logo após ter despertado há três horas atrás.

Bursinha diz que dias nublados e chuvosos parecem mais tristes que bonitos. Entretanto, eu os aprecio muito. Eles combinam comigo, me fazem sentir um conforto que pouca gente consegue. Principalmente quando posso ficar dentro das minhas cobertas, trancada no quarto enquanto tomo café.

Me sinto cansada para levantar e ir tomar um banho por mais quente que ele seja. Desde que estou desperta, somente saí da cama para poder abrir as cortinas e aproveitei-me disso para pegar num livro que estou quase terminando a ver se me distrai um pouco de meus pensamentos.

Estou deitada de bruços folheando uma das últimas páginas do livro quando ouço uma batida leve na minha porta, logo depois algo que me faz franzir o cenho.

— Toc-toc. — Não passam das sete da manhã e estou surpresa que Yudis tenha vindo tão cedo até aqui.

Ontem eu fui grossa com ela. Joguei nela a frustração de um momento que ocorreu por culpa minha. Não devia ter ficado naquela cozinha ou então lhe deixado sem explicação alguma no meio daquela estrada.
Fui uma tonta.

— Oi — Eu digo baixo, um pouco envergonhada quando estou abrindo passagem para a minha amiga.

Ao contrário do que imaginei, o rosto de Yudis não apresenta uma ruga de frustração sequer. Ela não parece irritada por ter-lhe estragado a diversão ontem. Ao invés disso, ela abre um sorriso retraído para mim, me instigando a sorrir quando revela Sr. Ardiloso, seu panda de pelúcia.

— A Yudis me contou que ontem a senhorita não se divertiu como deveria. — Ela imita uma vozinha aguda que sempre usa quando trás o boneco para resolver nossos problemas.

Eu sorrio, e sem me conter quando ela abre um sorriso maior, eu dou uma risada abafada me afastando da porta e permitindo a entrada dela.

— Desculpa senhor Ardiloso, eu tive uma dor de cabeça repentina e acabei sendo rude com a nossa Yudis. — eu falo uma meia verdade, fechando a porta atrás de mim antes de me virar e encarar Yudis ainda com o pandinha na mão, comandando a situação.

— Não se preocupe Igith, a nossa Yudis não ficou chateada. Ela sabe que você não está muito habituada com aquele ambiente. — É impossível parar de sorrir com essa encenação. É tão bom como ela consegue tirar minha tensão logo cedo. — E eu peço desculpas. — A mesma conclui, agora com a sua própria voz numa versão arrependida.

Eu me aproximo dela um passo, ela dá outro em minha direção e nos abraçamos.

— Não é necessário pedir desculpas. Eu não consegui permanecer lá. Desculpa pela forma com que te falei ontem. — Sinto ela negar com a cabeça em meio ao abraço antes de nos soltarmos e agora estarmos sentadas na cama bagunçada.

— Igith, você não tem que pedir desculpas. Eu sei que em algum momento sou bastante insistente, mas é só porque eu não quero ver você isolada como se não tivesse uma melhor amiga. — Ela se explica pausadamente e compreendo totalmente sua posição tanto como ela me entende. — E eu adoraria passar mais tempo com você. Mesmo que eu tenha ocupações não quero que elas sejam mais importantes do que vir aqui e te dar um simples "oi", entende?

— Eu sei, Yudis... eu sei. E estou tentando dar o meu melhor.

Ela sorri afastando os meus cabelos da testa num gesto automático.

— Leve o tempo que precisar. Já me sinto feliz só de olhar para você e ouvir a sua voz. — ela afirma com sinceridade — Ah, e de abraçar-te. — ela volta a me abraçar, dessa vez meio sem jeito pela posição em que nos encontramos. Eu sorrio levando a mão a sua nuca.

— Como foi a festa? — Indago por curiosidade, minha amiga dá uma risadinha antes de se afastar e me encarar sorrindo.

— Sei lá — ela dá de ombros. — Não fui capaz de continuar lá sem você, então rumei a procura de Ur para que ele me trouxesse para casa. Foi difícil convence-lo, mas você sabe como eu sou...

