022: Sinais inconfundíveis

Este capítulo pode conter gatilhos psicológicos como auto mutilação e crises de ansiedade.

A agitação que vi pela casa quando acordei me deixou um pouco impressionada. Não esperava que todos estivessem tão ansiosos para a formatura de Ur tanto quanto o mesmo está.

Meu irmão não tinha certeza se deveria mesmo usar aquele terno preto ou se deveria trocar por um azul, desejava usar a gravata perfeita e por mais que lhe dissessem que estava tudo bem, ele não parava quieto. Era nervosismo demais para uma pessoa só, então acredito que os demais aborveram um pouco dele para si.

Todos estão dispostos a acompanhá-lo. Menos eu. Decidi que ficaria com a nossa irmã ao menos pela manhã. Não que eu estivesse fazendo uma escolha entre os dois, estava somente sendo mais racional e justa em dividir o tempo. Unindo o útil ao agradável. Manhã em casa, noite fora dela. Prometi ao meu irmão que irei a festa de formatura dele mais tarde e não a entrega de diplomas em si. Ele ficou meio desapontado, entretanto concordou ao ver que eu não mudaria de ideia de jeito nenhum.

Bursinha faz parecer que deseja ir junto, mas como ela mesma disse, este passo ainda não está pronta para dar. Ao menos não agora. Penso que o motivo esteja relacionado ao ambiente, que é semelhante ao que a fez ficar nesse estado pelo que me contou ontem no parque. Ninguém a  pressionou, pois sabemos que ontem foi demais, um grande primeiro passo que admiramos muito.

Não me surpreendi tanto com a roupa de cada um deles uma vez que tenho conhecimento de seu bom gosto na hora vestir. Meus pais em particular decidiram usar tecidos de cores que entrassem em harmonia, como se tivessem comprado as vestimentas na mesma loja. Papai estava trajado em um terno preto, o blazer nesse tom escondia a camisa social branca por baixo. Já a minha mãe, com seus típicos vestidos de manga comprida — tais que hoje eram feitas em renda branca —, tão bem lhe moldavam as curvas maduras e conservavam sua feminidade ao passo que mantinha sua decência na peça branca de seda decorada com delicadas flores pretas minúsculas espalhadas pelo tecido que lhe batia nos tornozelos.

Minha avó não ficou muito para trás, apesar de idosa ela tinha belos vestidos longos a combinar com seus véus. Hoje ela usava um de tom violeta bem clarinho, seus fios curtos e platinados estavam escondidos por um véu de cor semelhante, porém mais escurinho. Calçava saldalias, ela adorava. E meio que contaminou minha mãe com esse hábito. Mamãe raramente usava saltos.

Muito contrariamente a Yudis, ela amava. E inclusive, está usando um hoje. Pude verificar quando passou por aqui para avisar que seria a primeira a chegar para confirmar se tudo estava perfeitamente organizado. Então, eles a encontrariam quando chegassem.

— Tem certeza que quer ficar, Igith? — Mamãe pergunta pela milésima vez. E pela milésima vez eu respondo:

— Sim, anne*. A gente fica bem. Quero mesmo é saber onde Ur irá estudar no ano que vem. E mais, vou poder ficar com a Bursüm por enquanto.

— Eu não quero te prender aqui, mana. Faz dois anos que aprendi a ficar sozinha em casa. Então se quiser, pode ir tranquila.

Mas eu não estou querendo ir mesmo. Estou usando essas horas para ver se crio coragem de sair de casa mais tarde. Um estranho pressentimento cresce dentro de mim embora eu tente afastá-lo com toda força que hoje não tenho.

— Não é nenhum incômodo ficar contigo, Bursinha. Vamos ter um tempinho só nosso quando eles se forem, depois terei o meu tempinho com o Ur. Enquanto isso, Querin irá registrar tudo o que acontecer e veremos no dia seguinte.

Ela sorri para mim e parece mais aliviada por eu não ter mudado de ideia.

— Nesse caso se cuidem mocinhas. — Mamãe fala conferindo algo dentro da bolsa e antes de seguir adiante beija a bochecha de Bursinha e a minha também. — Falando no Querin, ele virá te pegar mais tarde. Se apronte até lá.

