024: Um equívoco e nada mais

Acordei a pouco menos de cinco minutos, no entanto ainda não consigo, ou simplesmente não tenho coragem suficiente para abrir os meus olhos. Portanto nesse curto período de tempo eu pude notar que onde quer que eu esteja, não é o meu quarto, pois o cheiro daqui é muito específico, assim como o som de vozes distantes me fazem entender que definitivamente não estou no lugar onde acordo todas as manhãs.

Eu tento me lembrar por qual motivo não estou no meu quarto, mas erro miserávelmente porque um resoluto bloqueio parece afetar minha mente de momento, de tal forma que me obrigo a forçar as pálpebras a se abrirem de modo que por fim começo a ganhar visão de um teto branco acima de mim tal igual a cor das paredes que me cercam.

Solto uma respiração trêmula pelo ato me causar certa dor de cabeça, ou melhor, piorar a que já sinto desde uma ponta a outra do meu corpo. Todo ele parece pesado, cansado, dolorido. Como se eu tivesse corrido uma maratona ou tivesse passado o dia inteiro praticando jiu-jitsu no quintal de casa.

Casa... Essa não é a minha casa. O pensamento passa por mim feito um feixe de luz e ansiosa eu varro a região com o olhar em busca de entender onde estou, e quando miro a alguns palmos de mim, longe da maca na qual estou deitada desconfortavelmente, a minha ficha parece cair pela primeira vez ao dar de cara com um homem trajando um jaleco branco, ao seu lado, os meus pais.

Pisco os olhos vezes seguidas sem me importar que isso intensifique a minha dor, de alguma forma, qualquer que seja, não me importo de agir dessa maneira porque sinto que mereço. Por algum motivo que ainda não me lembro, mas que certamente me fez vir parar em um hospital.

Os mais velhos que antes pareciam manter uma conversa calma se aproximam de mim, minha mãe em especial vem com tanta urgência em minha direção e só de notar os olhos úmidos envoltos em leves olheiras eu já começo a me sentir mal, pois lá no fundo sei que sou a culpada pelo estado de desespero da mulher que está me abraçando agora e que sem intenção nenhuma pressiona demais o meu corpo a ponto de gerar uma careta de dor em mim. A qual não some mesmo quando o meu pai se aproxima da gente e a afasta de perto com gentileza.

Sevda... — Papai murmura em gesto de repreensão. Mas mamãe nem lhe dá atenção, ela olha para mim, lágrimas novas se formando nos olhos.

— Você finalmente acordou, bal.

Eu sinto que tenho que me esforçar ao menos a sorrir para ela e confirmar que sim, porém nem isso e muito menos articular palavras estou sendo capaz de fazer antes que o doutor peça para que eles se afastem um pouco e comece com as avaliações básicas.

— Como se sente, Igith?

Eu o encaro pensando no que dizer, mesmo sabendo que definitivamente não estou lá nos meus melhores dias. Eles são pacientes em esperar pela minha resposta, só que não faço ideia sobre como começar com isso... Com uma conversa.

— Eu... hmmm... Eu não sei. — Falo a verdade, a confusão ainda é grande e não queria ter de mentir para ele. — Pai? — O encaro em busca de ajuda, de saber porque estou aqui, até que por instinto ao mover de leve o braço esquerdo eu olho para aquela direção. Para o meu pulso e os três novos curativos adesivos colados a minha pele.

E como um gatilho perfeito para clarear minha memória tudo vem até mim como um baque brusco da realidade acertando a minha face. As lembranças de ontem, as imagens, as falas, todos os acontecimentos se progetam muito rápido na minha cabeça de maneira que não consigo acompanhar e sinto a dor se intensificar provocando lágrimas nos meus olhos.

Eu lembro de extremamente tudo. Desde besteira que fiz na cozinha de manhã até àquela que quase cometi de noite no terraço da escola e pela terceira vez a minha ficha cai quando entendo que: estou absurdamente ferrada em todos os sentidos.

— Se lembra do que aconteceu na noite passada, certo? — Nem coragem tenho para olhar nos olhos dele. Nos olhos de todos eles. Somente faço que sim com o olhar choroso fixado no outro lado do cômodo, pois estou envergonhada demais para os encarar.

— Ela vai ficar bem, não? — Senhor Onur certamente está se dirigindo ao doutor quando faz a pergunta. Eu não me atrevo a olhá-los nos olhos, mas segundos depois o profissional confirma a sua pergunta.

