021: Uma carta, uma despedida
Nós assentimos ao que vovó disse, e, com ansiedade e um pouco de vergonha encaro Querin ali na porta esperando por algo que enche meu peito daquele sentimento bom que descobri ter quando algo me faz bem.
Eu deixo que vovó Yame beije minha bochecha com esperança de que a bendita não faça nenhum comentário estranho. Mas é tudo o que ela sabe fazer na vida, ao que parece.
— Não fechem a porta, mantenham-a aberta.
Eu cubro o rosto com as mãos, envergonhada. Como ela só sabe me deixar em situações semelhantes com ele? Poxa. Uma leve risada ecoa pelo quarto. É a dela. Eu libero minha visão abrindo os espaços entre os dedos.
— Vovó! — E ela ri um pouco mais refletindo um sorrisinho ladino do garoto por quem está passando agora.
— Estou só avisando.
Eu faço careta, levo as mãos ao colo e observo ela murmurar algo para Querin. Depois olha para mim por cima do ombro e dá uma leve piscadela.
— Tudo bem senhora Yame, não se preocupe. — Algo nessa confirmação me faz sentir que estou corada. Quando vovó nos deixa a sós, eu pendo a cabeça para o lado e indago.
— Que foi que ela te disse? Vovó consegue ser muito implicante às vezes.
Ele coloca as mãos nos bolsos, se apoia ali na parede ao lado da porta aberta e dá de ombros levemente.
— Ela gosta de você. Só estava pedindo para que eu respeitasse isso.
— Eu não entendi, e prefiro que não tente me explicar. — Afirmo colocando os pés para fora da cama de modo a que eles estão tocando o chão de mármore. Querin dá uma risada muito baixa, típico dele. Eu o encaro e ele me encara de volta, de seguida pergunto gesticulando: — Vai ficar aí parado? Sabe, geralmente você faz os seus convites para vir a minha cama.
Outro sorriso que faz o meu brotar dessa vez.
Ele vem até mim, calmo e calado. Se senta do meu lado, porém não diz nada. Eu olho para o chão, balançando os pés para frente e para trás metodicamente.
— Não pensei que viria me desejar uma boa noite — ainda estou fitando o chão, minhas mãos estão de cada lado do corpo apertando as bordas da cama com suavidade. O sinto se virar um pouco para me encarar, mas não o faço de volta.
— E se não tivesse o feito, você teria vindo fazer isso? — Eu o encaro de súbito, olhos levemente cerrados. Dou de ombros. Não sei ao certo. Sequer me passou pela cabeça me despedir de alguém hoje.
— Não tenho certeza. Mas se caso pensasse no assunto, procuraria por ti.
— Onde?
— No seu quarto, talvez. Eu não sei. — Murmuro tornando a olhar para baixo, prestes a dar um tapa em mim mesma. Que desgraça eu estou falando?
— No meu quarto?
Ele não ajuda quando pede explicações.
— A-hã — afirmo. — Veja só, ele fica praticamente de frente para o meu e sequer o conheço. Já você não, conhece tão bem este que parece o seu lugar de lazer.
A forma com a qual me expresso o faz sorrir.
— É porque a pessoa que eu gosto vive trancada aqui. — Eu o encaro sorrindo para mim. Então sorrio e lhe dou um leve soquinho no ombro. — Está pedindo que te apresente o meu quarto?
Eu me encolho um pouco, torço os lábios e pondero a minha resposta. Não quero me precipitar mesmo sabendo que ele não faria nada comigo. Tê-lo no meu quarto de uns tempos para cá se ternou algo normal. Querin fez isso se tornar normal e bom. Na verdade, é sua presença que me deixa confortável independentemente de onde a gente está.
— Quer me apresentar o teu quarto? — Decido perguntar de volta. E sei que não me arrependo da minha decisão quando ele estende a mão para mim e eu coloco a minha sobre a dele, permitindo que me guie até seu quarto sem ao menos calçar os meus chinelos.
Como a maior parte da casa as paredes do cômodo são de um azul celeste que ainda aparenta ser recente. A medida que precorro o piso de madeira observo a escrivaninha prostrada diante a janela do quarto adjacente a porta, e não fico nada surpresa pela quantidade de papéis organizados nela. Na parede a direita está encostada a cama de solteiro na qual um lençol marrom foi estendido debaixo do edredom branco; já na outra, a esquerda, se encontra o seu guarda-roupa. Tal como o quarto do meu irmão o dele não tem um banheiro, visto que, quando nos mudamos eu pedira aos meus pais o que fosse uma suíte. Mas nunca imaginei que fosse ser tão útil para mim algum dia.