— Tudo bem. — E deslizo minhas mãos para os bolsos traseiros do meu pijama. — Boa sorte aí, maninho. — Meu irmão vinha descendo as escadas, quando chega ao nosso encontro pega meu rosto entre as mãos e deixa um beijinho rápido na minha testa.

— Obrigada maninha — Diz para mim. Segue até a nossa pequenina e a abraça igualmente. — Fique bem boneca.

— Adeus, mano. — Bursüm se despede, e depois se volta para mim, a cabeça pendida para o lado. — Ainda sinto sono, vou voltar a dormir. Faremos coisas de irmãs depois.

— Está certo, me procura quando acordar.

Minha irmã está indo embora, me deixando sozinha praticamente até Querin descer as escadas trajado em um terno cinza muito, muito bonito. O corte que ele fez há dias atrás está combinando muito com o look, e ele se aproximando de mim conforme ajeita as abotoaduras me faz reprimir um sorrir porque ele está parecendo o garoto mais lindo que eu já vi.

— Bom dia, Igith.

— Bom dia, Querin. Você parece um pouco atrasado.

Ele ri um pouco ajustando o paletó sobre a camisa social a qual tem um botão a menos fechado, dessa forma uma gravata não está cabendo ali.

— Dormi mais que o necessário — então, ele para de se aprumar de um instante para o outro e me encara seriamente. — E você está bem?

— Legal — eu falo, e depois aponto para a porta aberta com a visão do carro de papai ali na rua. — Melhor ir ao encontro deles, ou Ur vem te dar um soco pela demora.

Eu sorrio para ele contendo uma risada. Querin faz que sim e se despede de mim antes de sair e me deixar sozinha em meio ao silêncio entorpecente da casa vazia.

Eu suspiro, apertando as mãos em punho conforme me movo até a cozinha clareada pela luz vinda da janela aberta. Me sento à mesa com os joelhos afastados um do outro, eles estão começando a tremer levemente assim como minhas mãos parecem ser atingidas por um frio cortante. Sinto o mesmo em meu estômago, ele parece se contrair quando olho para a cesta de frutas sobre a mesa e tenho certeza que não estou sentindo fome apesar da maçã vermelha parecer tão convidativa.

Engulo em seco, os olhos ficam vidrados na faca ali em cima do balcão da pia. Não demoro a desviar o olhar e encarar minhas mãos fechadas em punho a medida que sinto o peito começar a subir e descer em uma frequência desregulada. O ar começa a parecer denso dentro deste cômodo e falo para mim mesma que tenho de me acalmar porque tudo vai ficar bem.

Nossa, de novo não. Eu não quero isso. Não vai acontecer.

Tudo vai ficar bem. — Digo e volto a repetir o mantra mentalmente, me convencendo de que estou sob controle deste momento. Que não irei surtar como aconteceu de madrugada. Que serei capaz de repelir estas sensações agonizantes.

Olho novamente para a faca, mordendo forte, muito forte o interior do meu lábio inferior e começo a me sentir culpada pelo que escrevi na agenda ontem. Como fui idiota. Eu tento tragar o ar poucos, entretanto não tenho tanto êxito pois um soluço interrompe a sequência. Levo as mãos a boca, cobrindo-a.

Por que eu sou assim? Por que sempre tem um motivo para acabar aqui? Esse ciclo maldito, qualdo ele irá terminar?

Eu fecho os olhos com força ao passo que sinto começar a perder o controle da minhas próprias emoções. Estar assim me irrita, sempre me irritou. Porque me deixa fraca e desnorteada. Pareço nunca ser capaz de fazer um esforço a manter tudo certo e esses pensamentos apenas ampliam o tamanho do aperto torturante no meu peito.

Me levanto trêmula da mesa e no frigorífico pego numa garrafa de água. Enquanto bebo do líquido insípido procuro me acalmar inutilmente. Outra vez inspiro e expriro. E quando torno a olhar para a faca, minha palpitação parece aumentar.

Eu não preciso disso, não quero isso...

Ando até a mesa e pego na maçã, depois volto ao balcão e pego no utensílio de cozinha tremendo em minhas mãos consoante o faço deslizar pela fruta removendo devagar a casca da mesma. Definitivamente não sinto fome, mas talvez, quem sabe comê-la irá me distrair da sensação da faca na minha pele. De um sangue que nunca vi escorrendo de mim conforme me afasta da realidade. Desse sentimento. Dessa dor...

