020: O passeio perfeito - Parte II
Cortei os meus cabelo de madrugada.
Eram duas da manhã quando despertei de um sono de menos de meia hora. Estava tentando desenhar assim como faço regularmente em dias de insônia, entretanto hoje não deu resultado algum para mim. Comecei a ficar frustrada, para além de estar malditamente nervosa eu parecia que estava prestes a ter um surto.
E antes que algo do gênero acontecesse, como uma luz no final do túnel eu olhei para o meu estojo e ali estava o objeto que me instigou a fazer algo que já desejava fazer há muito tempo e a falta de coragem me impedia: cortar parte do meu cabelo.
Eu tinha percebido o quanto gostava de saber que Querin os adorava e de alguma modo isso me deixava feliz também, porém faziam alguns dias que eu não me sentia tão bem com o cumprimento deles, estava os olhando frente ao espelho e, com toda coragem que tinha comigo eu passei as lâminas com cuidado pelas pontas, e fui reduzindo e alinhando com o máximo de cuidado até que estivessem na altura do meu pescoço.
E embora eu não seja uma profissional em cortes de cabelo o resultado me agradou bastante e naquele momento eu percebi: aquela tinha sido a primeira decisão boa que eu tomava por mim mesma em anos, e ter ciência disso instalou no meu peito uma sensação de conforto que pouco sentia quando estava sozinha nos últimos dias.
E eu me decidi; aproveitaria o máximo o dia de hoje apesar de não ter dormido mais que duas horas apenas. Vestida em uma calça jeans colada e uma blusa do meu tamanho eu passo rimel nos cílios para lhes dar uma coloração mais viva e um pouco de pó de arroz nas bochechas que disfarçam a minha palidez. Suspiro. Me olho no espelho mais uma vez e faço careta ao olhar para os meus seios. Eu detesto que eles parecem crescer a cada dia. Desisto de usar a primeira blusa, troco para uma maior e saio do quarto antes de vestir uma bata de vez.
Todos estão à mesa na cozinha comendo da diversidade de iguarias preparadas para o kavahalti. Lhes dou um breve “oi” e passo a pegar na minha caneca no armário antes de me sentar ao lado da minha avó. Me sirvo de café e pego um pouco de azeitonas com queijo branco para o meu prato, quando ergo o olhar para pedir que alguém me passe a cesta com os pães eu noto por fim olhares curiosos dirigos a mim. Travo e arqueio levemente uma sobrancelha, sem entender eu pergunto:
— Ei, aconteceu alguma coisa?
Ur parece não acreditar no que digo e cede os ombros para baixo, coloca uma porção de salda de fruta na boca antes de soltar uma única risada nasal que eu entendo como “você é impossível”.
— O que aconteceu com você, mana? — Bursinha pergunta hesitante, hoje ela parece muito quieta, mas se atreve a interagir comigo parando de degustar da sua torta de mirtilos por segundos. Eu semicerro os olhos na sua direção, como sempre sentada ao lado de Querin que aponta por cima do meu ombro, eu olho para lá e então sorrio ao compreender o porquê até os meus pais estão me olhando pasmos.
— Ah, eu decidi mudar um pouco. Ficou bom, não? — Papai somente faz que sim e parece desistir de tentar entender os meus motivos após negar levemente com a cabeça.
— Claro, mas isso foi...
— Inusitado, típico da Igith. — Ur completa o raciocínio da nossa mãe de bom tom. Eu lhe mostro a língua e recebo um piscar de olho de seguida.
— Ficou incrível minha linda. — Vovó Yame diz para mim, voltando-se em minha direção antes de passar os meus cabelos para trás da orelha. — Só vai precisar de acertar um pouco essas pontas para ficar perfeita, não acha Querin?
Eu arregalo um pouco os meus olhos para a minha avó que faz a sonsa no minuto seguinte e torna a se concentrar no seu chá preto. Quando olho para o dito cujo ele sorri para mim, e acena em concordância.
— Sim, ótima escolha de corte, Igith. — Eu bebo um golo de café, sorrio de lado ao separar os lábios da caneca e digo devagar:
— Obrigada.
— Meu Deus! — Yudis entra correndo na cozinha, ela vem ao meu encontro e se senta do meu lado no lugar vago. Ela sorri, beija minha bochecha e com o rosto iluminado me encara. — Como você está linda, Igh! Que loucura foi essa?
Eu reviro cômicamente os olhos para ela que passa a cumprimentar os demais na mesa sem deixar de passar os dedos nos fios do meu cabelo.