— É certo que sim. A sua filha deve estar em estado de choque assim como acontece com setenta e cinco por cento das pessoas após o atentado contra a própria vida. Dêem-lhe tempo, ela vai precisar.

E então papai faz outras perguntas que ele considera necessárias e o doutor se apronta a exclarecê-las todas.

Ambos se afastam e parecem começar uma conversa mais privada, da qual eu não tenho interesse em saber, apesar de que, muito provavelmente surtirá seus efeitos em mim. Dou um suspiro trêmulo. Minha cabeça ainda permanece voltada para o outro lado do quarto, aquele em que ninguém está.

Pois sei muito bem que minha mãe está me olhando neste momento. Eu sinto o peso do seu olhar sobre mim e não estou disposta a encará-la de volta. Não quando sinto tanto medo do julgamento que eles podem estar carregando pelo que estive a ponto de fazer ontem. Esse pensamento me enlouquece. E eu não sei ao certo se serei capaz de lidar com as consequências dos meus atos agora. Tudo ainda parece muito confuso, tamanha a forma que minhas emoções e meus sentimentos se misturam sem me dar tempo de ao menos avali-los a ponto de me causar um aperto no peito e uma vontade gigante de começar com um choro que com toda certeza do mundo não cessaria em menos de cinco minutos.

Uma hora depois já estamos a caminho de casa. Meus pais resolveram o que tinham de resolver com o médico e mais algumas pessoas que eu não faço ideia de quem sejam e depois que mamãe me ajudou a trocar a roupa de hospital por uma muda que ela mesma trouxe, papai me levou até ao nosso carro do lado de fora do estabelecimento. Estou calada desde então e me manteria assim até ao real fim da minha vida se dependesse apenas de mim.

Mas infelizmente as coisas não são assim.

Encosto minha cabeça no vidro da janela do carro e observo os edifícios e as várias placas na rua da cidade ficarem para trás. Olho com atenção uma placa de comercial de pasta de dente, na qual uma senhora segura em um tubo e numa escova. A legenda é uma das piores que leio: “Já deu um sorriso hoje?”.  Então eu bufo. Volto minha atenção para os meus próprios pés e sinto que estou novamente lacrimejando. Não tem como sorrir hoje depois do que fiz.

E agradeço tanto que meus pais tenham sido compreensíveis o suficiente para se manterem quietos durante o trajeto todo até finalmente chegarmos a rua de casa. Quando ela entra no meu campo de visão meu coração parece que vai parar a qualquer momento, tamanha a ansiedade que sinto por não saber o que me espera a partir de agora. Pois estou com medo. Medo de ser rejeitada e de ter estragado tudo com eles porque tenho ciência do grande equívoco que foi a minha decisão ontem, e na verdade, é isso que me faz perceber o quanto tudo pode começar a dar errado desde então.

— Consegue caminhar? — Minha mãe pergunta quando abre a porta para mim. Eu assinto. Mas estou errada. Minhas pernas continuam um pouco fracas e tenho de me apoiar nela quando entramos em casa.

Sinto as mãos trêmulas, o nervosismo está abrindo espaço dentro de mim e me faz travar até mamãe gentilmente colocar sua mão no meu ombro e devagar atravessar o corredor junto comigo assim que trocamos os sapatos pelos chinelos enquanto atrás da gente papai fecha a porta.

Tinha tomado a decisão de não olhar para ninguém no instante em que pusesse os pés na sala de estar. Essa era a minha melhor opção no momento. Covarde, porém, a minha melhor opção. No entanto as coisas não correram assim como o esperado, ao fim do corredor eu cometi o grave erro de levantar a cabeça por instinto e me arrependi amargamente do que vi naquele momento, no sentimento pesado que eles compartilhavam, na mágoa esmagadora e na dúvida que plantei na mentes de cada um deles.

Essa se tornou a pior imagem que eu tive o desprazer de contemplar hoje.

A imagem da minha amiga se negando a aceitar que as últimas vinte e quatro horas realmente aconteceram, dela não conseguindo se manter de pé e voltando a jogar seu peso sobre o puff atrás de si encostado a parede das janelas fechadas do cômodo, deixando lágrimas silenciosas lhe escaparem dos olhos ao passo que Querin lhe dá apoio sentado ao lado dela.