Jamais ousei me ferir, apesar de que, uma vez eu estivesse a ponto de fazê-lo. Sempre permaneço do outro lado da cerca, onde somente meus pensamentos me faziam sentir objetos cortantes deslizando por qualquer parte do meu corpo, da sensação que teria após esse ato. Mas sempre fui covarde demais, até quando pensava que merecia isso por todas as vezes que não aguentava levar minha dor comigo.

Eu fui covarde até ontem. Porque hoje, agora, após ultrapassar esse limite e nada parecer fazer diferença a não ser a raiva que cresce por eu ter feito isso, me sinto ficar distante desta realidade quando faço mais uma vez, e outra, como se não fosse a maior besteira que cometi comigo e com eles.

Minhas tentativas de me acalmar parecem estar sumindo ao passo que meus olhos se arregalam sob a poça de sangue que se forma no chão translúcido da cozinha. E quando o choque de realidade me atinge minhas pernas ficam bambas e eu deslizo pela bancada até ao azujelo. Minhas mãos estão tremendo, meu corpo também. Olhando para faca que seguro e pela maçã que relou das minhas mãos em algum momento, sinto o pânico me atingir a ponto de provocar novamente a sensação de que estou prestes a morrer.

Eu não quero morrer. Não fiz isso por querer morrer. Eu apenas... Eu preciso de ar e não consigo trazê-lo de volta aos meus pulmões. Por que diabos não consigo me livrar dessa sensação? Lágrimas grossas se formam em meus olhos quando percebo que estou envolvendo forte o cabo da faca, prestes a fazer de novo.

A jogo longe de mim, e com as mãos agora livres eu as levo aos meus cabelos e tento de alguma forma aliviar a pressão no meu peito. Choro silenciosamente, pois nenhum som audível consigo mais emitir. Não sei quanto tempo leva, mas em algum momento eu volto a me encontrar naquela mesma situação, onde a minha mente fica em branco e meu corpo amolece. Tão leve como se nada tivesse acontecido nos últimos dez minutos.

[...]

Ainda estou deitada no chão da cozinha me sentindo meramente entorpecida. Olhando para o nada fico lembrando do que acaba de acontecer. É assim que eu queria ficar? Era isso que eu esperava? Um momento miserável no qual nada aparece ser tão certo ou tão errado?

Eu respiro fundo e volto minha atenção para o meu braço esquerdo, três cortes horizontais estão localizados próximos do pulso. Disformes. Dois mais profundos do que o outro. Eles estão ardendo, mas não tanto. Do meu lado gostas de sangue mancharam o assoalho. Meu pijama também foi marcado pela minha atitude impulsiva. E faço uma careta ao imaginar o carmesim escorrendo pelo ralo quando eu for o lavar.

Então, quando olho para a porta e vislumbro daqui parte da entrada do quarto da minha irmã, é como se eu enfim entendesse realmente qual é a gravidade da situação. E nos minutos seguites tudo o que me esforço para fazer é limpar qualquer rasto do que aconteceu aqui, ansiando que não fiquem marcas para os fazer saber de que cheguei a esse ponto.

Só necessito de duas horas para tomar um banho longo o suficiente, colocar bandAids nos cortes, lavar as minhas roupas e cozinhar algo simples para o nosso jantar caso alguém vá querer comer depois da festa de formatura. Por fim, muito exausta em todos os sentidos, eu me jogo no sofá com uma bacia de pipocas e um cobertor para me esconder do frio que se estende a cada hora que passa.

Ligo a tevê apenas para que me faça companhia enquanto tento não sentir essa mistura de sentimentos que se espalha dentro de mim, ao passo que direciono minha concentração nas pontadas que sinto em meu pulso devido aos cortes. E fico assim, perante ao silêncio da casa colocando pipocas sem sabor dentro da boca olhando para nada em especial até mirar, em algum momento, a fotografia linda da nossa família pendurada na parede ao lado da tv plana fixa alí mesmo.

Me permiti dar um sorriso de canto ao lembrar de ontem, e dos meses passados. Quem diria que as coisas na família Kefrām mudariam da água para o vinho? Passamos por tanto nesses últimos quatro meses que parece pegadinha. Pois é isso que eu acharia se alguém me dissesse há tempos atrás que estaríamos assim, de bem um com os outros.