— Decidi fazer uma mudança — e pisco para ela antes de olhar para tia Banu, a qual ocupa o lugar ao lado de Bursinha, de frente para os meus pais. — E bom dia tia Banu.
— Bom dia Igith — ela devolve sorrindo sutilmente para mim. Temos tentado não deixar que a situação anterior afete a nossa interação, o que ainda tem sido um pouco difícil para a mais velha. A mãe da minha amiga ainda se sente muito envergonhada pelas atitudes do seu irmão e é algo que duvido que passe de um instante para o outro. — O corte ficou lindo em você.
Eu também sorrio para ela num gesto de gratidão antes de por fim me voltar para a Yudis, tal que nem se demora a servir quando a minha avó lhes faz o convite.
— Poderia me ajudar a acertar as pontas antes da nossa partida?
— Não precisa nem pedir, eu tive umas aulinhas há algum tempo, vou dar um jeito nisso. — Ela afirma despreocupada.
— Só não se demorem garotas, daqui à uma hora estamos de saída.
[...]
Precisamos de dois carros para que a ida ao parque situado no bairro de Cançaya fosse única, o mesmo no qual eu e a minha família estivemos da última vez. Kuğulu, é o nome do local, me lembro dele pelos famosos cisnes e gansos que lá vivem e uma nostalgia começa a precorrer o meu corpo a medida que vejo o carro dos mais velhos partir de primeira enquanto a nossa Van, tal que Ur está no volante e Yudis do seu lado no carona, se aprontando para segui-los quando nós os da cabine de trás certificamos que os cintos estão devidamente apertados.
Querin apesar de estar sentado no assento depois do nosso está mantendo uma “conversa” com Yudis sobre a música que está passando na rádio. Já eu estou de mãos dadas com a minha irmã e tenho tentado a manter ocupada como forma de distraí-la de seus próprios pensamentos. Algo que parece estar funcionando, pois agora ela está menos nervosa em relação ao momento que saímos de casa no qual sua mãozinha apertava a minha com determinação a cada vez que seu nervosismo aumentava.
Dentro do carro, ela pediu para se sentar no lado da janela para assim apreciar a paisagem que por tanto tempo estava privada de contemplar, então como uma brincadeira nossa usamos as nuvens no céu e fomos vendo as formas que elas criavam ao longo da estrada.
— Olha aquela mana — Bursinha diz para mim apontando para uma nuvem a qual já estávamos deixando para trás. — Parece uma melancia.
Eu sorri para ela e apertei de leve sua mão, até ela se afastar de mim e enfia-la no bolso a fim de tirar algo de lá. Uma embalagem de chiclete de melancia.
— Peguei da bolsa da mamãe, você quer? — Ela está me dando um, só que eu ergo uma sobrancelha sugestivamente e digo:
— Dois ou eu sujo a tua barra — declaro com malícia. Ela faz uma careta como quem não acredita no que acabo de fazer.
— Você não presta, Igith.
Eu dou uma breve risada recebendo os meus chicletes, os desembalando e colocando ambos na boca assim como ela faz se perdendo na visão do céu anil.
A verdade é que eu nunca fui uma menina “certinha”, tinha meus momentos de rebeldia quando não estava seguindo regras, gostava de fazer o “sim” de “não” e vice-versa. Diga-se que Ur sofria demais com isso antes de todos esses problemas nos afetarem. A nossa relação era tão forte que por vezes me perguntava como que a gente não nasceu gêmeo. E nesses dias, bom, temos todos tentado nos reaproximar de maneira sútil, reconstruindo a confiança que de lá para cá se perdeu.
— Espera, isso é... — ouvimos Yudis sussurar antes de dar um jeito de se curvar para nós como pode e sorrir abertamente. — Chiclete de melancia! Alguém tem para mim?
Bursinha faz que sim e lhe passa algum também sem cerimônias.
— Yudis sente-se direito. Não me dê problemas com o trânsito. — Meu irmão alerta extremamente sério. Sei que quando está no volante Ur leva todas regras muito a sério por ele ainda ser novo e os nossos pais terem se antecipado ao fazê-lo tirar a habilitação, o que lhes custa a taxa adicional que eles pagam na localidade.
Yudis bufa, mas atende a sua sentença. O que não muda nada seu bom humor ao fazer uma pergunta que me deixa enrubecida.
