04.5

Minha avó me obrigou — literalmente — a ajudá-la com as plantas enquanto a mesma ia à mercearia no centro da cidade. Ela me fez escolher entre sair e cuidar de suas amiguinhas. E bom, eu não acho tão ruim assim fazer jardinagem.

Eu me agacho para poder cortar as ervas daninhas que estão crescendo ao redor das roseiras. E a única pergunta corrosiva que não me deixa durante o processo todo é: por qual motivo isto existe. É tão irritante arrancar estas raízes.

Pego uma pázinha de lado e com a ajuda do objeto eu organizo a terra conforme aprecio as rosas tão rubras ao reflexo dos poucos raios do sol que escapam entre as nuvens hoje. Admiro o quão são bem cuidadas pela mais velha da família e decido que cada qual tem uma arte a que lhe foi dedicada.
É raro que eu trabalhe a terra e pode as plantas, prefeito antes desenhar o trabalho que a minha avó faz.

Ouço o som da porta de tela batendo contra o vão alguns metros atrás de mim, indício de que alguém está se aproximando. Eu não me viro no mesmo instante, porém a figura que se agacha bem do meu lado no minuto seguinte, me faz vacilar um pouco no ato que eu exercia com a pá.

— Vocês gosta de flores? — pergunta o moço de mais cedo. E não sei se me sinto muito bem porque por instantes meu peito parece que vai arder juntamente com a minha pele. Será que esses raios de sol estão tão intensos assim?

Estou de joelhos, então me afasto um pouco porque não suporto que ele se aproxima tanto de mim. E tento me convencer de que isso só tem haver com meus problemas internos.

Eu não olho para ele. Mas estou ponderando se merece uma resposta minha.
Não sou mal educada, mas por vezes consigo atravessar certos limites impostos pelos meus pais.

No canto do olho, pela primeira vez tenho um vislumbre do moço. Esta quieto, como se ainda esperasse alguma reação me mim. Ele também não me encara. Sua atenção está fixa nas flores a que eu estou cortando alguns caules agora.

— Depende. — Decido responder vagamente quando ele eleva a mão até uma das rosas e toca com delicadeza as pétalas vermelhas.

Sua mão está bem próxima da minha quando faz isso, mais para cima, sem intenção de descer. Mas eu repito comigo mesma que não quero me importar.

Eu não vou me importar.

Eu não preciso me importar.

Recito essas palavra, mas inutilmente, porque enquanto decido me concentrar em não pensar na presença dele, eu magoo sem querer o pulso contra os espinhos pontudos das roseiras. E sou estúpida em apenas perceber isso ao sentir a urgência  do sangue querendo brotar da abertura feita na minha pele.

E neste momento me arrependo muito de não ter usado as luvas que minha avó usa regularmente para sua proteção.

Eu aperto os olhos pela dor e amaldiçoo em murmúrios que este corte tão pequeno me faça sentir tanto.
Jogo a pá de qualquer maneira e uso a outra mão de suporto para o pulso ferido.

— Está sangrando, o corte foi profundo? — Abro os olhos de imediato e quero tanto xingá-lo por não desaparecer daqui.

Eu me levanto, um pouco irritada com ele é comigo mesma. O vejo levantar também e ficar de frente para mim, posição que eu não me permito ficar mais de um minuto antes de me virar segurando meu pulso pela parte externa evitando contato com a região fluindo o líquido carmesim de mim.

— Como quer que eu saiba? — Minha pergunta sai num tom afiado conforme eu sigo o caminho de blocos que leva a porta de casa.

E meu Deus, esse cara não cansa de me seguir?

— Podemos tratar disso.

— Não pedi a sua ajuda, sei me cuidar sozinha. — Devolvo em azedume mesmo que não saiba fazer faixas boas com ligaduras sem ajuda.
Tá, eu posso estar sendo um pouco egoísta, mas sequer faz um dia que eu conheço este cara e ele vem me oferecendo ajuda repentina.

O que ele quer em troca disso? Por que me ajudaria outra vez?

Eu sei tratar de feridas, cuidei de muitas minhas anos atrás. Algumas com a ajuda da minha avó e a maior delas, sozinha.

— Não entre com o avental assim, vai sujar a casa. — O moço adverte em tom mais calmo do que o meu. Inabalável. E quando sua mão toca meu ombro no minuto seguinte eu me sinto oscilar entre a instabilidade de ter um cara me tocando e o fogo que me atola o corpo inteiro por permitir que isto tenha chegado a acontecer.

Eu me desvencilho dele, porque estou confusa e não sei ao certo no que pensar agora. Quero dizer "Não toque em mim". Mas eu fico estática observando as gotas de sangue começarem a pingar no concreto da escada enquanto ele desenlança as fitas do avental que eu usava.

Primeiro as fitas na cintura se afrouxam, depois as do pescoço e só me movo quando já não estou mais usando a peça.
Quero lutar contra a confusão que minha mente está. Por quê eu permiti isso?