De fato muitas coisas se tornaram diferentes. Eles melhoraram. Eu melhorei em partes e regredi noutras. Sei disso pelo que fiz há pouco menos de quatro horas e ainda decido se me arrependo ou não.

— Igith? — A voz da minha irmã rompe o silêncio no qual eu estava e se torna mais audível que o som do programa que passa na tela. Eu encaro Bursinha ainda de pijama se direcionar até mim. Deixo a tigela de pipoca no chão próximo a mesa de centro e me afasto mais para o encosto do sofá. Ergo o lençol para que ela se acomode junto a mim e quando faço isso sinto uma fisgada no interior do ante-braço a ponto de fazer uma careta pela dor, tal que não demoro a disfarçar pela minha irmã.

— Está tudo bem, mana? — Sinto que Bursüm é muito observadora, pois tenho de forçar um sorriso e dizer que sim antes que ela, nem tão pouco convencida, se deite em frente de mim, as costas colodas no meu peito.

Eu passo a mão pela sua cintura e inspiro o aroma floral de seus cabelos, sentindo a culpa me acometer a cada segundo.

Nunca foi isso que eu quis para nós. Nem para eles nem para mim.

Bursinha coloca a sua mão sobre a minha e entrelaça nossos dedos com delicadeza e tenho de ajeitar o meu braço coberto pela manga do camisolão a fim de evitar que ela faça pressão nos machucados.

— Como você está, pequena?

— Estou bem. Feliz que tenha ficado comigo. Isso significa muito para mim, Igith. Gosto de saber que tenho você como irmã, é minha inspiração para não desistir de continuar.

Um nó se forma em minha garganta, e quando percebo, meu corpo dá um leve pulo em consequência do soluço que acabo de sufocar ao passo que lágrimas se formam em meus olhos.

Eu respiro fundo, tento manter a voz firme.

— Por que está me falando isso, Bursinha?

— Acredito que você merece saber. As pessoas não deviam temer falar sobre o que sentem de verdade. Mas o medo da rejeição e insignificância que os outros dão ao que pensamentos e sentimos nos primem de ser quem somos. — Bursüm se volta para mim com um pouco de dificuldade pela falta de espaço entre nós. Ela me olha bem fixamente nos olhos antes de prosseguir. — Eu aprendi isso com o tempo e mesmo assim ainda tenho meus medos. Só que não quero que eles me impeçam de dizer que amo cada um de vocês. Porque é isso que importa para mim. Vocês. Eu amo vocês.

E então, vendo minhas lágrimas fazerem uma trilha pela têmpora, ela as limpa e enterra o rosto no meu peito.

— Você chora demais, Igith. Acho que é a sua forma de demonstrar o que sente sem se expressar em palavras.

Eu faço que sim a abraçando com um pouco mais de intensidade. Depois, digo:

— Eu também amo vocês, com todo o meu coração.

Pegamos no sono durante duas horas e poucos minutos, quando acordamos constatei que faltava pouco menos de uma hora e meia para que Querin viesse me pegar. Portanto usamos dos primeiros trinta minutos para almoçar juntas, assistir o programa favorito da minha irmã na tevê e eu ouvi-a tocar flauta fluentemente mais uma vez.

Eram dezesseis quando deixei Bursüm ensaiando a flauta na sala e subi para me preparar. Tomei outro banho, desta vez mais rápido. E no guarda-roupa eu me perguntava se hoje, por vontade própria, não poderia usar um vestido. Tudo bem, eu tenho poucos deles. Dois na verdade. Porém um deles, o que vovó Yame comprou para mim há dois anos, deixa os meus seios salientes demais. Então só me resta o vestido dos meus quinze anos que nunca vesti e que graças a Deus tem as mangas cumpridas.

Ele é de um verde água clarinho, mais justo no busto e feito de babados na parte de baixo. Sua borda rendada a branco bate abaixo dos meus joelhos e na cintura vem presa uma fita da mesma cor da roupa para amarrar por trás.
Respiro fundo o tirando do interior do armário e ao vestir-me dele me esforço para afastar a sensação estranha que é estar usando um vestido pela segunda vez nesse ano.

Geralmente eu uso tênis, hoje optei por sandálias brancas delicadas. O cabelo ainda está trançado na lateral, um pouco bagunçado devido a forma que os puxei mais cedo, portanto tenho de dar uma ajeitada para manter a boa aparência e por fim, um idratante labial para dar cor aos lábios um pouco ressecados.