— Querin, você sabia que a Igith tem a melancia como fruta favorita? Ela ama esse sabor em todos os seus derivados. — Eu reviro os olhos e cruzo os braços como se não tivesse me lembrado que meu sabor favorito mudou no dia que Querin me beijou. Hortelã, é ao que ele sabia naquele dia.
— Ah, é? — Yudis diz sim e começa a nomear os meus derivados favoritos. Sinto as pontas dos dedos do garoto no meu ombro a fim de chamar a minha atenção, eu movo a cabeça levemente para o lado de maneira que ele saiba que estou o escutando. — Nunca me falou sobre isso, Igith.
Eu dou de ombros com tranquilidade.
— Você nunca perguntou.
Ele dá uma curta risada que me faz sorrir de modo sútil.
— Tem um ponto.
Me viro mais um pouco para sua direção. Lá atrás ele também está sorrindo para mim.
— Sempre.
[...]
É quase meio dia quando papai e Ur arrumam vagas disponíveis para estacionar os carros. Da janela eu vejo os mais velhos descendo do seu veículo, onde vovó Yame está sendo ajudada por tia Banu que lhe serve de apoio enquanto o meu pai pega da cabine traseira as cestas de comida que eu sequer imaginava terem sido trazidas.
Eu olho para a minha irmã, a qual está com as mãos inquietas sobre o colo, olhando de vez em quando parado lado de fora e mordendo a unha inconscientemente.
Respiro fundo, a Van está silenciosa pois todos esperam que eu faça a pergunta para a Bursüm. E tomada de coragem levo a mão as suas e interrompo o ato ansioso que as suas fazem de modo a chamar a sua atenção para mim.
— Bal — eu sussuro, seus olhos arregalados me encaram com o mesmo medo que já vi em mim mesma em casos diferentes. — Quer mesmo fazer isso? Não está se sentindo pressionada demais?
Ela nega com a cabeça lentamente e tentando levar o dedo a boca eu a impeço e a puxo de encontro ao meu peito.
— O parque está quase vazio — sinto sua respiração pesada perante ao nosso contato. — E tem muitos cisnes no laguinho. Eles são lindos. O céu ainda está limpo, tão azul quanto você gosta. Pode vê-los hoje se quiser, ou noutro dia se se sentir mais confortável.
— Eu me sinto confortável em casa, Igith. Dentro do meu quarto. — Ela devolve devagar, a voz baixa. — Mas eu já cheguei tão longe e isso significa tanto para mim. Eu quero tentar... Hoje.
E se afasta para me encarar de lábios cerrados. Sorrio para ela e dou-lhe um beijo na bochecha embora saiba que Bursüm não é muito fã de afeto.
— Céus, eu tenho as irmãs mais fortes desse mundo. — Ur declara abrindo a porta primeiro antes que nós também saíamos do carro.
Ele pega Bursüm no colo com facilidade, tal que encosta a cabeça no ombro do nosso irmão que a leva de encontro aos nossos pais se alojando entre os bancos de jardim próximos do lago no qual cisnes e gansos se banham e se alimentam do pão que um velhote atira para eles através da vedação de madeira que os separa do resto do parque.
O lugar está exatamente como eu me lembro, embora na época a gente tenha vindo na Primavera, hoje as folhas das árvores robustas se encontram marrons e alaranjadas caindo levemente ao soprar do vento de Outono. A superfície na qual caminho é feita em blocos de pedras antigas, onde por entre uma distância e outra para além das plantas dentro de cercas de metal ainda há tulípas a decorarem o lugar.
De fato eu não menti, há realmente pouquíssimas pessoas pelo parque, sendo alguma delas diaristas que vendem dos seus serviços por aqui. Uma em especial, a vendedora de castanhas quentinhas estacionada com a sua carrinha no lado ajacente ao lago. O cheiro me deixa inebriada e desejosa por provar daquele fruto seco uma vez mais, mas não antes de ir pegar minha irmã ali ao lado dos nossos pais e caminhar de mãos dadas a ela até a senhora agasalhada em um enorme casaco.
— V-você tem moedas mana? — Bursinha se arrisca a fazer a perguntar de maneira acanhada. Sua mão está apertando devagar a minha quando eu assinto com a cabeça olhando para ela bem próxima de mim.
— Tenho, a vovó Yame é simpática em me dar algumas liras de vez em quando. — E pago por dois copos descartáveis de castanhas agradecendo após recebê-los.
