031: Marcas do passado

AVISO DE GATILHO:

Este capítulo contém menção de crises de ansiedade e abuso (não de maneira explícita).
Caso for sensível pode pular a primeira parte.

[...]


Inspira Igith.

Agora expira. Devagar.

Inspira mais uma vez, você consegue. Sempre conseguiu.

Solta o ar, com calma. Você está bem, está segura. Foi apenas mais um sonho, de milhões que já superou e ainda irá ultrapassar.

Digo a mim mesma, abraçada aos meus joelhos dobrados com a cabeça escorrada na parede fria do banheiro. Estou aqui há pouco menos de quinze minutos lutando contra uma crise de ansiedade. Mais calma agora. Eu estou mais calma agora depois do pesadelo que tive de um quarto fechado, lençóis verdes e meu corpo pressionando contra aquele enorme colchão. Dos dedos dele, em mim, tudo que quis fazer. Lágrimas silenciosas escapam de meus olhos, deslizam pelas minhas bochechas, ardentes, e se encontram por fim no meu queixo.

Um soluço rompe minha garganta. O único som que consigo ouvir depois da minha respiração forte e descompassada.

E eu me deixo chorar, sempre silenciosa. Mas dessa vez eu não estou chorando por Gāni. Eu estou chorando por mim mesma. Não por ter sido vítima, mas por ter suportado tanto. Por ter sido tão forte. Por ser tão forte assim como todos eles fizeram questão de clarificar ao longo desses dias.

Você é forte para caramba Igith.

Fazia um tempinho que eu não sonhava com aquele dia. Eu me sentia agradecida por isso. Porque lembrar me deixava vulnerável, fraca, triste. E acima de tudo me fazia sentir culpada. Uma culpa gigante e um ressentimento perturbador me acometia toda vez que tinha uma lembrança de Gāni e de como foi cruel comigo. E depois de como eu fui cruel comigo. De tantas maneiras... Cobrei tanto de mim por alguém com a mente doente, como se isso fosse apagar o que seus toques causaram no meu corpo, em meu coração, em minha alma.

Definitivamente toda vez que me encontrei nesta situação eu me continha tanto para não surtar e chamar a atenção de alguém. Mas me punia. Porque de alguma forma sentia que, dirigindo aquelas palavras feias para mim eu estaria justificando as atitudes dele. E isso começou logo após a realidade do que me tinha acontecido ter caído sobre mim como um balde de água fria, e eu ir ter passado a jogar os mais quentes sobre mim.

Detesto que tenha tido o corpo desenvolvido precocemente. Porque caso não, ele não olharia para mim assim como não olhava para Yudis.

Detesto como meus seios parecem tão enormes. Os garotos estão o tempo todo de olho neles.

Detesto a cor dos meus cabelos. Chamam tanta atenção e as pessoas vêem a mim e ao meu tamanho inteiro. Elas começam por aí, baixam o olhar até meu peito, meus quadris largos, as coxas grossas mesmo que eu evite comer tanto, e depois me fitam como se eu fosse um pedaço de carne.

Detesto minha altura. Ela me faz parecer muito pequena.

Detesto minha inocência. Detesto meus colegas. Detesto minha escola. Detesto minha família. Detesto a sociedade....

Era só um resumo simples de: eu me detesto por não ter sido capaz de lutar nem um pouco em busca de algo que jamais devia ser motivo de luta.

Ninguém no mundo merece ser tirado o direito de escolher se amar. E eu odiava tudo por isso. Porque tiraram minha liberdade de escolha. Passei a ser tão indecisa sobre tudo, tão ressentida, tão magoada... Que tudo que sobrou de mim foram cacos, estilhaços tão pequenos que firmaram em mim a ideia de nunca poder voltar a estar, no mínimo, com eles colados novamente, ainda que houvessem brachas entre si.

Pois eu ainda estou quebrada. Mas também estou me reconstruindo. Aos poucos. Não sozinha. Fui forte demais por muito tempo assim, e agora, estou disposta a entender cada paravra que Querin disse um dia para mim. As pessoas da minha família estão se doando para mim. Ele se doa por mim. Para a minha melhora. Essa que me faz mergulhar no mais profundo da minha alma e verificar cada marca do passado que quis esconder de mim mesma. Muitas frescas. Algumas saradas. Outras ainda abertas, porque sua cura vai ser tão lenta que minha única opção vai ser aceitar que as tenho.