Abro a porta de tela com um pouco de dificuldades e empurro a de madeira para me dar passagem.
É ele quem fecha as duas portas para mim quando também me acompanha aonde eu vou.

Adentro o banheiro e quero xingar alguém por eu não saber ao certo em qual dos armários está a mala dos primeiros-socorros.
Estou sujando o chão com gotas de sangue e sentindo a dor intensa me aquecer aquela região.

Que maldição.

— Você já perdeu sangue demais por hoje, Igith —  eu estou de costas para ele mas sei que ele ainda me faz companhia parado na porta do banheiro. E estaria chocada por ele saber o meu nome se não fosse o amigo de Ur. — Pare de ser teimosa e me diga aonde está a mala de primeiros-socorros.

Eu deixo os ombros caírem, e, pela primeira vez, me permito ceder perante a ele. Um garoto. Que estranhamente não me faz sentir em perigo.

— Deve estar ali em cima. — Eu aponto os armários que ficam em cima do vaso.
Então, o quarto se torna muito pequeno quando estou o partilhando com ele.

O amigo de Ur é alto, por esse motivo não tem nenhuma dificuldade em achar a maleta no fundo daquela estante. De seguida, ele olha para o vaso e depois para mim, um olhar significativo.
Não costumo entender muitas coisas, mas entendo o que ele quer dizer e me sento por cima da tampa da privada.

Ele vem em minha direção, e se agacha perto de mim ficando na minha altura no momento. Acho que estou prendendo a respiração porque estamos muito perto e isso é desconcertante demais.

Ele pega delicadamente na minha mão, e sinto coisas estranhas por toda aquela extensão. Engulo em seco, e tudo parece quente demais para um dia tão frio.
Não me lembro quando foi a última vez que fiquei tão próxima de um garoto antes. E não entendo como estou permitindo que isto aconteça.

Ou o porquê este garoto não me faz sentir doentiamente apavorada.

Eu dou um grunhido abafado quando o ardor brutal se espalha pela ferida. Mordo o lábio inferior contendo tamanha vontade que tenho de xingar. Depois, meu olhar desce até ao moço concentrado em cuidar de mim.
Cuidar de mim. Isso me soa tão estranho. Observo seus cabelos negros igual seus olhos e por milésimos de segundos tenho vontade de tocar neles. Mas me contenho, porque não gosto de ter contato com as pessoas como está acontecendo agora.

Ele parece finalizar o curativo sem deixar de ser cuidadoso. Por um instante, eleva o olhar e me encontra o encarando. Quero desviar o olhar, mas eu não faço isso, pelo contrário, eu o encaro de volta e inevitavelmente noto o quão opaco e vazio seu olhar aparenta ser. Isso o torna... intenso.

Ele parece recobrar a consciência de um minuto para o outro, sai de um transe ou coisa assim, porque abana a cabeça de leve e volta sua atenção no curativo antes de deixar a minha mão por fim, fechar a maleta e se levantar.
E bom, eu com certeza não sei o que fazer a seguir. Não sei se agradeço ou simplesmente vou embora daqui.

Ninguém antes havia me ajudado a fazer um curativo para além da minha avó. E com ela eu sorria e a abraçava. Entretanto com ele não posso fazer isso, seria ridículo ou até mesmo estranho.

Trágico.

— Está feito. Deve mudar o curativo amanhã para evitar uma infeção. Não foi nada grave. — Ele me instrui lavando as mãos na pia, e no automático eu assinto à suas palavras. — E lave as mãos.

Ele fala de um jeito que não soa autoritário do modo tão calmo que se expressa. E isso parece estranho. Eu me levanto sem jeito e murmurro um "tá" quando o amigo de Ur se afasta da pia e me dá espaço para que eu lave as minhas mãos.

Ao terminar, ele abre a porta para mim e não penso duas vezes em deixar aquele banheiro.
Minha avó está vindo do Jardim e suponho que ela está a minha procura. Leva duas sacolas numa das mãos quando vem até mim, as rugas de preocupação surgindo-lhe na testa.

— O que foi que aconteceu, Igith? — Vovó Yame indaga arreliada. Sua mão vem até a mim e analisa o curativo antes que o olhar se eleve para cima do meu ombro.

— Não foi nada. — Eu a tranquilizo, e decido que não estou nem um pouco feliz que ela está olhando para minha trás. Para aquela pessoa em específico.

— Foi um corte ligeiro. Daqui à alguns dias sara. — O amigo do meu irmão fala por mim aquilo que eu não diria a minha avó. Tenho o péssimo hábito de aguardar as coisas somente para mim mesma.

Minha avó parece agradecer por ele tomar a palavra quando abre um sorriso para ele.

— Oh Querin, você ajudou minha netinha? — A mais velha articula contente. E o tal de Querin, parado ao meu lado, assente modesto, a expressão tranquila ainda aparente.

Acho estranho que minha avó conheça ele e o trate com intimidade, embora eu saiba que ela trata como netos muita gente nova que a mesma conhece e gosta.

— Igith é uma desastrada — Ela dá uma risada que provoca no garoto aquele aparência de quem quer sorrir, mas não o faz. — Tem um bolo no frigorífico para vocês. Convide o Ur também.