Nesse mesmo instante sinto a borda da minha da minha camisa ser puxada com leveza por Bursüm, eu a encaro em dúvida até vê-la apontar para a nossa esquerda na direção de um fotógrafo mexendo nos seus equipamentos, sentado em um dos bancos algumas polegadas de onde Ur e Yudis estão conversando aparentemente animados.
— É um fotógrafo, vocês queriam tirar uma foto.
— E você? Se sente a vontade para tirar uma conosco?
Ela faz que sim e este se torna um momento de luta interior que ambas compartilhamos. Para a minha irmã por estar indo comigo falar com um desconhecido, e a minha por estar indo falar com um homem desconhecido. Faz pouco tempo que tenho tentado lutar contra os meus antigos pensamentos, acreditar que não preciso ter medo dilacerante por todos os homens, mas estar alerta porque a sociedade não chega nem a ser o mar de rosas que acreditei algum dia.
Pensar assim me faz apertar um pouco a mão da minha irmã como se ela estivesse aqui para me dar coragem para avançar de encontro ao fotógrafo e não o contrário. Mas nem a coragem diminui a sensação de taquicardia que começa a se apossar de mim.
Calma, Igith — digo para mim mesma a medida que tenho de formar palavras e explicar ao profissional o que desejamos.
Em algum momento o jovem de por aí 25 anos diz o mesmo para mim “calma moça, fala devagar que estou te escutando”, e enquanto eu falo, sinto que na verdade minha irmã está me apoiando porque sua outra mão vai acariciando minhas costas como se pudesse entender o que se passa comigo e tenha deixado de lado parte do seu receio para me ver bem.
É um dos primeiros momentos significativos que guardo para o dia de hoje.
— Pessoal, nós encontramos um fotógrafo e acho que dá para fazer a foto agora.
— Legal, vamos a isso! — Yudis fala puxando Ur para perto da mesa de jardim na qual vovó está sentada com Querin; os nossos pais antes sentados num banco próximo vem ao nosso encontro e se ajeitam ali também.
— Mas não custa caro, custa?
— Ur! Para de ser mão-de-vaca pelo amor de Deus. — A garota replica nos fazendo rir. Meu irmão bufa, indignado. E antes que eles comecem uma briga desnecessária eu intervenho.
— Não, e já deu para pagar. Agora se ajeitem que ele não tem o dia todo. — Aponto para o moço que vem se aproximando com o tripé enroscado num braço enquanto no outro leva a pasta com o equipamento da câmera.
Quando nos organizamos, meus pais sentam um no lado do outro, separados de tia Banu por vovó Yame, a qual tem Bursinha sentada no seu colo com a cabeça apoiada no ombro da mais velha. Em contrapartida eu e Querin estamos parados ao lado da mãe da minha amiga, eu em sua frente assim como Yudis no lado oposto se mantém próxima de Ur.
Uma família feita de oito pessoas diferentes umas das outras, mas que estão aprendendo a lidar com essas diferenças que as separavam.
— Prontos? — Fazemos que sim em simultâneo. — Alguma palavra antes da foto? — Nos entreolhamos com expressões claras, depois, fazemos que não em simultâneo novamente.
O jovem sorri e ajeita o cachecol em torno do pescoço, e quando ele se curva para a câmera eu sinto dedos suaves a procura dos meus. Volto um pouco o rosto para trás e dou um leve sorrio para Querin, entregando minha mão a encontrar a sua. Encosto a cabeça no seu peito ao passo que sinto o meu se preencher daquela sensação boa outra vez, por fim torno a focar a diante no exato momento em que o flash dispara em nossa direção e captura o meu sorriso de satisfação por estar aqui com cada um deles.
Fazemos mais umas quatro, mas a primeira é a melhor de todas. No final, tia Banu promete comprar uma moldura para que cada um coleque a sua fotografia lá, promessa que faz meu irmão se sentir bem animado por acaso.
— Minha nossa, você é impossível. — Yudis reclama seguindo junto dele para observar os cisnes dançando no lago artificial. Não chego de ouvir a reposta de Ur, mas a faz lhe dar um leve tapa no ombro.
Minutos depois Querin pergunta se Bursinha não quer observar os cisnes de perto uma vez que a mais nova apenas os observava de longe. Os olhos da minha irmã brilham perante a compreensão do garoto que a está levando na direção dos outros dois.
— Sabe o que é aquilo? — minha avó pergunta uma vez sozinha comigo. Eu me debruço sobre a mesa ao passo que ergo uma sobrancelha em dúvida, coloco uma castanha na boca ao vê-la apontar para Ur e Yudis.