Conforme me levanto do chão do banheiro eu aceito que as tenho. Olho para minha pessoa refletida no espelho oval e aceito que essa sou eu agora, a versão mais boa que já tive de mim mesma. A versão mais próxima de quem eu quero me tornar, e não de quem meu passado quis me fazer ser.

Uau, então essa sou eu, Igith Kefrām: uma garota quebrada, marcada, e grata. A-hã, acho que estou muito grata por estar me dando a oportunidade de recomeçar, e, acima de tudo, por me perdoar pela primeira vez em cinco anos.

Deus... Eu estou mesmo fazendo isso.

Nesse mesmo instante cubro a boca com ambas as mãos, meio chocada pelo golpe que a realidade dá em mim. A minha oração... Ele me ouviu mesmo?
Nossa, vovó Yame consegue ser tão acertiva que chega a dar raiva.
Eu solto uma risadinha abafada pelas mãos ainda que lágrimas estejam caindo de meus olhos. São lágrimas de alívio e gratidão e satisfação. Aquele tipo de lágrima que limpa o coração e o deixa tão levinho que se assemelha a uma pluma.

Tão diferentes das que derramei anos atrás. Elas eram corrosivas, destrutivas, e pesadas.

Me afundavam, me afogavam.

Hoje estou me sentindo, pelo contrário, submergindo na água e boiando como se soubesse nadar. A sensação de liberdade deve causar isso na gente, certeza.

Eu respiro profundamente, ainda me encarando sem vontade nenhuma de desviar o olhar por não gostar do que vejo.
Meu cabelo está uma zona e ainda assim não é motivo suficiente para querer parar de me apreciar. Meus lábios estão um pouco ressecados, quando os lambo sinto o gosto salgado de lágrima e arfo. Quero guardar esse momento num potinho e levá-lo para sempre dentro do meu coração.
Levo as mãos até onde o órgão exerce sua função com todo fruor neste momento, é tão intenso que me faz sentir extasiada. É como se ele adorasse bater nessa intensidade somente por eu encostar a mão aqui. É como se exclarecesse que está fazendo isso por mim. Para mim. Uma promessa tão clara que um dia vou me amar tanto que será insuportável de conter aqui dentro.

Como Rupi Kaur em um dos seus textos, eu quero ser tão cheia de mim que vou começar a transbordar a ponto de inundar quem estiver ao meu redor. E vai ser bom. Porque estou achando que esse é meu maior desejo para mim mesma agora.

Mas não agorinha... Talvez, depois. Neste exato momento minha barriga está roncando e decido que preciso mesmo comer alguma coisa, entretanto, antes, penso que um banho seria tão bom quanto foi chorar esta madrugada. Banhos são relaxantes para mim.

Eu começo a me despir bem devagar, peça por peça. E quando olho para minha marca bem ali no cantinho do quadril esquerdo, eu sopro ar com calma porque se torna a primeira vez que não a encaro com ódio por estar simplesmente lá. Mas também não quero que ela seja apenas uma marca qualquer, porque não é.

Escorregando as pontas dos dedos indicador e do meio nela, vou pensando em tudo a que lhe associava. Gāni. Ódio. Ressentimento. Fraqueza. Pena. Não quero mais isso. Quero que ela tenha outro impacto em mim, outro significado. Tão forte quanto sou capaz de ser. Portanto, quero que ela me lembre que agora sou capaz de amar. De perdoar. De superar qualquer dificuldade que venha pela frente, porque sou capaz. Sim, esse significado é impactante, ele vai me lembrar toda vez que eu pensar em desistir, que já superei uma das piores dores, a dor da perda de mim mesma, e ainda fui capaz de me levantar.

Gosto disso. Eu pondero empurando a porta do box para o lado antes de entrar e regular a temperatura da água no registro do chuveiro. Ah, sim, como eu gosto disso.

Eu solto meus cabelos e deixo que a água morna me faça uma terapia gostosa. Vou apreciando a temperatura conforme passo o sabão pelo meu corpo sem hesitar tocar em mim. Eu me perdôo. Lembro quando um calafrio atravessa minha espinha. O passado ainda pode viver em mim, mas eu não quero mais viver nele. Eu quero superá-lo. Lavo meus cabelos com a maior calma, cada vez mais tranquila. Mais livre. Eu mereço um recomeço. Eu mereço ser amada. Eu mereço me amar. O último pensamento me faz sentir o coração agitado, é como se ele aprovasse, dizendo estar a espera desse momento há séculos.

Sorrio. É perfeito.