Eu rio.

— Nem precisa dizer. — Eu cantarolo, me sentindo um pouco melhor que mais cedo.
Não pretendo contar à ela sobre ontem, não sei o que Yudis pensa sobre esse tipo de coisa, mas de uma coisa tenho certeza, não a perturbaria com os meus problemas.

— Não vai trocar esse pijama? — Ela inquere logo após, puxando de leve o tecido da minha cintura.

Dou de ombros, despreocupada.

— Nem um banho eu tomei, imagina trocar isto.

Yudis ri um pouco dando um tapinha em meu ombro esquerdo.

— Vai lá tomar banho bobinha, e se você negar eu mesma te dou sem cerimônias. — Eu faço careta à convicção de suas palavras.

— Nem pensar. Que estranho, Yudis. — Eu murmuro me levantando de supetão.

— Vai logo, hoje eu vou comer aqui. Então deixo claro que estou faminta e você deve preparar algo bom para sua convidada.

Estou rindo quando fecho a porta do banheiro. Yudis sabe que a casa é praticamente dela e ela cozinha quando bem entende, assim como sua casa era para mim.

— Eu não convidei você! — Eu exclamo, a cada segundo me livrando das minhas roupas. — Quer comer? Prepare sozinha. A casa também é sua e você sabe aonde fica o que precisa.

Ouço ela rir lá do quarto como resposta.

[...]

Tive de preparar a refeição para a casa toda junto de Yudis. De início eu relutei, até entender que ela não prosseguiria sem mim. Eu não sou boa de cozinha ou coisa assim, mas a minha amiga é. E me envolve nessas aventuras gastronômicas dela sempre que pode.
Assim como hoje que ela decidiu fazer um menemen e eu fui induzida a fazer o suco de frutas.

— Eu tenho certeza que todos vão adorar. — assegura ela colocando uma jarra com o suco natural na mesa.

— Ou não... — eu travo minhas palavras de súbito com a entrada casual da minha mãe num dos seus habituais vestidos de mangas longas, seguida do meu pai ajeitando a gola de sua camisa branca.

Não os encaro diretamente nos olhos, mas sinto vontade de revirar os meus só de ouvir o tom de voz doce da minha mãe.

— Yudis, que bela surpresa logo cedo. — Ela diz simpática antes que eu ouça o ranger das cadeiras contra o granito e decida lhes dar as costas e me virar para a bancada onde estão os copos.

— Bom dia tia, bom dia tio. — Ela os cumprimenta educada. — Vim conversar com a Igith e acabei decidindo que passaria a manhã aqui. E bom, também acabei a puxando para prepar o Kahvalti comigo.

— Você é sempre bem-vinda, Yudis. — Desta vez é o meu pai quem se pronuncia e só vejo o sorriso genuíno no rosto de Yudis porque outra pessoa adentra a cozinha e consegue fazer com que eu me volte para todos eles.

— Olha que maravilha, decidiram cozinhar hoje. —  Vovó Yame entra na cozinha com o mesmo sorriso lindo e enrugado de sempre. As mãos livres de luvas e de terra. O que me faz acreditar que ela terminou com as plantas por hoje. Ou por agora...

— A Igith está se saindo bem na cozinha, vovó. — Yudis toma a palavra antes de puxar uma cadeira e se sentar à mesa. Eu sigo seus passos e me sento ao seu lado, de frente à uma cadeira vazia de preferência.

Vovó Yame dá uma leve gargalhada, conforme lava as mãos antes de ocupar um lugar ao lado do filho.

— Isso é o mais surpreendente, minha netinha só se envolve com as panelas quando você a convence. — Eu sufoco uma risada, puxando uma torrada da taça e saboreando um pedaço crocante dela.

— Vovó, eu também faço isso quando você pede. — Eu murmuro de boca cheia, uma de minhas mãos cobrindo-a por educação.

— Ah, eu sei — diz tão bem humorada do jeito que só ela sabe.