Dou de ombros e decido que não quero parar de comer estas castanhas tão cedo.
— Paixão?
Vovó faz que não.
— Não, é fome. — Eu dou uma curta risada, depois suspiro devagar perante a degustação sensacional da fruta. — E eu preparei um delicioso purê de abóbora para vocês.
— E se for mesmo paixão? — Pergunto encarando o tanto de potes fechados que vovó Yame tira daquela cesta disposta sobre a mesa.
— Vamos descobrir se eles tiverem de barriga cheia. Por enquanto eu chuto que é fome.
— Não faz nem uma hora que a gente saiu de casa, vovó... E, quando a senhora preparou tudo isso mesmo?
— Nunca duvide das capacidades de uma avó. — Então, ela me passa um pacote de suco de melancia e segue até a outra mesa servir cházinho preto para os outros adultos.
Eu fico sozinha ali, comendo castanhas e observando os outros se divertirem com a imagem das aves brancas grasnando melodicamente. Foco principalmente em Querin sorrindo para a minha irmã e penso no quão a sua irmã deve fazer falta. No quão a sua família lhe faz falta. Nunca experimentei a dor da perda de um familiar, e para ser sincera não faço ideia de como é perder alguém.
Uma vez ouvi dizer que perder alguém é como perder parte de você, e estar perdendo três pessoas importantes em anos seguidos sequer faço ideia a que equivale, isso se existe algo a que se comparar essa dor.
E embora ele tenha me dito certa vez que aceitou a morte deles, me pergunto quantas vezes ele se imagina num dia a mais com Yansel, seu pai ou sua mãe. Essa sua coragem para prosseguir mesmo sozinho... Eu gostaria de ter algum dia.
— Mana — eu olho para o lado, me desencostando da madeira da mesa. Bursinha está agora sentada a minha direita, as mãos inquietas e consigo notar a respiração pouco alterada pelo movimento de subir e dever do seu peito.
Uma crise.
O pensamento me passa tão rápido como um feixe de luz. Me volto devagar para ela porque não quero a deixar mais agitada, eu pego em suas mãos com uma das minhas e com a outra vou encenado movimentos lentos que a fariam se acalmar ao menos um pouco.
— Respire comigo Bursüm — lentamente ambas respiramos até vê-la começar a relaxar os músculos. — Isso, bem devagar...
E ela encosta a cabeça no meu peito de seguida, me abraçando com calma.
— Está tudo bem pequena, nós estamos aqui. Ninguém vai te fazer mal. — Minha irmã faz que não, exalando aos poucos.
— Mas eles fizeram, Igith. Me fizeram tão mal que estar na escola já não era tão bom para mim. — Começa a dizer muito baixo, apertando nosso abraço. — Seus julgamentos me deixarão tão mal que estou com medo de não suportar ficar aqui muito mais, foi tão bom sair de casa, mas é muito difícil estar aqui mesmo com vocês todos... Ainda sinto aqueles olhares, ouço aquelas vozes, é só vocês pararem de falar que tudo que diziam para mim reverbera aqui dentro. É isso que me desconcentra. Quero tanto continuar com vocês, ainda assim não sei se quero ficar mais aqui.
Meu peito aperta perante a essa informação. Eu não queria ter razão antes. Queria estar malditamente errada sobre isso. No entanto me esforço a manter a calma e questiono com cuidado:
— Você quer voltar para casa, Bursüm?
— Eu só quero ser uma garota normal. Quero sentir que faço parte de algo sem temer tudo a minha volta. Eu quero viver. E esse foi o maior passo que já dei pela minha melhora. Para que isso aconteça.
Eu entendo todas essas palavras como um não e então sou paciente em lhe esperar se acalmar. Não demora muito, minha irmã começa a recuperar a regularidade da respiração e minutos depois vovó Yame a convida para tomar achocolatado. Eu a levo até a mais velha e quando olho para o trio alguns passos depois de mim sorrio sutilmente com a visão de Querin me encarando de lá. Me despeço das duas e caminho em sua direção como quem não quer nada, porque de fato não sei nem o que dizer para elas uma vez que juntos já parecem ter tanto assunto.
— Oi, vocês — sou a primeira a dizer. — Do que estão falando?
Yudis me olha diabolicamente serpentenado até mim e me abraçando por trás.