Ele ainda não olha para mim e nem dou o tempo de fazer isso porque minha atenção se volta para Ur, tão confuso quanto tia Banu está para entender por que eu tive de decidir isso. Talvez a mágoa que eles sentem é tão grande quanto o remorso perfurando meu peito ao notar a maneira na qual vovó Yame balança a cabeça negativamente antes de ajeitar a sua bata e se retirar como se lhe fosse difícil continuar aqui, encarando a decepção de neta que ela tem.

Embora dolorosa, essa nem sequer é a pior parte. Ela vem a seguir, com o romper da porta do quarto de Bursüm e a aproximação decidida dela em minha direção, de punhos cerrados e olhos transbordando tudo o que as palavras ainda não me fizerem entender.

O quão furiosa e magoada ela está comigo.

— Por que fez isso, Igith? — Eu pisco os olhos tentando me livrar da torrente de emoções que me precorrem. Bursinha para em frente de mim, e olhando fixamente consigo ver o quanto seus olhos esmeralda antes brilhantes escureceram devido as lágrimas. — Por que quis tirar a minha irmã de mim?

Eu não respondo, mas recebo com dor as palavras que ela me diz inconformada, tanto quanto os golpes nada amigáveis que ela destribui em minha barriga apesar de que eles não estão me afetando na mesma intensidade que a decepção dela fez.

— Por que tem de ser sempre tão egoísta e pensar só em si mesma? Como pode ser tão impulsiva assim, Igith? — Bursüm continua batendo em mim, e eu, no caso, apenas deixo que as lágrimas escorram de meus olhos como se não tivessem fim. Eu deixo que elas caiam. Eu deixo que elas me castiguem por ser tão imprudente. — Tem que parar com isso Igith! Tem que parar de pensar que está sozinha! Isso te faz egoísta, e eu detesto muito, muito, mesmo. Eu te detesto por isso.

Meu primeiro soluço rompe minha garganta, seguido por outro e outro mais audível, que me faz tremer. Como eles tiveram coragem de contar isso para ela?

— Bursüm, querida... — Nossa mãe se pronuncia pela primeira vez, porém suas palavras não fazem efeito. A mais nova parece estar tão magoada que está fora de si. — Alguém leve a Bursüm para o quarto, por favor.

Não consigo parar de tremer agora, não com os julgamentos dela. Não com o peso dos meus atos cobrindo meus ombros. Ur se aproxima da gente conforme nossa irmã começa a perder as forças nos golpes que joga em mim, e quando chega perto ela tenta o afastar, mas sendo ele mais forte vence a batalha e a pega no colo, encostando a cabeça dela no se ombro enquanto a outra mãos está em volta da cintura dela.

— Vamos pequena. Você conversa com a mana mais tarde.

— Não. — Ela rebate baixo. — Eu não quero conversar nunca mais com ela. Eu odeio a Igith.

Ur me olha com pesar no mesmo instante e, como se eu não fosse capaz de suportar a pena dele baixo o olhar e decido que encarar os meus pés é dez vezes melhor que observar o que eu causei no nosso lar.

— Quando ela tiver descansado vocês conversam, tudo bem? — É papai que fala para eles e não sei se assentem ou não, porque no minuto seguinte mamãe está me acompanhando ao meu quarto e averiguando alguma coisa quando entra no banheiro antes de mim.

— Você precisa de um banho. — Ela afirma lá do outro lado. Eu faço que sim mesmo que ela não me veja e me sento na minha cama, exausta.

Estou prestes a fechar os olhos, mas ao vê-la sair do banheiro minutos depois com os meus giletes e lâminas, depois pegar no meu estilete em cima da escrivaninha junto aos meus apontadores eu aperto os lábios, magoada por ver que ela tem medo que eu faça aquilo novamente.

— Mãe, você não precisa fazer isso... — Eu tento protestar com a voz baixa. Ela olha para mim parada próximo a porta, fixa o olhar direitamente no meu braço esquerdo antes de se encostar na parede e por os olhos nos meus.

— Igith, estou apenas preocupada filha. Não precisa se castigar assim. Não merece.

— Mas não farei outra vez, prometo. Isso foi... — Eu suspiro, desvio o olhar me sentindo muito pequena. — Eu não sei...

Minha mãe aproxima de mim e deixa um beijinho na minha testa. — Exatamente, não quero que recorra a essa opção.

— E as minhas coisas?