No canto do olho vejo minha mãe concordando com algo que o seu marido diz em voz baixa. E decido que mais patético que esse sorriso que ela dá à ele, essa relação não podia ser.
Logo ela lança um olhar sereno para mim e para Yudis, que reage muito mais bem do que eu ao que ela diz.

— Isso está incrível, meninas. — Ela elogia. — Parabéns as duas.

Eu jorro suco num copo vazio desviando o olhar dela, sem precisar responder a esse comentário esporádico. Não faço a mínima ideia se foi sensato ou pura bajulação, então não ligo muito. Mas Yudis liga, e se incomoda que eu não tenha dito nada, por esse motivo chuta o meu pé debaixo da mesa sem deixar de sorrir para minha mãe, pouco se importando com o olhar cético que lhe dou.

— Obrigada tia. — Minha mãe também sorri deglutindo mais um pouco dos ovos mexidos.
Do outro lado da mesa, minha avó está com aquele sorriso cínico que sempre recebo como uma repreensão silenciosa que desta vez eu ignoro.

— Aonde está a sua mãe, Yudis? — Meu pai indaga parando o garfo próximo a boca, somente para não deixar o clima pesado durante a refeição, tal como acontece quando estamos sozinhos.

A garota do meu lado limpa a boca com o seu guardanapo, volta a deixá-lo sobre a mesa e responde com calma:

— Teve de sair mais cedo. A chefe dela perdeu outra vez as chaves do escritório e como minha mãe tem uma cópia, teve de ir até lá.

— Coitada da Banu que vive passando por isso. — lamenta Sevda, a minha mãe, e Yudis confirma com um aceno leve de cabeça.

Estamos comendo em silêncio agora, isto até o meu pai notar a falta de um elemento na mesa — O que é irônico, uma vez que sempre têm alguém faltando, no caso a filha que eles excluem a existência — e dirigir o olhar para mim, como se eu soubesse da pessoa.

— Onde está o Ur?

— Quando passei no quarto dele, o coitadinho ainda dormia. — responde minha avó. E eu tenho vontade de rir desse apelido. Mas me contenho por educação.

— Vocês estiveram na mesma festa ontem. Certo, Igith?

Eu dou de ombros, desimportada.

— Não sei — respondo em meio a goles da minha bebida —, não o vi por lá. — Concluo indiferente e sei que Yudis está me encarando repreensiva agora.

— O que é? — Eu indago pela insistência no olhar de todos ali na mesa, mas estou olhando para Yudis.

— Nadinha. — Ela responde simples e volta a comer assim como todos os outros. Então, a partir daí o silêncio desconfortável se instala na mesa até o fim da refeição.

A semana passou muito rápido, e milagrosamente eu não faltei nem sequer um dia. Como sempre a família se reuniu aos jantares e as interações não passaram disso apenas.
É sábado, então, faz uma semana desde aquele ocorrido na festa. E uma semana que venho lutando contra as lembranças que torturam minha mente.

Vovó Yame pediu que eu não me trancasse hoje no meu quarto. A mesma precisa que eu a ajude com algo no seu jardim, pois é do conhecimento de todos que neste dia em especial o quarto vira minha "morada" até a hora do jantar que sou obrigada a participar.

Ainda estou de pijama, afinal, são sete da manhã e eu acabo de me levantar. Não fiz nenhum desafio interno nestes últimos dias, então sei que bonita é a última coisa que estou agora.
Eu desço as escadas degrau por degrau tentando não derrubar o bloco de desenhos e o lápis que levo junto comigo para a cozinha.

Desenhar é um hobby que aprecio bastante em praticar. É divertido, me tira a concentração dos pensamentos que me desgastam a energia, logo, aperfeiçoar minha arte tem se tornado um objetivo que tento ao menos cumprir.

Eu entro na cozinha, e graças aos céus está vazia. Deixo o caderno e o lápis na mesa, de seguida me sirvo de café quentinho e pego duas bolachas do pote no interior de um armário suspenso acima da pia. Por fim eu volto a mesa, me sento ali e começo a fazer o meu rabisco conforme me alimento.