Finalizo com a água mais quentinha, porque gosto. Hoje a sinto de uma maneira que nunca a senti antes, apreciável. É a sensação mais incrível  que sinto hoje.
Mentira. Já senti tantas outras só nessa madrugada. E quem diria, eu tornaria uma madrugada deprimente num momento tão significativo para mim.

Acho que é isso que dizem: o mundo não dá voltas, ele capota.

E é exatamente isso que penso quando, assim que me visto e admiro Bursüm dormir feito um anjinho de cabelos ruivos na minha cama, eu abro a porta no timing perfeito para encontrar Querin fazendo o mesmo do outro lado do corredor. Ambos fechamos as nossas portas com cuidado e ficamos nos encarando, atentos, ansiosos.

É impossível esconder o quanto estou feliz agora. Mas também é impossível esconder o quão hesitante estou agora, porque lembro que me desentendi com ele ontem, e não sei ao certo o que se passa na cabecinha dele. Querin sempre foi o melhor de nós dois a guardar seus pensamentos e sentimentos, diferente de mim que sou bastante transparente. E não é como se ele quisesse ser assim. Suas marcas o afetaram dessa maneira.

Querin enfia suas mãos nos bolsos da calça moletom cinza e inclina a cabeça em minha direção. Estou petrificada. O encarando feito boba, admirando os cabelos negros bagunçados e os olhos feito onix que não desviam de mim por um segundo, o que antes me incomodava, mas atualmente me faz sentir a pessoa mais interessante pela maneira intensa que esse cara me analisa.

— Estava tomando banho? — É a primeira pergunta que ele faz. O corredor tem uma largura de um metro e meio, grande o bastante. Mas assim que assinto a distância que nos separava se estreita demais porque ele dá alguns passos precisos em minha direção.

Querin fica pertinho de mim, mas ainda respeita o meu espaço pessoal. Que o espaço pessoal se dane. Eu o queria mais próximo.

— Estava — respondo contida, minha voz tem um toque de rouquidão, talvez pelo choro. Talvez pelo pouco que dormi. O garoto parece perceber isso, seus olhos correm preguiçosamente por meu corpo vestido em outro pijama longo com estampa de gatinhos e depois encontram os meus. Ai meu Deus, juro que minhas pernas ficam bambas quando um dos cantos da sua boca se puxa num sorrisinho discreto. Meu coração vacila. Eu vacilo. Sou tão fraca por ele.

Gosto como Querin me olha justamente por isso. Seu olhar reage em mim de maneira que o que ele sente, me faz sentir também. Me sinto bonita.

— Insônia? — Pergunta ele, indicando as escadas, me intimando a segui-lo para o andar de baixo.
Eu assenti como se ele pudesse me ver, mas só ficamos lado a lado minutos depois, caminhando com calma nos degraus de madeira. — Parece que também sente fome. — Pondera ele com o ronco nada discreto que meu estômago dá.

Ai que vergonha!

Eu me obrigo muito a manter a postura.

— Se estou acordada devo fazer algo útil ao menos — me defendo, entrelaçando minhas mãos atrás do corpo. — E você, está com insônia também?

Ele faz que não.

— Acordei para beber água, sinto muita sede de madrugada. Hoje é a primeira vez que vejo você descer, na verdade.

— É raro que eu faça. Mas hoje estão acontecendo coisas raras.

— Tipo essa expressão de felicidade estampada na sua cara? Bom... Devia tornar corriqueiro.

Eu rio, mas concordo. — É bom demais.

Então, ao descermos o último degrau, prestes a cruzarmos a cozinha eu franzo o cenho e aperto os lábios, assumindo uma postura mais séria ao me voltar para ele que para ao me ver parar.
Ainda que ele me olhe com paciência, me sinto um pouco intimidada, mas nem isso me faz travar ou voltar atrás. Pois se tem algo que aprendi nos últimos meses, é que ser sincera e me abrir sobre o que sinto com os outros não é nem de longe errado. É, por vezes, a escolha mais certa a se tomar.

— Você está bravo comigo, Querin? — Decido ser direta porque estou com fome e se essa possível conversa der errado vou poder me afogar em muita besteira no meu quarto. Não consigo ler sua expressão, principalmente pelo ambiente da casa estar escuro. As únicas luzes que iluminam parte de nossos rostos são as de presença dos eletrodomésticos da cozinha.

Ele cruza os braços sobre o peito e me olha com a testa franzida. Ah, não. Agora que eu vou me trancar no quarto. Sua covarde.

— Bravo com você, por quê?

— Ah, por favor, vai dizer que não se lembra da nossa briga de mais cedo?