— Depois eu devolvo.

Eu faço uma careta.

— Está parecendo o papai falando desse jeito. — Mamãe me dá um sorrisinho que me tranquiliza de uma forma inimaginável. Ela não estar brigando comigo me ajuda muito.

— Tome um banho. Descanse. Mais tarde eu trago o seu almoço.

E depois que eu faço que sim, o quarto volta a ser o cemitério da minha alma. Me prometendo não chorar mais apesar da dor e do remorso e da tristeza que sinto, como válvula de escape eu sento rente a escrivaninha após tomar um banho e passo o resto da manhã inteira fazendo rabiscos no meu bloco de desenhos, parando apenas quando mamãe trás a minha comida, a qual não consigo degustar nem um pouco, pois acabo a vomitando toda e ficando ainda mais mal disposta do que já me encontrava a ponto do livro que escolho ler a seguir ser tão chato que acabo pegando no sono deitada na minha cama pelas próximas horas.

[...]

Toques na minha porta. São eles que me tiram do conforto que é o meu sono. Eu me viro na colchão, ajeitando a coberta antes de me espreguiçar e depois bocejar totalmente cansada.
Quando os ouço outra vez, eu digo que a porta está aberta e impulsiono meu corpo para trás de modo a que as minhas costas fiquem coladas a cabeceira.

Ao ver a pessoa entrar no cômodo com uma bandeja em mãos eu encolho um pouco os ombros e não consigo evitar fazer uma careta.

Eu aponto para o objeto de madeira fina, depois me atrevo a dizer, mesmo que apenas queira fugir dos acontecimentos passados: — Comida outra vez? Não faz nem uma hora que mamãe trouxe o almoço para mim.

— Na verdade já passam cinco horas desde que ela veio aqui. — Querin afirma me passando a bandeja. Não acredito que dormi tanto, sequer aproveitei bem o descanso. — Mas você precisava  dessas horas, a tua mãe contou que não conseguiu comer direito mais cedo. E como Ur foi deixar o jantar da Bursüm ela pediu que eu viesse dar o seu.

Eu desvio o olhar para os pratos que compõem o meu jantar e assinto levemente. Meu estômago se revira, não sei se de fome ou de rejeição antecipada a comida.

Sei que não irei conseguir aproveitar nem um pouco disso.

— Obrigada, mas ainda não sinto fome. — E volto a encará-lo de lábios comprimidos. Até o momento Querin mantinha as mãos dentro dos bolsos, mas então as tira me encarando de volta antes de olhar para a comida.

— Mas precisa se alimentar, não tem feito isso direito nos últimos dias, Igith. Não sei se os outros notam quando você mal toca na comida que serve durante as refeições. Sabe que não vai te fazer bem continuar assim.

É meio impressionante como ele nota cada detalhe meu. Até então ninguém tocou nesse assunto, sobre a minha alimentação. Ele tem razão, a comida não tem descido de jeito nenhum.  Tenho tentado me obrigar a comer, porém mais de três garfadas não consigo empurrar. E em dias como hoje, nada fica no meu estômago. Eu devolvo para fora tudo que como.

— Está preocupado que eu emagreça, é isso?

— Você tem a mania de reverter os papéis, e parece profissional nisso. Não me importo se está mais magra ou mais gorda Igith, desde que esteja realmente bem em todos aspectos. Estou apenas preocupado que adoeça.

— Você não é nutricionista.

— Não. Mas gostaria de ser levada a um?

— Não. — Falo levemente contrariada. — Não gostaria. É só que, não estou conseguindo segurar a comida. Ela simplesmente volta. Estou enjoada só de olhar, o cheiro é maravilhoso, mas me faz querer vomitar. Você sabe... Viu o que aconteceu com a sopa que fez para mim. Hoje mais cedo aconteceu o mesmo. Pois tem dias que...

Eu paro de falar, incapaz de continuar por não querer admitir o óbvio.

— A dor é tão grande que te provoca essa sensação de enjôo. — Olhando para ele me pergunto como alguém pode me entender tanto assim. Mas somente concordo, porém me mantenho calada. — Posso fazer um chá para você.

Eu argo a sombrancelha em um ímpeto de curiosidade. — Para quê?

— Isso. Seus enjôos.

— E existe chá para isso?

— Sim.

— É legal?

— Não é amargo, quase neutro. Então supunho que não irá ser desagradável para ti.