— De você — sussura apoiando o queixo na curva do meu pescoço. Eu arregalo um pouco os olhos para os garotos. Querin apenas nega sutilmente com a cabeça enquanto o meu irmão não, ele parece um pouco sério.
— Estão falando mal de mim?
— Negativo, Igith amiga. Falamos de você e do Querin, fazem um casal fofinho, não acha?
Eu a afasto de mim e lhe encaro de olhos semicerrados.
— Aonde foi que você tirou isso, Yudis? — Querin que estava a alguns passos de mim se aproxima e me puxa gentilmente para perto com a mão. Ur encara aquele gesto e cruza os braços.
— Pois eu não acho nada fofinho. — Meu irmão devolve me fazendo o encarar com uma caranca.
O que está acontecendo aqui?
— Eu contei para o teu irmão — Querin fala só para mim e eu me sinto empalidecer num instante e quase entrar em erupção no outro. Eu contei tudo para o teu irmão. Que diabos isso quer dizer?
Meu coração parece que vai sair pela boca com as facetas diferentes deles. Da Yudis sorrindo maliciosamente para mim, do meu irmão nos encarando sério e de Querin super tranquilo depois do que disse.
— Calma, não foi sobre aquele momento. Mas sim sobre gostar de você. — Eu volto a respirar, mas o olhar incisivo do meu irmão não me deixa tão tranquila assim. Portanto solto a mão de Querin e passo os fios do meu cabelo para trás da orelha.
— Viu só? Eu sempre soube disso! Te falei Igith amiga. — A garota parece ter descoberto onde mora o coelho da páscoa de tão feliz que está.
— Quando você me disse isso Querin? — Ur pergunta como se não se lembrasse, e somente agora que Querin aponta o dedo para a parte superior do maxilar eu noto um corte bem sútil presente ali e faço careta. Sério que Ur fez isso?
Não tinha se passado sequer uma semana que os machucados daquela briga já estavam desaparecendo...
— Poxa Ur, sério que deu um soco nele? — Yudis pergunta tão pasma quanto eu passando o dedo por baixo do machucado do outro garoto. — Ser irmão mais velho é tão sério assim?!
— Estávamos treinando apenas e sim.
— Era uma pausa até você me bater — Querin devolve, mas muito longe de estar bravo. Ur solta uma risada curta.
— Tá certo, bati em você só para lembrar que ela ainda é a minha irmã. Não me importo com esse lance de vocês desde que respeite ela e a trate bem. Fora isso sabe que não depende de mim para essa relação aconteça.
Eu cerro os punhos envolvendo a borda da minha camiseta entre os dedos.
— Não acredito que estamos tendo essa conversa.
— Pois eu estou adorando — Yudis provoca erguendo freneticamente as sobrancelhas. — E...
— Vocês podem brincar comigo? — Bursinha aparece de supetão, as bochechas meio rosadas e olhar envergonhado.
Eu me agacho perto dela e com as mãos apoiadas nos joelhos pergunto: — E do que quer brincar?
Pique-esconde. É a isso que estamos brincando. Bursinha e Querin decidiram ser os primeiros a procurar, em contrapartida eu faria de tudo para ser encontrada por último. Detesto essa parte de caçar os esconderijos das pessoas como também sou péssima em achar lugares bons para me esconder.
De início, quando eles começaram a contar eu me pus a procura de um no qual poderia ficar confortável, porém o jardim tem mais lugares abertos que propícios para a brincadeira. Atrás de um dos maiores contêineres de lixo estava Ur que me dispensou assim como Yudis fez quando me dirigi para onde os adultos estavam. Era o seu esconderijo perfeito e seria o meu se tivesse chego mais cedo.
Perdendo as esperanças minha salvação foi vovó Yame me indicando o bosque a oeste do parque, tal que tinha as suas árvores tão robustas quanto as do jardim, só que mais altas e o chão todo era um tapete de folhas secas que crepitavam justamente a galhos caídos conforme eu corria em busca de uma com o tronco grande o suficiente para me esconder, quando por fim o achei, eu suspirei, olhei para o céu e sorri um pouco mediante ao som do cantarolar dos passarinhos que sobrevoavam por entre as árvores e pareciam alegres naquele simples gesto.
Ali, eu também estava feliz. Mas estava triste.