— Para começo de conversa Igith, eu não briguei com você. Você que gritou comigo por eu ter sido sincero. O que de verdade não consegui compreender, e, de tão teimosa que você é, foi mais fácil eu ter ficado frustrado naquele momento que bravo no sentido literal.

— Ouh... Então você não ficou bravo? — Ele balança a cabeça para lá e para cá, negando. — Nem um pouquinho? — Ele faz que não novamente, cedendo os braços para o lado do corpo. — Então não me odeia nem nada disso? — Insisto, um pouco hesitante com a resposta. Querin dá um risadinha silenciosa, daquelas que o corpo todo acompanha. A minha favorita. Logo pega na minha mão e me puxa para dentro da cozinha.

— Vem cá — pede. — Eu não te odeio, nem estou bravo com você. Não cheguei nem perto disso. Afinal, houveram muitas outras oportunidades que poderiam ter despertados esses sentimentos por você, e se não aconteceu, não ia acontecer ontem só por você ter sido teimosa mais uma vez. Já disse o quanto não gosto disso em você e o quanto gosto na mesma intensidade?

Eu mordo o lábio inferior contendo um sorriso ao ouvi-lo dizer essas palavras. Querin tem toda razão. Eu o dei tantos motivos para me detestar ao longo desses meses... Mas aqui está ele, puxando uma cadeira para mim e me estimulando a sentar nela. E dizendo que gosta de mim.

Diria que não o mereço. Entretanto acredito que ele seja tudo que eu mereço num garoto depois de acreditar que nenhum homem poderia ser bom a esse ponto.

Querin é o melhor de todos para mim.

— O que está fazendo? — Eu indago ao vê-lo pegar algumas coisas da geladeira e depois dos armários suspensos na parede em cima da pia.

— Preparando o melhor lanche da sua vida, oras — Deus será que ele tem algum defeito? Ele é tão perfeito... — Quer algo específico?

Eu digo que não.

— Me surpreenda.

E ele passa a fazer duas sandes para nós, o que torna tudo ainda mais especial. Sei que ele tinha vindo apenas beber água, e agora está disposto a passar a madrugada comigo, dispensando suas horas de sono, por mim.

— Suco ou refrigerante?

— Refrigerante. — Querin pega dois e junta a bandeja onde estão nossos sanduíches. Ele o empurra para mim, eu nego. — O que acha de lanchar no jardim da minha avó? Meu pai proíbe a gente ir lá fora tão tarde, mas, estou querendo infligir algumas regras.

— Que vibe de menina má é essa? — Pergunta ele com uma das sobrancelhas arqueadas, no entanto pega na bandeja e se guia junto comigo ao corredor que leva a porta traseira.

Rio. Dou de ombros. E avanço para abrir a porta para nós

— Madrugada sinistra, já disse.

— Gostei dessa, e desse pijama — diz ele quase atravessando para o lado de fora, mas antes de ir olha para mim, tão pouca a distância entre a gente que ele se curva e beija o canto de minha boca. — E de você, gosto demais de você quando não está sento teimosa.

Como ele sabe me deixar desnorteada, Senhor. Ai, eu tenho que ter muita força de vontade para disfarçar e piscar um olho para ele de maneira descontraída.

— Eu gosto de você o tempo todo. Até quando está sendo chato. — Ele também dá uma risada suave e ambos seguimos a nos acomodar um do lado do outro, separados por uma bandeja de madeira da qual tiramos nossos lanches e nos deliciamos em silêncio.

Até eu me lembrar de algumas paralvras de mais cedo, quando conversamos e eu me chateei com ele. Disse que o detestava. Mas é mentira. Eu não o detesto nem um pouco. Pelo contrário, gosto dele. Demais, a ponto de se tornar insuportável guardar isso só para mim. E como Yudis me disse, ele merece saber, para isso preciso reunir coragem porque seria a primeira vez que falaria sobre sentimentos do gênero para a pessoa que os causa.

Paciência e estratégia.

— Isso daqui está bom — decido quebrar o silêncio auto imposto entre nós, o estimulando a parar de comer e se virar para mim, atento. Faço questão de abrir um sorrisinho provocativo antes de continuar: —, só não vejo o que há de melhor aqui. É tão normal quanto tantos que já comi.

Quando ele erriça as sobrancelhas com presunção, eu contenho um risinho e mordo meu lanche uma vez mais.

— Ter sido eu a preparar para você torna isso daí melhor — devolve todo cheio de si.

Eu rio, assentindo.

Garoto esperto.