Eu me volto para Querin do outro lado do cômodo e quero sorrir ao perceber que ele não fechou a porta por completo. Ele se dirige a sua cama e se senta lá sem desviar os olhos dos meus.
— Este é o meu quarto por enquanto.
— Uau, você é todo formal até na organização dos papéis na escrivaninha. Me superou.
— É mais fácil achar o que quero quando tenho as coisas no lugar. — Ele se explica, e com um gesto me convida a sentar do seu lado.
Antes fico entretida em olhar para os blocos de notas ali sobre a mesa de estudos, entre eles está o da quarta-feira. Quero perguntar quando ele começou a escrever sobre mim, ou então por qual motivo se interessou por uma garota que mal lhe olhava nos olhos durante às vezes que nos encontrávamos. Mas me contenho porque sei que ele tem conhecimento da invasão que Yudis e eu fizemos, portanto decido me manter quieta e caminhar até o dito cujo, o qual agora está sentado no outro canto da cama com as pernas esticadas e as costas apoiadas na cabeceira acolchoada. Então suponho que o espaço que ele deixou é no qual eu devo ocupar ao me sentar da mesma forma que ele.
Nós ficamos calados nos minutos seguintes em meio ao silêncio confortável a que temos nos habituado a apreciar na companhia um do outro. Eu gosto disso, de ficar com ele. E sinto que ele compartilha desse mesmo pensamento. Nossa interação embora curta, muitas vezes me faz perceber o quanto fui capaz de mudar nestes meses que o conheço, como também me mostrou até que ponto essa mudança se limitou por motivos incontáveis. Então, quando me apercebo, estou suspirando com o pensamento. Olhando para o espaço entre nós eu me permito sorrir ao aperceber-me das nossas mãos unidas inconscientemente, pois até ele parece estar em outro lugar no momento.
— Ei — eu o chamo, acordando-lhe do seu transe pessoal. Ele me encara, espera que eu prossiga. — Você não faz o tipo insistente, não é?
Querin eriça um pouco as sobrancelhas sem entender ao certo aonde eu quero chegar.
— Se eu não fosse insistente acredita que ainda estaria tentando convencer Igith Kefrām sobre o quão incrível ela é? — Eu dou uma risadinha e faço que não. — Então sobre o que você está se referindo exatamente?
— Hmm... Por vezes, sabe, você parece aceitar tão fácil o que as pessoas dizem para ti, que faz parecer não ter realmente interesse no que pergunta.
— Eu não aceito “tão fácil o que as pessoas dizem”. Apenas dou o espaço que elas precisam para se sentirem a vontade para falar comigo. Sem pressão. Particularmente não gosto disso, portanto não me atrevo a fazê-lo com os outros. — ele se explica, e como um hábito involuntário leva as pontas dos dedos a tocarem o meu cabelo um tanto úmido. Digo um simples “certo” e Querin se ajeita na cabeceira. — Por qual motivo fez essa pergunta?
Dou de ombros tranquila.
— Estou tentando conhecer um pouco de você. — Ele sorri para mim e se desencosta da base da cama, me encarando ele diz:
— Quero fazer algo em ti. — Eu também me sento em um movimento muito, muito rápido ao passo que meu olhos se arregalam aos poucos.
— Como assim?
E então aponta na direção da minha cabeça, a expressão relativamente séria.
— Nos teus cabelos, Igith.
É nesse momento em que me sinto relaxar.
— Ah, o que seria?
Ele não responde a minha pergunta, faz outra.
— Se sentiria confortável se encostasse as costas no meu peito? — Demoro alguns segundos pensando, e logo assinto. — Fico de pernas cruzadas se você quiser.
— Eu agradeceria. — Querin faz o que promete, cruza as pernas e devagar me aproximo dele. A sensação é meio estranha no início, pois nunca estivemos nessa posição antes. Enquanto me acomodo ali sinto o coração meio palpitante principalmente quando ele questiona se está tudo bem em um intervalo de tempo considerável e eu confirmo que sim.
Enquanto ele mexe nos meus cabelos, eu vou me concentrando nas minhas mãos, na sensação de sentir seu coração também batendo contra o peito, no sentimento que cresce em mim somente por estar com ele. Eu gosto de um garoto. Isso está acontecendo, e, nossa, é surreal. Tão surreal que deixo um suspiro suave escapar.