Quando me olho no espelho do banheiro eu me sinto estranha, muito feminina. Fazia tempo que não me arrumava assim. E sim, me vejo diferente, e, pareço com a garota que um dia imaginei ser quando criança. Com um estilo só meu. Tal que não faço ideia por quanto tempo vou suportar manter.

Volto ao quarto para pegar minha carteira em cima da cama. Pretendo descer logo e esperar por ele lá em baixo, porém minha atenção fica fixada na minha agenda sobre a escrivaninha. Sorrio de canto com a lembrança de ontem, e logo o sorriso vai morrendo pelas palavras que coloquei ali no caderno.

Eu juro que devia mudar a forma de como as coisas se saíram ontem. Estava sonolenta, talvez isso me fez escrever coisas idiotas. Outras nem tanto. Me aproximo da mesa e abro a agenda direito na página de ontem e sem remorsos rasgo a folha do lugar e sob minhas mãos me pergunto por que quando estamos meio fora de nós somos tão sinceros do que quando estamos coinscientes.

Nem tenho tempo de ponderar uma resposta aceitável, alguém bate a minha porta no minuto seguinte e o meu primeiro pensamento é o de guardar a folha de papel dentro da minha bolsa para a jogar fora mais tarde.
Ando rapidamente até a porta, mas antes de abri-la confirmo se os bandAids não estão tão visíveis sob a peça do vestido e penso que, se não deixar tão a vista o meu braço, posso passar despercebida hoje.

Mais um toque suave na madeira me faz avançar e girar a maçaneta, abrindo espaço para vislumbrar o semblante tranquilo de Querin parado em minha frente. Cumprimo os lábios, deixando a marca de um leve sorriso neles. No primeiro instante o garoto olha fixamente nos meus olhos como se pudesse me ler nesses curtos milésimos de segundos, depois, ele me olha de cima a baixo antes de tornar a me encarar e igualmente abrir um sútil sorriso de canto para mim.

— Oi — diz ele.

— Oi — eu devolvo.

— Você está incrível.

— Nesse vestido?

— Não, como sempre.

Então sorrio, digo obrigada e juntos descemos as escadas a caminho da sala onde Bursüm está ajoelhada no sofá de frente para o encosto, muito concentrada em observar as fotos na câmera que suponho ser de Querin.

— Fiz algumas fotos durante o dia, assim Bursinha pode aproveitar essas horas vendo os momentos mais marcantes do dia.

Eu olho para ela sorrindo para as imagens como se fosse a coisa mais linda do mundo. Depois encaro o garoto do meu lado e se torna impossível não sorrir para ele.

— Você é demais.

Ele não contesta, mas também não diz nada quanto a isso. Apenas me devolve o sorriso tirando as chaves do bolso. Notei que ele fica meio sem jeito perante elogios, o que particularmente acho bem engraçadinho.

— Está pronta? — Eu digo que sim.

— Bursüm... — Minha irmã ergue o olhar até encontrar o meu. Ela passa uma mecha de cabelo para trás da orelha e assente como se entendesse o que irei dizer. — A gente está indo, ok? Você vai ficar bem?

— Desde que vocês voltem, sim. — Responde ela. Eu me aproximo e deixo um beijo na sua bochecha, e por incrível que parece desta vez a mais nova não limpa o local como faz habitualmente.

— Quer que eu traga alguma coisa na volta?

— Agradeceria se trouxesse os meus doces favoritos.

— Certo, na volta eu os trago para ti.

[...]

Uma vez dentro do carro eu aperto o cinto e Querin da a partida a caminho da escola. Nos primeiros minutos não falamos nada um com o outro, enquanto ele dirige, me mantenho dispersa observando as luzes infindáveis dos edifícios de Ancara conforme tamborilo a ponta das unhas no vidro da janela meio aberta, tal que me permite sentir o cheirinho da noite, uma mistura de céu anunciando a chuva e aroma de flores e frituras. Tudo muito característico da cidade.

— Ei, o que fez de interessante hoje?

Eu me ajeito no assento e o encaro um pouco confusa.

— Cozinhei para vocês?

Ele ergue levemente a sobrancelha, porém não tira os olhos da estrada.