— Precisa de mais sombra nas laterais. — Eu estremesso, sério, muito mesmo. Me sobressalto por ouvir essa voz e ter ela como familiar em minha mente, porém, numa versão mais tranquila da mesma.

Solto o lápis de imediato e viro o corpo para encarar a pessoa que me dá a dica. E para falar a verdade, não sei que cara patética eu faço que garante a aqueles olhos profundos se puxarem um pouco para os cantos como quem vai sorrir pela minha reação.

O que esse cara faz aqui?

— O que você faz aqui? — Eu indago num tom baixo e afiado para o moço da festa de sábado. Sim, o mesmo que eu não agradeci por ter me ajudado com aquele canalha. — Ou melhor, quem é você?

O garoto dos olhos profundos contorna a minha cadeira e ocupa um dos lugares na mesa, distante o suficiente para me dar espaço e perto o suficiente para que seus olhos perfurem os meus apenas com a intensidades que ele me olha.

De um jeito que faz minha pele arder mesmo que hoje esteja muito frio.

— Sou amigo do seu irmão. — finalmente responde, deixando um caderno relativamente menor que o meu sobre a mesa.

Eu esperava que ele dissesse mais alguma coisa, por esse motivo consegui sustentar seu olhar, mas ao entender que ele não tinha tais intenções, eu desvio o meu olhar e tomo uma última vez o meu café. Quando me levanto para lavar a caneca, Ur está entrando na cozinha.

— Podemos ir, Querin? — Meu irmão inquere para o tal do amigo dele. Estou de costas para eles então não sei o que estão fazendo ou qual é a reação do seu  amigo.

— Não  se esqueceu de nada? — Sua pergunta é bem lenta, calma. Muito diferente da forma com que ele falou sábado passado.

— Estou crendo nisso. — Ur devolve, e de  seguida faz uma pergunta muito estúpida para mim:  — Ei, Igith, pode lavar a louça  para mim hoje? Eu lavo a sua noutro dia.

Eu dou uma risada baixa e irônica, completamente desprovida de humor quando me volto para ele, ignorando a presença sufocante do seu amigo.

— Só pode estar de brincadeira, Ur — Eu rebato limpando as minhas mãos com uma toalha disposta ali no balcão. Pego no meu caderno e no lápis sem desviar o olhar do dele. — Não, eu não posso lavar a sua louça.

Eu desapareço dali, entro meu quarto e me sento de frente à janela esperando o momento que eles vão sair de casa. Não demora muito e eu os observo. Ur e o amigo dele estão tendo uma conversa aparentemente boa, porque vejo meu irmão rir e não sei como o outro está agora, pois de costas para mim não dá para lhe ver as feições antes que entrem na van do nosso pai que Ur vive conduzindo desde que tirou a licença de condução e dêem partida.

Eu cedo meu corpo sobre a fina cama aonde estou, e fito o teto do quarto com os  inevitáveis pensamentos me rondando a mente.

Será que esse cara já sabia da minha relação com Ur? Será que ele só fez aquilo por eu ser irmã do meu irmão? O mais importante de tudo, por que ele tinha de estar aqui?
Ele se lembra que me ajudou naquele dia?

Droga, Igith. É óbvio que ele se lembra, não deve ser nenhum sofrido na memória com certeza.

Oi oi gente linda, tudo bem com vocês?
Espero que sim.

O que acharam do capítulo, ou melhor, da relação da Igith com os outros membros da sua família?

Pessoal, quando eu fui revisar o capítulo ficou tão extenso que a decisão mais sensata que tive foi a de dividir o capítulo ao meio, facilitando a leitura de vocês. Logo, as palavras finais do capítulo 4 estão na segunda parte.

Beijinhos e fiquem com Deus.

°•Glossário•°

Kahvalti – café da manhã turco.

Menamen – prato típico da Turquia, servido aos cafés da manhã, inclui: ovos, tomate, pimentão, algumas especiarias tradicionais, queijo turco feta e azeite.

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