— O que é? — O garoto indaga, parando um pouco o processo que está fazendo em meus cabelos. Eu fecho os olhos e comprimo os lábios devagar antes de responder:
— Você é muito atencioso comigo. Sei lá, desde que a gente está nessa posição vem me perguntando se eu estou bem e isso de fato me faz sentir bem. É como se você se preocupasse mesmo com meu bem-estar.
— E eu me preocupo.
— Por quê?
— Porque é assim que eu ajo como as pessoas de quem gosto.
Eu tento me afastar e encará-lo com a pergunta que surge de supetão. Porém delicamente ele me puxa de volta ao seu peito e diz que não posso me mover por enquanto.
— Era assim com suas outras namoradas?
— Era. — Ele responde sem reservas e meio que fico triste com isso. Sou egoísta por querer que ele somente tratasse a mim desse jeito? — Mas acima de tudo eu vejo você como amiga, Igith. Quando eu quis te conhecer já tinha ideia de ter um sentimento mais profundo por ti, e a medida que fomos nos envolvendo entendi que queria ser um amigo antes de qualquer outra coisa que viesse a acontecer. E não importaria se gostasse de mim de maneira diferente a que eu gosto de ti, sentia necessidade de ver-te bem apenas. Ainda sinto isso.
— Ainda não entendo como teve coragem de insistir tanto em alguém como eu. Suas ex eram tão horríveis assim para ter decidido gostar de mim?
— Ei, sem pensamentos autodepreciativos. E não, elas não eram ruins. Assim como você não é. Em meus dois únicos relacionamento eu vivi dias bons, e tiveram também os ruins. Mas quando o ciclo teve que fechar nós fizemos isso na paz. — Eu bufo cruzando os braços, um pouco impaciente para saber o que ele está aprontando na minha cabeça. — E eu não decidi gostar de você, escolhi aceitar que gosto de você.
Eu aperto os olhos e faço uma careta perante ao sentimento que tenho agora.
— Acha que o nosso ciclo vai se fechar muito rápido?
— Eu espero que não. — Ele fala, então, o sinto fazer um movimento diferente nas minhas mechas como se as estivesse dando um toque final ao passar as pontas dos dedos entre os fios emarranhados um no outro. — Terminei.
Eu nem me demoro a me distanciar dele e o encarar me encarar.
— O que você fez?
Querin se levanta da cama e vai até ao armário, de lá tira um espelho de mão oval emoldurado em prata. Volta até mim e mira o objeto refletor em minha direção para que eu veja por mim mesma. Tranças raiz! Ele estava fazendo isso na lateral da minha cabeça. Quatro delas, médias e com um cumprimento de mais ou menos cinco centímetros. Elas estão moldando meu rosto tal como Yudis fica quando as faz. Estou surpresa que ele saiba fazer isso, mais ainda, que eu tenha gostado tanto do resultado em mim.
— O que achou?
— Nossa — eu exalo e sorrio em simultâneo. — Você me deixou tão linda!
— Negativo. Você é linda. Apenas enalteci isso em ti. — Eu o abraço por instinto, agradecida. Ele retribui o contato com calma. E essa se torna a primeira vez que o faço sem hesitar sequer uma vez.
Eu me afasto dele segundos depois, um pouco envergonhada por ter sido tão impulsiva em abraça-lo.
— Desculpa.
— Não peça. Pode fazer isso sempre que quiser.
Assinto tornando a me sentar na posição inicial quando ele vai guardar o espelho e de seguida fica do meu lado. Nós damos as mãos outra vez, cabeças encostadas na cabeceira a medida que aproveitamos o momento.
— Onde aprendeu a fazer tranças?
— Nas bonecas da minha irmã. Yansel era viciada em fazer tranças nelas e meio que era obrigado a ser ou o modelo ou o cabeleireiro.
Eu bocejo do nada, levando a outra mão para cobrir a boca. — Vocês deviam ter uma boa relação.
Ele faz que sim e espreme os lábios com suavidade.
— Não sente sono, Igith? — Faço que não. Depois encosto a cabeça no seu ombro apertando devagar os nossos dedos.
— Eu sinto vontade de ficar aqui com você. Só mais um pouco. — Eu murmuro. — Porque eu me sinto bem, sabe? Então quero aproveitar o quanto puder com você.