— Não gosto de chá. — Explico, tirando a bandeja de cima das minhas coxas, eu a deixo do outro lado.

— Café não é a melhor opção para a ocasião. E você precisa mesmo comer alguma coisa.

E ele não está mentindo, parte de mim sabe que estou meio fraca por falta de comida, e a outra diz que ficar sem comer não é tão mau assim.

— Tudo bem, então. Talvez não seja tão ruim.

Ele diz que em cinco minutos estará de volta e ao sair do meu quarto volta a fechar a porta, tal que o mesmo tinha deixado meio aberta quando entrou. Já eu fico observando a bandeja e a comida que nela trouxeram. Basicamente tem a habitual taça de sopa com pão fatiado de lado, um prato raso no qual está a salada fria de ovos, legumes e uma porção de batata cozida, por fim uma vasilha com torta de maçã e um suco a acompanhar.

Parece exagero, mas isso é pouco comparado a tanta comida que fica na nossa mesa, é de suma importância ter uma refeição no mínimo completa. Tendo mais condições ou menos, na nossa cultura a comida é algo que sempre buscamos ter o suficiente para uma refeição digna, ainda mais quando se tem convidados na casa.

— Pronto, o seu chá. — Quando me dou conta Querin já está de volta, estendendo a xícara de chá para mim. Fico um pouco surpresa por ele ter mesmo levado cinco minutos, sua eficiência é admirável demais.

Eu recebo o chá ainda desconfiada, inalo um pouco do aroma e tenho de admitir que é agradável. Demasiado agradável na verdade. Eu olho para ele, está me olhando com certa expectativa. Levo a borda da caneca aos lábios, mas antes de provar do conteúdo eu pergunto:

— Isso é feito de quê?

— Flor de maracujá.

— O cheiro é bom. Onde achou?

— Na cozinha, sua avó mostrou para mim as plantas medicinais dela.

— Sabe que pode sentar a vontade, não sabe? — E pela primeira vez desde que nos falamos, Querin dá um meio sorriso e segue a minha sugestão descansando na borda da cama. — E onde aprendeu a fazer?

— Com o meu pai. Eu tinha enjôos quando viajava de carro. Era uma receita da minha avó, eu não a conheci, mas aprendi muitas das receitas dela com ele.

— A vossa relação era legal? — Querin eriça sutilmente as sobrancelhas em minha direção.

— Era. E para de inventar história para não tomar o chá. Não é ruim de verdade, teste.

— Se for mentira vou jogar isso em ti.

Ele faz careta.

— Toma logo.

E então, eu provo. E não me arrependo. Querin não mentiu, o chá é quase neutro e realmente eficaz, pois assim que tomo, o garoto me diz para esperar cerca de dez minutos antes de tentar ingerir algo mais. Eu começo pelo suco, no início sinto o estômago reclamar, se revirar e me dar a sensação de que não irá funcionar, e quando realmente coloco algo mais sólido tenho certeza que sim, o chá de flor de maracujá é milagroso.

— Devia me ensinar esses truques, se eu soubesse disso antes não sofreria tanto.

— As coisas não funcionam bem assim.

— Eu sei — replico e paro de comer para o encarar. — Foi só um comentário.

— Tenho de pedir desculpas. — Ele diz repentinamente, o que me faz mastigar mais devagar ainda o encarando com dúvida, em um pedido silencioso para que ele prossiga. — Por ontem, de noite. Fui um pouco rude contigo.

Com ajuda do suco eu empurro a comida que triturava. Depois levo o guardanapo e limpo a boca, incerta se quero mesmo falar sobre isso tão cedo.

Eu me lembro da maior parte das coisas que aconteceram ontem, algumas delas muito provavelmente foram esquecidas com ajuda do álcool, porém as mais importantes eu me lembro. Como por exemplo da forma que sua repreensão me fez entender que tudo o que eu queria fazer não teria o efeito que desejava. Apenas traria mais dor do que esta que causei a quem se importa comigo, como também nunca seria uma solução para os problemas que eu sei que tenho me negado a aceitar que tenho.

— Não peça. Não precisa. Na verdade eu que deveria estar pedindo desculpas e agradecer... — e clareio a garganta antes de continuar. — Eu agradeço por ter me salvo mais uma vez.

