018: Recolha seus pedaços

— Não faça isso, Yudis — eu a alerto sentindo o coração palpitante a cada segundo que passa.

Não é como se eu não tivesse ficado curiosa agora que ela está ali sentada do outro lado sorrindo para as folhas de um reles bloco de notas, porém, o medo de saber o que foi escrito naquelas páginas e não ter a capacidade de digerir que quer que seja, me faz ficar inquieta e desejar que Querin o tivesse levado consigo antes de sair.

Yudis, pelo contrário, parece que vai explodir de alegria por algum motivo que me deixa inexplicávelmente tensa e ansiosa.

— Ah, mas agora é tarde, Igith amiga — ela devolve e logo depois me encara, o sorriso crescendo a cada segundo. — E você vai querer ouvir isso. Aposto que sim.

Faço que não, mas minto. Eu quero saber sim e o fato de estar roendo a minha unha do polegar diz muito sobre a situação.

— E então... Pronta?

É errado isso que estamos fazendo? É!
Estamos invadindo a privacidade dele? Estamos!
Eu poderia dizer para ela parar com isso? Poderia!

Mas o que eu decido dizer ao invés disso?

— Leia logo de uma vez, droga!

Yudis da uma risadinha e pisca para mim, feliz por receber a minha confirmação antes de limpar a garganta e começar, lenta e suavemente:

Tão intensa quanto uma brasa ardentre iluminando o breu vivente na imensidão das esmeraldas frebris, desejosas por submergirem a inundação de todas emoções contidas nesse espaço belo e oculto que chama coração. Dos cabelos flamejantes num tom rubro tão delicado e eletrizente, destacado entre tantos que se torna cativante, de tal modo condiz com essa maneira sutil de sentir e exorbitante de sorrir. É de fato sua impertinência, que faz marcar a diferença. E o modo que se envergonha com simples palavras, mesmo que saiba como explodir mediante a uma dúzia delas...

Inacabado

~Sobre intensidade, sobre você G.R

Querin Attagül.

Se meu coração já estava batendo meio acelerado, agora ele está praticamente errando as batidas. Afasto o dedo dos lábios semi-abertos, um pouco confusa a medida que tento acalmar o arrepio brusco que me percorre a espinha.

Por que ele escreveria algo assim?

— Nossa — eu digo, desacreditada. Inalo o ar com força e o solto na mesma frequência. — Minha nossa.

— Está vendo isso Igith amiga? Você está entendendo o que isso quer dizer? — Yudis parece consumida por uma felicidade que não consigo abosrver totalmente. Ela sorri para aquelas palavras e depois está se dirigindo a mim. — Ele gosta de você!

— Yudis!

— Que foi? — Reclama. — Você ouviu o que eu li, não ouviu? O Querin escreveu sobre você, Igith. Sobre você!

— Não é sobre mim! Não tem como ter certeza disso. — Yudis revira os olhos como se estivesse aborrecida, da um tapa na própria testa e volta o bloco de notas para mim, apontando para uma das frases.

Cabelos flamejantes num tom rubro tão delicado e eletrizante... — repete ela, impaciente — Ah, o Querin deve obviamente estar falando de mim. — Debocha a garota me fazendo revirar os olhos também, por mais que eu tente compreender aquelas palavras ou o porquê delas terem sido escritas. Pior ainda, se foram mesmo escritas para mim, qual o motivo? — Para quem acha que ele escreveu esse texto?

Eu dou de ombros, e estupidamente respondo:

— Para a Bursinha?

Yudis emite um som semelhante a um bufo frustrado conforme se afunda na cadeira antes de me lançar um olhar meio decepcionado.

Ok, retiro o que disse — e suspira. — Você é pior que a cabra-cega, amiga. Por que diabos Querin escreveria coisas assim para tua irmã? Esses poemas, textos, e até simples frases são todos destinados a você: G.R. Sabe o que é?

Garota ruiva.

Encho as bochechas de ar e assim como ela me afundo no assento. Detesto tanto sentir esse súbito fiapo de felicidade por saber que ele escreve sobre mim, tanto como detesto que Querin me faça gostar dele sem ao menos ter conhecimento disso. E acho tudo isso muito idiota.

Sim.

Que idiota.

— Larga esse caderno, Yudis. Ele pode entrar aqui a qualquer momento.

— Está certo, só deixa eu terminar esse. Ah, Igith... Ele é tão fofinho.

— Pode parar com isso? — Eu pergunto entre dentes, mas muito longe de estar com raiva ou coisa assim.