— Cozinhou?

— A-hã. — Afirmo. — Algo simples, somente se alguém tiver fome quando voltar da cidade.

— Bom, vai ser interessante provar da sua comida. É raro te ver cozinhando.

— Assim como é raro me ver de vestido e de sandálias e disposta a passar a noite fora de casa. — Ele assente. — Sim, acho que hoje é um dia especial.

— Por quê?

— Não sei. Só acho.

Simplesmente encosto a cabeça no assento e tento relaxar quando voltamos a estar em silêncio. Respiro fundo olhando para o horizonte onde o sol se despede deixando um choque de cores quentes como marcas do entardecer ao passo que o crepúsculo começa a se fazer sentir aos poucos. É tudo bonito e muito natural, é especial observar as estrelas surgirem uma por uma e a lua começar a dar as caras a cada segundo.

É reconfortante e me permitiria ficar tranquila se Querin não tivesse feito uma pergunta específica para mim no meio da estrada.

— Você quer falar sobre isso, Igith? — Eu torno a encará-lo, agora em dúvida. Ele não demora a perceber que não faço a mínima ideia do que está falando, portanto me olha por segundos antes de baixar o olhar até os meus braços. O esquerdo em especial.

Droga.

De imediato tento tirar a visão dele da região de maneira que o interior do meu braço fica colado a barriga.
Eu não respondo nem um a, começo a me sentir tensa e desvio o olhar para outra direção.

Mas é claro que não quero falar sobre isso.

Com a ausência da minha resposta eu o ouço continuar, calmo e comedido:

— Não estou te obrigando a dizer nada, está certo? Faça isso quando se sentir a vontade. Mas eu espero que saiba que fazer isso consigo mesma não vai te levar a nada. — Ele diz e após um silêncio desconfortável, clareia a garganta e diz mais baixo. — Isso não me levou a nada.

Um arrepio percorrer minha espinha. Desagradável. Olho para ele de imediato, mas Querin está com o olhar fixado na estrada outra vez. Quando conduz difícilmente tira os olhos de lá e eu entendo bem o porquê disso.

Quero perguntar se ele está falando sério mesmo. Mas acho muito estúpida a minha questão. Claro que ele não brincaria com uma coisa dessas. Então, como e por que ele chegou a ponto de fazer algo do gênero?

Eu não falo nada. Ele é quem muda de assunto e rompe com a tensão que começa a se formar dentro do carro.

— Você fez falta hoje. Tenho certeza que gostaria de ter presenciado alguns momentos hilários.

— Ah, é? — Decido seguir o fluxo, não estou disposta a tornar a noite mais ruim que as primeiras horas do dia. — O que foi que aconteceu? Qual dos momentos foi mais marcante?

— Na minha humilde opinião foi a briga de duas garotas por terem usado vestidos e penteados iguais. Uma acusava a outra de ter imitado e a partir daí foi só ladeira a baixo. Ambas destruíam praticamente a mesa onde estavam os diplomas e as flores que dariam aos formados. Foi um desastre total que gerou o atraso do evento.

Eu solto uma risada abafada involuntariamente.

— Sério que teve essa parte? — Querin faz que sim tranquilo. — E quem ganhou a bolsa, afinal?

— Teve um empate esse ano. Ur e uma garota de outra turma. Para ser justo ambos receberam as bolsas para a mesma universidade.

— Nossa, ele merece muito. Meu irmão quase que não pegava no sono por essa bolsa. — Eu digo, muito feliz por ele. — Estão todos aqui na escola?

Ele faz que sim estacionando o carro numa vaga livre do estacionamento do estabelecimento.

— Por vezes me pergunto como não te conheci antes.

— A gente se conheceu no tempo certo Igith, eu creio nisso.

Então eu aceito que sim. Talvez a gente tenha mesmo se conhecido no tempo certo.

Depois de descer do carro ele vem e abre a minha porta. Aceito pegar na sua mão quando Querin me oferece ajuda para sair do veículo também antes que ele o feche. Nós ficamos ao lado um do outro enquanto caminhamos por entre as pessoas no lado de fora na direção das duas portas abertas do salão de eventos da escola.