O moço assente novamente. É um cara de poucas palavras ao que parece.

— Obrigado senhora Yame. — ele acena para minha avó e vai-se embora. E novamente acho questionável a minha atitude de me virar e vê-lo desaparecer ao final do corredor.

— Ele é lindo, não é? — minha avó indaga com petulância na voz. O que me faz revirar os olhos quando torno a me voltar para ela.  — Uma pena que eu já sou velhinha, mas você é jovem, minha linda.

Eu bufo cruzando os braços debaixo dos seios.

— Não fale isso vovó — eu lhe repreendo e decido que o melhor é cortar o mal pela raiz. — Eu cuidei das suas plantas e elas me machucaram, viu só quanta ingratidão? Agora preciso descansar. Te vejo depois. — dou-lhe um beijo na testa pela proximidade de nossas alturas antes de me virar e seguir o mesmo caminho que o amigo de Ur seguiu.

Entro no meu quarto e bato a porta após me encontrar no interior. Deslizo contra ela me permitindo respirar como deve ser ao me sentar sobre o chão frio.

Não entendo o porquê eu estou tão ofegante se até minutos atrás parecia tão calma. Minhas mãos estão suando tanto e não consigo compreender muito bem em que posição me encontro.
Respiro fundo para tentar me acalmar, e em contrapartida as imagens do momento em que o amigo do meu irmão estava fazendo o curativo em meu pulso parecem que estão me causando esse calor estranho que percorre o meu corpo.

Por que ele fez isso? Por qual motivo se deu ao trabalho de me ajudar? O normal é as pessoas não se importarem umas com as outras. Isso é o habitual. Mas o que o levou a fazer questão de cuidar do meu machucado?

É tudo muito estranho e confuso para mim. Porque penso também na probabilidade dele querer algo em troca. E cogito perguntar isso à ele, uma ideia idiota, mas a mais primordial que tenho até decidir que o que quero mesmo é distância daquele garoto.

Mesmo que seus olhos escuros e intensos não saiam da minha cabeça.
O que me irrita muito também.

— Chega, Igith! — Eu falo decidida. — Você não costuma pensar em garotos. São todos uns tolos e idiotas. Sempre querem algo em troca. Você não é assim,  Igith. Você não pode ser assim. — repito chateada comigo mesma conforme tiro meu traseiro do chão e decido que isto é o melhor para mim.

[...]

A noite está tão fria que tenho de estar usando mais uma blusa de mangas longas debaixo do moletom de capuz azul.
Depois de ter tomado banho eu me sentei em frente à escrivaninha e continuei meu desenho de mais cedo.

Não fui almoçar junto dos outros, mas ouvi vozes lá em baixo.

"Precisa de mais sombra nas laterais"

Essa frase vem em forma de lembrança e acabo seguindo seu conselho. A rosa despedaça dentro de uma cápsula ganhou um contorno muito melhor, de modo que parece mais realista ainda.
Geralmente eu faço desenhos assim, estranhos, rabiscos que parecem fazer jus ao que sinto mesmo que eu não goste de quase nenhum.

Ouço meu telefone vibrar em cima da cama, mas poucas vezes tenho coragem de atender à ligações. É quase a hora do jantar e se eu não descer logo, alguém vem bater à minha porta tarda nada.

Na real, se tem uma regra que é seguida ao pé da letra nesta casa é: todos na mesa na hora do jantar. Por isso é obrigatório que todos estejam em casa antes das sete.

Eu deixo o bloco de desenho de lado e agora estou abrindo a minha agenda de capa dura tingida em diferentes tons de azul. Eu registro a data de hoje. Passei a ter a mania de registrar os dias que considero diferentes nela.
É um costume, e acho engraçado que nunca descrevo o que se passou, apenas a data que me recorda do que foi diferente.

Do que foi bom e diferente.

Hoje foi diferente, mas não sei se foi bom. Porque um garoto se aproximou de mim e levo isso como sendo estranho.
E muito mais estranho ainda é eu estar rabiscando a inicial daquele nome posteriormente a data antes que batam a minha porta e eu dê um sorrisinho irônico.

Apostava que não demoraria para isto acontecer. Vovó Yame ou Ur devem ter decidido vir até aqui me puxar para o andar de baixo.
Eu volto a fechar a agenda, deixo a caneta de lado e impulsiono a cadeira a afastar-se para trás.
E não sei dizer exatamente o que estou sentindo quando abro a porta e constato que não é a minha avó, muito menos o meu irmão que estão na minha frente neste momento.

— Você? — é a única palavra que consigo articular para o moço de semblante acanhado que me encara com as mãos enfiadas nos bolsos das calças jeans surradas.

como você faz para deixar
meu fogo selvagem
tão suave que acabo virando
água corrente

~Rupi Kaur



Aiai gente, e então, o que acharam desse capítulo?
Aqui vocês começam a conhecer o novo personagem da história e eu estou ansiosa para que formem a vossa opinião sobre ele. 🤭

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