— Aff, entendi! Senhora mal-humorada. — E pisca para mim antes de se afastar da mesa a fim de abrir o frigorífico. — Quer alguma para beber?

— Água por favor — Yudis revira os olhos carinhosamente perante ao meu tom de provocação.

— Mas é muito folgada mesmo. — Implica e logo joga uma garrafa de água para mim, me fazendo dar uma leve gargalhada.

Yudis serve comida para si e a coloca para aquecer no microondas. Ainda voltada para aquela direção ela faz uma pergunta que me deixa curiosa: — Ei, você viu o Ur hoje?

Eu dou de ombros e tomo um gole d'água, depois, respondo:

— E qual a probabilidade de eu encontrar ele durante o dia?

— Tipo uns dois por cento?

— Errado. Ur dificilmente está em casa, você sabe. Depois da escola eu nunca tenho conhecimento de onde ele possa estar. Isso nunca me preocupou. Mas por quê quer saber dele? Do nada essa sutil aproximação?

A garota joga os cabelos para o lado e ri um pouco. Quando o microondas apita, ela abre a porta e o aroma de comida aquecida fica impregnado pelo ar, se inflitrando em minhas narinas ao passo que o meu estômago se revira.
Só que não é de fome.

— Do nada não sua boba — agora ela está sentada novamente próxima de mim. Yudis faz uma breve oração e após dizer o amin ergue o garfo na minha direção como um convite silencioso que eu recuso com um acenar de cabeça. — Estou o ajudando a aperfeiçoar alguns passos na coreografia de dança para a formatura.

— Espera, o quê?

— Ele pediu a minha ajuda semana passada. — Se explica parando o talher bem próximo da boca.

— Hum... — Yudis ri e nega com a cabeça.

— Não me olhe assim. Eu sou a vizinha dele!

— E a garota por quem ele tem uma queda desde mais novo. Conheço essa história. — Devolvo e, perante ao seu olhar perplexo dou uma risadinha.

—  Nossa, como você não vale um centavo — embora seu tom seja sério, o semblante tranquilo dela deixa a crer que Yudis não está brava comigo. Ela come mais uma porção de manti*, limpa a boca e depois pergunta: — O que acha de fazer o almoço comigo?

Eu ergo uma sobrancelha curiosamente.

— Aqui de casa? — Yudis faz que sim. Eu faço que não. — Sem chance. Se você quer cozinhar, a cozinha é sua. Quando der ruim não quero ser a culpada.

— Não seja pessimista Igith — a garota fala apontando na minha direção com o garfo, eu me curvo um pouco para o lado, me afastando da sua mira. — Vai ser divertido, é uma receita nova e tenho a certeza de que vovó Yame irá gostar de provar.

— Do que falamos? — Nos viramos um pouco para a direção da porta. Ur está ali parado com apenas uma das alças da mochila suspensa no ombro esquerdo, ainda vestido no fardamento escolar todo amarrotado no corpo, muito provavelmente por conta de mais um dia de ensaio.

Ele nos dá um sorriso sútil e vai até a pia, lava as mãos e segue ao frigorífico para pegar uma garfa de água também. Eu analiso Yudis, ela parece um pouco aborrecida por algum motivo, entretanto não menciono nada quanto a isso, a ouço falar primeiro, a concentração voltada para o seu prato.

— Você, não sei. Mas eu a Igith estamos pensando em preparar o almoço. 

Meu irmão abre outro sorriso perante ao tom acusatório da minha amiga, ele parece querer rir,  porém se contém e se recosta no balcão.

— Nossa, senti maldade nessas tuas palavras — Ur brinca bagunçando os cabelos dela. — brava por não ter retornado a sua ligação, Yudis? Não foi intencional, de um jeito ou de outro te encontraria em casa.

Yudis bufa e desvia do toque dele se curvando um pouco para o lado.

— Não estou brava. Mas se cria um compromisso tem que fazer parte dele, senhor “não-retorno-chamadas”.

Ur olha para mim com as bochechas cheias de ar, aponta o indicador na direção de Yudis e sussurra “ela está brava”, com os lábios. Eu dou uma risada que desperta curiosidade na minha amiga a ponto dela se virar e encontrar Ur rindo silenciosamente atrás dela.

Yudis dá um soco de brincadeira na região do estômago do garoto que estoura em uma gargalhada antes de sair andando da cozinha rumo ao andar de cima.

[...]