— Ainda assim me perdoe. É muito raro que eu fique bravo, mas ontem eu fiquei só de imaginar você ter pensado em desistir. Há muitos outros caminhos para seguir e aquele é o pior de todos, Igith.

Eu desvio o olhar para a comida agora pela metade. Suspiro e concordo, sentindo as primeiras lágrimas se formarem nos meus olhos depois de tantas horas.

— Eu sei... — digo. — Eu sei, mas vamos parar de falar disso por hoje, por favor?

— Tudo bem. — Ele concorda, e não diz mais nada pois seu celular começa a vibrar e ele pede licença para atender a ligação.

Eu fico sozinha outra vez, pensando por quanto tempo irei me negar a falar sobre o acontecimento da noite passada e não chego a nenhuma conclusão senão a de que já estou satisfeita com o pouco que comi.

Estou olhando para os pratos parcialmente cheios até ao momento, e somente quando escuto um som vindo do corredor ergo a cabeça acreditando ser Querin outra vez, no entanto fico um pouco surpresa e apreensiva quando vejo meu pai na soleira da porta dando uns toques suaves nela como se pedisse permissão para entrar.

— Boa noite, Igith — ele é o primeiro a falar, se aproximando da minha cama. — Vejo que conseguiu comer esta noite. Como se sente?

— Legal — afirmo deixando a bandeja sobre a mesinha de cabeceira. — E, ah, foi uma receita do Querin. Um chá. Presumo que uma solução para os meus problemas.

— Você ainda os tem. — Isso não foi uma pergunta, pois papai sabe da minha dificuldade em comer quando estou incomodada demais.

Eu faço que sim.

Ficamos em um silêncio muito desconfortável por alguns minutos, até papai decidir se sentar em uma distância considerável de mim e começar a falar sobre tudo o que eu não quero ouvir.

— Sobre ontem...

Eu já devia imaginar. Eles vão mesmo me obrigar a ter essa conversa.

— Pai, por favor, não. Eu não estou pronta e nem disposta para falar sobre isso.

— Ninguém está, Igith. Nenhum de nós se preparou para enfrentar isso, disposição cada um arrume do seu jeito. Mas deixar de lado algo tão sério quanto o que aconteceu no dia anterior, vai ser tão negligente ou mais do que fomos em não perceber os sinais antes.

— Sobre o que você está falando?

Papai nem vacila, ele aponta direito para os adesivos no meu pulso.

— Sobre isso. Sobre a tentativa de suicídio. Sobre você não estar nada bem. Sobre a sua depressão. — As palavras dele saem com tanto remorso que me doem, porque eu entendo agora, papai está tomando a culpa do que aconteceu ontem para ele mesmo. — Isso é grave Igith, muito grave. E é horrível saber que chegou a esse ponto debaixo dos nosso olhos.

— Mas eu estou bem — e me amaldiçoo por minha voz sair tão falha, tão fraca. — Eu vou ficar bem. Bebi demais ontem e acabei fazendo aquilo, eu estava confusa.

Senhor Onur faz que não, nem um pouco convencido.

— Não torne isso mais difícil tentando mentir para você, filha. Eu não quero que as minhas meninas tenham como marca registrada a pele marcada por lâminas. Não quero que desistam de viver tão cedo assim. — Ele diz ressentido. — E por esse motivo decidi marcar uma consulta com o doutor Fikret.

Eu fico muito chateada por ouvir essas palavras. Como ele pôde tomar essa decisão por mim?

— O psicólogo?

— Psiquiatra.

— Não, pai. Não quero consultar um psicólogo. Eu estava apenas equivocada ontem, me entenda. Não estou doente.

— É um psiquiatra, Igith. E vai nos ajudar a entender melhor como lidar com isso que está acontecendo.

— Eu já disse que não! Não preciso falar com um médico para loucos como se eu estivesse doente a esse ponto.

— Igith, não é bem assim...

Eu nem tento lhe ouvir mais, entro de uma vez por todas dentro das cobertas determinada a não aceitar essa ideia súbita dele.

— Não importa. Minha resposta é não e agradeceria se você a respeitasse. — Digo por fim. — E por favor feche a porta e desligue a luz quando sair.


Perdi a linha de consciência quando o medo atingiu patamares inesperados
Me fez crer estar entrando em colapso
Esquecer o que é certo e o que é errado
Ser incapaz de discernir a fantasia da realidade, tudo enquanto apenas buscava saber quem era eu de verdade

Dinazarda

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