— Pensando assim torna tudo diferente. — Concordo com ele e volto minha atenção ao jardim agora não só sobre os cuidados da minha avó, como também dos dele.

Querin passou a fazer parte desse projeto da senhora Yamenet de uma maneira que ninguém poderia imaginar. Na verdade, ele passou a fazer parte não só do projeto ou dessa casa, como uma visita que fica uns dias e depois vai. Mesmo a família Kefrām sendo a pior que ele poderia escolher para ficar, aqui está ele, sendo o sétimo membro da família. Aquele que chegou e ajudou a botar as coisas no lugar. Aquele que me ensinou a pedir perdão sempre que necessário.

— Querin, me desculpa pelas coisas que disse mais cedo, no seu quarto. Eu estava na defensiva, e quando estou na defensiva acabo ficando irritada, e irritada eu falo muita coisa desnecessária.

Ele está me encarando, eu sei. Mas eu não estou fazendo isso de volta, pelo contrário, deixo o lanche pela metade no lugar e abraço meus joelhos dobrados de modo que encostem no peito e meu queixo descanse ali.

— Só quando está irritada? — Seu tom é suave e divertido, me faz soltar um sopro antes que empurre de leve seu corpo com o meu.

Então o olho dessa vez.

— Tudo bem, eu faço isso muitas vezes, é um traço péssimo meu, mas juro que quero ser diferente nesse aspecto, porque não curto tanto ele agora, antes era só um mecanismo de defesa e só. Não quero me defender desse jeito. — Eu suspiro, estou indo por caminhos que não devia agora. O assunto é sobre nós. Não sobre mim. — Deixa isso de lado, ok? Quero mesmo que saiba que me sinto mal por ter dito aquelas palavras, eu estava nervosa e disse que te detestava. É mentira. Eu não te destesto. E depois fiquei pensando no assunto e temi muito que ficasse bravo comigo.

Ele me encara relativamente mais sério. Ao empurrar o que comia com auxílio do refrigerante, parece pensar seriamente no que responder.

— Já disse que não estou bravo com você.

Eu me encolho, assentindo.

— Eu sei, mas... — eu me interrompo, sopro o ar bem devagar. — Mas você ficou praticamente a noite toda me evitando, sequer olhou para mim durante o jantar.

Por algum motivo Querin ri, mas é uma risada meio apática. Não gosto muito dela apesar de ser bonita quanto as outras.

— Essa foi você durante a noite de hoje, Igith. Teve essa impressão exatamente porque esteve fugindo de mim, eu notei. Não quis falar comigo mais, nem olhar na minha cara, muito menos compartilhar o mesmo ambiente que o meu, porque fugiu da sala quando eu apareci junto da sua irmã e voltou para a cozinha como se houvesse mais alguém lá. E não quis te pressionar a falar comigo embora tenha ficado incomodado. Porque eu prefiro conversar a guardar as coisas para mim. Se estivesse bravo ou magoado, teria te dito com certeza.

— Ainda assim eu sinto que devia ter pensado antes... Às vezes eu consigo ser muito patética. — Murmuro pressionando os lábios no tecido que cobre meu joelho, baixando a cabeça até sentir seus dedos fazerem carinho no meu cabelo ainda úmido.

— Às vezes você se cobra demais, o que não é bom. Não quero passar a mão na sua cabeça, no sentido figurado, claro, pois adoro seus cabelos, mas entendo se estiver precisando de mais tempo para decidir dar esse passo importante. Então vou respeitar e esperar paciente por sua decisão. — Uma enxurrada de emoções cobre meu corpo, meus olhos, arrepia meus pelos, mas não choro. Me limito a fungar e olhar para o dono dessas palavras que guardo num cantinho bem especial do meu coração antes que eu erga a cabeça e o encare. Uma brisa deliciosa e fria me faz estremecer por estar usando apenas uma camisa de mangas curtas, o que chama atenção de Querin e o faz me olhar preocupado. Mal sabe ele que seus olhos em mim me arrepiam mais que simples ventadas. — Está meio frio, quer entrar?

Eu faço que não com um sorriso pequeno esboçado no rosto. É tão bonito vê-lo preocupado comigo. É tão bom ser motivo de preocupação de alguém. Me faz sentir importante. Eu gosto.

— Quero ficar aqui com você, só mais um pouquinho.

fique firme enquanto dói
faça flores com a dor
você me ajudou a fazer
flores com a minha
então floresça de um jeito
lindo perigoso escandaloso
floresça suave do jeito que você preferir
apenas floresça

Rupi Kaur

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