No início eu me encontro um pouco nervosa, principalmente quando dou de cara com Aznet próximo a entrada do edifício me fitando com desdém. Mas os dedos de Querin apertando com delicadeza nos meus me mantém de pé a ponto de conseguir passar por ela de cabeça erguida, ainda que tenha de lidar com os tantos olhares curiosos direcionados a nós.

Os quais eu só consigo ignorar de verdade quando atravessamos a porta e por fim nos encontrarmos no interior da estrutura imponente de dois altos andares.

O salão de baile está divinamente organizado por assim dizer. Para cores principais eles escolheram preto e dourado, que particularmente eu considero muito chique de tão bem que combinou nos tecidos que cobrem as cadeiras assim como as toalhas de cetim das mesas nos mesmos tons.

A entrada é adornada por um arco de balões no tom padrão e alguns vassos com flores iluminadas na intensidade certa pela mesma luz leviana que encobre o espaço de modo que não esteja nem tão forte nem tão baixa. Portanto tudo o que me deixa incomodada são os ar-condicionados ligados apesar da temperatura de hoje estar muito perfeita para se usar o aparelho.  

Garçons perambulam de lá para cá com bandejas carregadas de bebidas variadas e aperitivos dos mais chiques que eu conheço. Se não estou em erro, tenho máxima certeza que teve dedo da Yidis nisso. Pois ela ama um bom bufê, e olhando para o lado esquerdo do salão é possível notar a diversidade de comida naquela larga mesa que parece ir de uma ponta a outra da parede.

As pessoas riem e conversavam de forma moderada nas diferentes partes do recanto. Poucas delas estão paradas ou andando pelo local, a maioria está sentada em mesas redondas que eu suponho terem sido organizadas de acordo com os familiares e amigos dos recém formados. Uma música suave se faz sentir, de modo que as vozes das pessoas são mais audíveis do que o próprio som.

Conforme caminhamos eu perco a conta de quantas mesas passamos e Querin não só acena para as pessoas como também acenam para ele. De alguma forma ele era conhecido pela escola e eu sou a única desinformada para ter o conhecido somente esse ano, há pouco menos de quatro meses para ser mais exata.
Quando chegamos a nossa mesa, o garoto puxa uma cadeira para mim e depois se senta ao meu lado antes que cumprimentemos a todos educamente.

— Se demorassem mais um pouco perdiam a melhor parte meninos. — Vovó Yame fala em algum momento.

Cada um deles está com suas bebidas ao lado de um prato com aperitivos. Enquanto papai, mamãe e tia Banu tomam vinho, Yudis está tomando champanhe e vovó Yame suco.

— Por parte foi minha culpa, demorei muito a me preparar.

— E como ficou a tua irmã?

— Aparentemente bem. Deixamos ela apreciando as fotos da câmera do Querin. — Eu pego uma taça de champanhe também com um garçom que passava perto. É adocicado, e presumo ter baixo teor de álcool. — Então, estava falando da melhor parte, qual é ela exatamente?

Nesse instante um silêncio repentino toma conta de todo o salão. As luzes são reduzidas e a música é completamente desligada. Todos holofotes focam o local que suponho ser reservado para a valsa dos estudantes.

— Essa é a melhor parte. — Tia Banu afirma, e então todos se concentram no palco erguido diante de nós.

Uma batida de suspense ecoa pelas parades que nos cercam antes de ser sucedida por outra mais calma que anuncia a entrada dos alunos recém formados. Essa eu reconheço, Son Defa, de Emre Aydin. Os homens estão trajados em ternos pretos, porém usam apenas a camisa social branca sem o paletó. Já as damas, longos vestidos vermelho vinho, todas elas com uma tiara magnifica presa em seus diversos penteados.

As garotas começam por fazer uma vénia, os garotos segurando delicadamente na mão do seu par simplesmente se curvam para frente de maneira sútil. Quando a música de fato começa eles se posicionam e dançam em sincronia, uma valsa muito bem organizada. Todos parecem gostar, pois observam atentamente cada passo da dança. Ur é tão ótimo no que faz. Nunca imaginei que ele soubesse dançar assim, mas hoje vejo que existem diversas coisas que fomos perdendo um do outro com o passar dos anos.

As voltas que as garotas dão, o momento que são carregadas pela cintura com lentidão, os movimentos simples e belos. É tudo magnífico. Isso me faz questionar se eu seria capaz de fazer tudo aquilo no dia da minha formatura, mas ainda não tenho uma resposta para essa pergunta. E receio querer ter.