Estava feliz por estar com a minha família unida e feliz. E estava triste por não conseguir tirar a paranóia que se desenvolvia em minha mente dia após dia, assim como por saber que o medo vinha acabando com a esperança que algum dia tive de alcançar aquilo que as pessoas chamam de “paz de espírito”. Era também um sonho meu desde pequena, desde a primeira vez que descobri a existência dessa expressão. Porém escolhi não dizer isso ao Querin quando contei que queria ter esse dia com eles. Não somente por ser algo meu, já não esperava que isso fosse acontecer após a noite do atentado.
Depois daquele dia tudo se tornou diferente e embora tentasse os convencer de que ficaria bem, eu sabia que me convencer disso começava a ser perda de tempo.
— Achei você — eu levo a mão ao peito assustada, olhando para o lado pisco vezes seguidas perante a imagem do garoto pendendo a cabeça para o lado.
— Você me assustou... — eu murmuro balançando de leve a cabeça. De seguida dou um passo para trás e o encaro nos olhos.
— Desculpa, você parecia distraída. Está pensando em quê?
Eu faço bico com os lábios, então dou um sorrisinho e passo por ele.
— Você é meio invasivo às vezes, sabia?
— Curioso, eu diria.
— Bom, “Senhor Curioso”, parabéns por me achar. O esconderijo de hoje era bom, não concorda?
— Sim, tão bom que você estava se perdendo lá. — Ergo uma sobrancelha para ele apesar do garoto estar fitando o chão. Paro de andar de súbito o instigando a fazer o mesmo.
— Essa frase tem duplo sentido?
— Somente se tiver duas vertentes a que olhar. — Responde tranquilo e depois estende a mão para mim. — Vem, sua avó está a nossa espera para almoçar.
[...]
Voltamos para casa pouco tempo depois do almoço, eram quase cinco da tarde quando Bursinha fez o pedido. Então, no caminho, meus pais encomendaram a pizza da qual eles se alimentam lá para as oito. Já eu, em contrapartida, me despedi de cada um e segui direito para o meu quarto. E agora deitada na cama de banho tomado e no conforto de um pijama pego na minha agenda e a abro numa página em branco.
Primeiro escrevo a data de hoje no canto superior direito, duas linhas depois, uma frase simples:
"Todos merecemos um dia de felicidade".
E nem tenho tempo de concluir, pois alguém bate na minha porta e descubro ser meu pai quando permito sua entrada. Papai permanece ali no vão, de braços cruzados sobre o peito ele me encara.
— Vim desejar uma boa noite para você, e agradecer por hoje. Tinha razão, foi fantástico tirar o dia para a minha família.
Eu me ajeito na cama e aceno com a cabeça.
— Não tem de quê. Vocês me proporcionaram um dia incrível, só precisei dar um impulso para que isso acontecesse.
Papai parece sorrir meio sem jeito ao encarar os próprios pés vestidos apenas com meias, passa a mão pelos cabelos curtos e torna a me encarar.
— Não sei se já disse isso para ti algum dia, mas eu tenho muito orgulho de você Igith. É uma garota forte que chegou até aqui abraçando a si mesma sozinha quando nós não estávamos contigo.
Eu sorrio sutilmente para ele também.
— Eu comecei a ter orgulho do meu pai quando descobri que ele sempre tentou fazer da nossa família, uma família. Então eu descobri que eu só odiava você porque não conseguia não te amar.
— Sua sinceridade magoa por vezes. — Ele fez uma careta a altura de roubar uma risadinha de mim antes que eu dissesse “eu sei”. — Estou aqui por você agora, filha. Todos estamos, portanto não precisa mais segurar tudo sozinha, ok?
Faço que sim, consciente de que estou mentindo para ele.
— Certo. Boa noite, pai.
— Boa noite, Igith.
Meu pai nem dá meia volta e Ur já está ocupando o lugar que ele deixou.
— O baba está meio sentimental hoje, não é? — Meu irmão se expressa sarcástico, me fazendo rir. — Acho que ele me contaminou porque decidi ficar na fila para te agradecer por hoje e dar um boa noite.
Ele chega perto, se curva e antes de beijar minha testa sussura:
— O meu amigo não beijou você hoje, beijou?
Eu o empurro levemente.
— Nunca te chamei de imundo por todas com quem ficou, Ur. — Ur ri, torna a se aproximar e me beija ali. De seguida se despede de mim e ansiosa espero pelas próximas pessoas com um sorriso no rosto.
— Os garotos se anteciparam — mamãe fala com Bursinha no seu colo prestes a dormir.
— Mas nós viemos desejar uma boa noite de sono para você. Hoje foi incrível, mana.
— Nossa, eu estou adorando isso. — Eu falo com toda sinceridade. — Cadê vovó Yame?