Ele passa a mão em torno do meu ombro e me aproxima dele.
— Você me faz sentir bem. Mas ainda precisamos dizer isso aos teus pais.
— Isso não está bom para você?
— Só quando fizermos do jeito certo.
— De qualquer forma, eu só quero sentir este momento contigo. — Digo por fim, sentindo as pálpebras pesarem a cada segundo. Bocejo uma vez mais. É como se estivesse sendo possuída pelo sono.
— Devia mesmo ir dormir. É quase meia-noite e amanhã a gente tem um compromisso.
— Tem medo que eu durma aqui? — Outro bocejo quando me afasto dele e cansada o encaro. — Não seria uma má ideia que me levasse no colo até o meu quarto.
Querin sorri com o que digo, descendo primeiro antes de me ajudar a fazer o mesmo.
— Que boba, garota ruiva. — E faz aquela expressão adorável que tanto gosto de ver nele, de seguida caminha junto comigo até a porta, assim, antes de ir embora eu o abraço mais uma vez, sem vergonha agora. E quando me afasto ele beija cada uma de minhas mãos com carinho, depois um beijo no canto da minha boca e já eu, decido deixar outro na sua bochecha.
Fecho a porta do meu quarto uma vez dentro dele. Me arrasto até minha cama e quando vou me jogar lá me lembro de não ter escrito nada mais cedo pelos meus familiares terem vindo me desejar uma boa noite. Suspiro. Sacudo os pés no tapete rente a cama e me atiro no colchão.
Com a caneta em mão eu a pressiono contra a folha de papel em branco, pendo a cabeça para o lado e começo a escrever como se pudesse me libertar de tudo que sinto colocando cada palavra para fora.
08/11/2019
Para: Minha Querida Agenda
Dou uma leve risada pela primeira frase que escrevo. Não sou do tipo que faz dedicatória ao escrever, mas como dizem: há uma primeira vez para tudo. E esta é a vez que escrevo uma carta para ninguém em especial.
Eu tinha 12 anos quando tive o meu primeiro ataque de pânico. No início não sabia do que se tratava, ou por que sempre pensava que estava prestes a morrer nos curtos segundos nos quais perdia a noção de quem era ou onde estava. Porém, mais tarde, quanto mais crescia e tinha entendimento das coisas, eu compreendi o que se passava comigo e com o desejo intrusivo de que meus pensamentos ansiosos se concretizassem após cada crise. Então, cresci mais, e nada parecia fazer muito sentido para mim, pois não era como se eu estivesse viva, mas também não era como se eu estivesse morta. Eu apenas vegetava. Sem propósito. Sem esperança. Sem apoio das pessoas em quem eu antes confiava. Eu somente respirava. Era um ar denso, difícil de tragar para os pulmões, o mesmo que me mantinha consciente e me lembrava de que ainda tinha a vovó. Só continuava por ela, até conhecer Querin naquela noite de sábado. Ele que me fez ter um entendimento diferente sobre muitas coisas, tais que eu via de maneira distorcida, por estar corrompida. Entre elas, descobri o sabor do perdão. O qual trouxe a família Kefrām de volta, mas não tirou a marca que ainda há em mim. Esta que está me fazendo alucinar a ponto de sentir a urgência em ter tido esse dia com eles. Ainda sem esperança, mas sem esperança junto deles, contemplando um dos momentos mais satisfatórios que me permiti viver: a coragem de Bursüm, a força de vovó Yame, a mudança verdadeira de Ur e o relacionamento restaurado de meus pais marcado em uma imagem capturada em minha mente para me lembrar de que talvez tudo isso ainda possa valer a pena.
Mas então vem a pergunta, para mim mesma ou para eles?
Uma palavra, um impacto
Enquanto pensava, trancada no quarto, jurava que era aquela a minha melhor maneira de livrar a mente de um pensanento que vinha em mim forte e ardente
Respirar, eu precisava mesmo de tragar e expulsar o ar
Tragar e expulsar o ar até tudo se acabar e ver o ciclo se repetir uma vez mais
Era difícil, todos tinham conhecimento disso
Mas a chave para superar só estava nas minhas mãos, e eu não sabia ao certo se estava disposta a abrir aquela porta até então
Dinazarda
Aiai gente, eu estou um pouco apreensiva para o que vem a seguir. Mas ok, eu só quero pedir uma coisa... Não queriam me matar. 👀
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