Quando a valsa termina eles voltam a se curvar, e quando acho que estão prestes a se retirar uma nova música começa a explodir no local, mais intensa, mais alta, mais vibrante. E pondero que, como planejado o nosso centro de atenção rapidamente se posiciona e cada um dança ao som da música. A coreografia deles tão bem frenética e cativante faz com que as pessoas aplaudam ainda mais. Dá para ver que todos ali se divertem a medida que se soltam e deslizam pelo palco. Com certeza se sentem orgulhosos pelo esforço bem sucedido. Acredito que não seria muito diferente comigo.

Com o fim da música é anunciado o fim desse momento maravilhoso acompanhado de mais aplausos merecidos.

Cada um deles recebeu uma faixa que não sei ao certo o que significa. Ur ficou entre um dos três melhores pares da valsa, ganhando uma faixa azul que era diferente às dos outros, que nesse caso, eram prateadas.
Depois de algumas conversas entre eles, começaram a dispersar-se indo cada um aos seus devidos lugares.

— E então família, quem será o novo universitário hein? Quem? — Ur ainda está meio ofegante quando se aproxima de nós com o paletó suspenso no ombro esquerdo.

— Não surpreende a ninguém, lindinho. A gente já esperava. — Nossa avó articula de bom ânimo recebendo um beijo na testa antes que meu irmão se sente ao lado de Yudis, a qual está mais quieta que o costume. — Tenho orgulho de você.

— Você foi fantástico, querido.

— Tenho de concordar com a sua mãe, a dança foi demais.

— Mãe, pai, obrigado.

— Merece os parabéns, Ur. Esperamos pelos mesmos méritos ano que vem e no outro. — Tia Banu afirma sorrindo para ele.

— Obrigado a todos vocês. Sério, vocês são minha motivação a cada dia que passa.

Eu tomo mais um gole de champanhe, chegando a conclusão de que isso é mais bom do que imaginava.

— Ah, lá vem o discurso meloso... — E faço uma careta em provocação. Ur solta uma risada curta e ajeita as mangas da camisa.

— Isso é inveja, sabia?

— Longe disso. E brincadeiras a parte, você é bom no que faz. Parabéns de verdade. — E ele todo convencido pisca para mim com um sorriso nós lábios.

A gente conversa um pouco mais a medida que vamos bebendo e desfrutando da comida deliciosa do bufê. Yudis é a única mais calada até ao momento, e embora eu não a tenha a cutucado, sei que algo de errado aconteceu enquanto eu estava em casa. E isso só iria descobrir depois que os nossos pais se fossem.

O que na real não demorou a acontecer uma vez que vovó Yame pediu que a levassem de volta à casa, pois era a hora de dar comida a Bursüm e pô-la para dormir. Papai e mamãe não contestaram, já eram oito da noite, quase nove. E tia Banu também não questinou em querer segui-los uma vez que somente a gente ficaria. Eles se ajeitaram e antes de irem embora pediram apenas uma e única coisa:

— Voltem antes da meia-noite por favor.

  E quando você achar que sabe sobre como me  sinto, vai estar errado se não tiver ao menos passado pelo mesmo.

~autor desconhecido.


Att hoje?! Sim, um extra enorme para vocês enquanto o domingo não chega 🤭

Então, esse capítulo é bem tenso no início e como podem ver aconteceu algo que a Igith lutava internamente para não fazer.

Auto mutilação é algo grave e pode se tornar um vício caso não se dê um jeito de parar a tempo. E gente, para quem está passando por isso mais uma vez aconselho a procurar por ajuda de um profissional o quanto antes, não deixe para depois. Fale com pessoas que entendam você antes se isso te fizer sentir bem, mas o meu conselho mesmo é o anterior.

Esta é uma simples obra de ficção que retrata a realidade de muitas pessoas, não sou uma especialista nem nada, porém faço muitas pesquisas para escrever o que trago aqui embora que mesmo assim ainda deixe uma lacuna e outra sem me aperceber.

Agradeço por estar comigo até aqui e por não desistir da obra.

E uma nota final: o próximo capítulo também contém gatilho como resultado de tudo o que a nossa protagonista vem lidando. Então, por favor,  só leia se estiver realmente a vontade para fazê-lo.

No mais, beijinhos a todos!

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