— Ela já vem. Mas a gente tem que ir dormir, filha. Nos vemos amanhã, não se esqueça de acordar cedo.
— Tudo certo, mãe. Adeus. — E quando elas saem eu empurro o meu corpo a encontrar a cabeceira e lá me encosto.
Olhando para o meu caderno e para as linhas que pretendo prencher de palavras hoje eu exalo devagar, e sorrio ao som da minha porta sendo empurrada mais uma vez para dentro. Minha avó vem até mim e se senta do meu lado, sem deixar o costumeiro hábito de observar cada canto do meu quarto antes de me fitar.
— Perguntou por mim? — Eu assinto, ela desvia o olhar até encontar o caderno aberto e sorrir. — Ler isso me faz pensar que você não andou pensando no que eu te disse ontem.
Ela tinha razão. Eu não pensei sequer uma vez no assunto. Mas botei fé na minha oração e é algo do qual não irei falar também. Por esse motivo dou apenas de ombros.
— Tentar é difícil para você? — Vovó pergunta e eu digo que não.
— É cansativo. Às vezes me deixa esgotada.
E baixo a cabeça por me sentir envergonhada de minhas próprias palavras. Sua mão em meus cabelos só né faz querer sumir do universo de tanto arrependimento.
— E o que você faz quando está esgotada? — Questiona com calma, a voz suave e dedos alinhando meus cabelos bagunçados e recém lavados.
Mordo o lábio inferior indecisa em que responder. Depois de um tempo, digo:
— Eu tento dormir. — Mesmo que não a esteja encarando a sinto assentir.
— Pois então faça isso, descanse. Mas por um tempo. Em algum momento as coisas sempre voltam a andar na vida de todo mundo.
Eu ergo o olhar a fim de encontrar o seu. Não sei o quão nervosa eu consigo ficar, mas neste momento tudo o que me ocorre é que estou prestes a ter uma explosão caso não termine esta conversa bem.
— E você vovó, o que faz quando está esgotada? Já se encontrou nesse estado a ponto de querer simplesmente parar e mandar tudo pelos ares?
Senhora Yamenet dá uma risada curta e nasalada que não tarda em se tornar um sossisinho que eu classifico como sendo presunçoso.
— Ah pois sim, minha querida. Eu com está minha idade com toda certeza já passei por alguns momentos que me fizeram ter esses pensamentos e se tivesse visto, você se perguntaria como fui capaz de continuar. É que há vezes nas quais eu mesma me faço esta pergunta e então me recordo que por mais difícil que tenha sido suportar cada uma das lutas eu não desisti na anterior, e nem na outra atrás dessa. Que cheguei aonde cheguei por acreditar ser capaz de me superar até quando as forçam sucumbiam perante o medo do que tinha por vir. E sabe por quê?
Eu digo que não.
"Porque é disso que a vida se trata. De uma luta sem fim, em que só sai vencedor quem aguenta levar porrada e mais porrada e mesmo assim, continua a caminhada. Nem que seja engatinhando."
— Nossa, e neste momento, está firme? — Minha avó se levanta da minha cama, encara a porta e sorri. Sua demora naquela direção me faz olhar para lá também, sentindo o peito aquecer com a imagem que tenho diante de mim.
— Indo aos empurrões enquanto empurro você para ele. — Articula ela de bom tom. — Não se demorem que está tarde.
Enquanto eu respirava era como se uma explosão estivesse prestes a acontecer em mim
Era intenso, não me permitia pensar direito
Sufocante, não sabia mais se puxava o ar ou o exalava de tão torturante
Caótico, pois a força de segurar meus cacos havia se esvaido na busca por ser estável
Mas era acima de tudo lamentável, por ver que não tinha nenhuma chance perante a situação e que nada mais seria como antes
Dinazarda
💫 Não desanime💫
Atrasada, mais uma vez ;-;
Leitores queridos, a autora aqui veio somente informar — para além de pedir desculpa pelo atraso — que mudei oficialmente o dia de postagem dos novos capítulos para domingo.
Eu gosto de me comprometer e cumprir com minha palavra, portanto para não errar tanto os dias de att decidi tomar essa decisão. Espero que compreendam. E sim, quando eu tiver um tempinho extra, sempre que conseguir estarei postando fora do dia prometido.
No mais espero que tenham gostado. Deixe a estrelinha e um comentário para a autora saber o que está achando.
Glossário
Bal* → Querida.
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