Fizemos o almoço naquele dia. Acabei cedendo ao pedido de Yudis e o que acreditava que fosse correr mal ou coisa assim acabou de tornando mais divertido que o esperado. Ela tinha almoçado conosco também enquanto me contava sobre o vestido que pretende comprar para o baile de formatura, ao passo que eu me decidia ainda se queria mesmo fazer parte desse dia ou não.

Eram seis da tarde quando ela se despediu de mim. Tia Banu tinha voltado do trabalho e eu usei desse tempo para tomar um banho, escolher um novo pijama — agora com a estampa de docinhos de caramelo embalado —, e deitar na cama a fim de continuar a leitura da trilogia que começara a ler ontem de madrugada quando o sono não vinha mais. Yudis tinha os comprado para mim no meu aniversário, dizia ser um livro bom e de fato, era.

Estou deitada de barriga para cima no momento, os pés apoiados na parede e o livro erguido para cima impedindo que a luz do quarto foque diretamente nos meus olhos. Enquanto leio os momentos de novela mexicana da história, eu me pego pensando em Querin. Tenho pensado muito nele nos últimos dias. O que não é de mau ao todo. Ele é um amigo legal e, sempre tem coisas legais a dizer para mim. Sim, alguns momentos entre nós são tensos a um ponto de me fazer parecer um pimentão, porém isso não muda a parte boa das coisas.

Gosto como ele é delicado comigo e ainda assim me assusto com o que sinto em relação a isso de vez em quando, e quero acreditar muito que seja algo normal, que todas as pessoas sentem essas coisas e um pouco mais por seus amigos. Porque eu sei que tem algo a mais na conexão que tenho com aquele garoto. Nós nunca falamos sobre sentimentos, mas tem momentos em que me pergunto e volto a me perguntar se o mesmo sente uma porção disso que sinto por ele; ou se alguma vez sentiu o ar faltar somente por estar na minha presença. Estranhamente gostaria de saber se Querin já sonhou entrelaçando os dedos nos meus e me sinto tão patética por sentir vergonha dos meus próprios pensamentos até quando estou sozinha.

Eu deixo que o livro caia aberto no meu rosto, e faço careta. Depois sorrio porque estou me lembrando do poema de mais cedo.

“Garota ruiva.”

Ah, Deus! — E suspiro devagar. Eu gostaria tanto que ele me dissesse o que aquilo significa... Que dissesse com sua própria boca que aquele poema é mesmo para mim... Eu gostaria muito de...

Toc-toc.

Meu peito arde, de repente as mãos começam a suar muito. Tento regulgar a respiração lentamente. Quando baixo a cabeça de modo a estar olhando do avesso para a porta, eu digo:

— Está aberta — e me ponho sentada de pernas cruzadas de imediato, o livro deixo de lado.

E Querin entra deixando a porta semi-aberta assim como tem feito desde o dia que o falei vagamente sobre o meu problema com relação a lugares fechados. Ele se aproxima da cama devagar, não deixo de notar os cabelos úmidos quando a ponta dos seus chinelos tocam a base da minha cama.

Eu entrelaço os meus dedos sobre o colo e o cumprimento. — Olá.

— Oi, está tudo bem com você? — Faço que sim com a cabeça. — Como foi a tarde com a Yudis?

— Foi legal, diga-se por passagem. — Ele sorri e, olhando fixamente para mim seu sorriso de retrai de repente me deixando um pouco nervosa a ponto de fazer um som com a garganta e tentar sumir com essa tensão desnecessária que começa a se formar entre nós.

Eu miro o meu lado esquerdo, e torno a olhar para ele num convite silencioso para que ele se sente.

— Ah, não se preocupe. Eu não vim demorar muito. — Ele se explica e enfatiza sua fala com um acenar de cabeça. Nesse momento eu desejo enterrar o rosto em qualquer lugar que me proteja desse olhar.

Aí céus!

— Certo, algum problema então?

Ele faz que não mais uma vez e explica gesticulando.

— Amanhã cedo tenho um compromisso na faculdade e vim te avisar que Ur te pegará para os treinos. Não queremos que se esqueça do que já vinha aprendendo.

E apesar de não gostar muito dessa novidade, eu faço carreta com a ponta da língua para fora. Querin ri.

— Não tem como eu me esquecer daquelas aulas. Você é muito severo comigo.

E outra vez aquela expressão adorável que eu não consigo absorver sem que o coração bata descompassado.
Querin leva sua mão ao topo da minha cabeça e sorrindo ele afirma:

— Isso é porque eu gosto de ti, garota ruiva.

Eu arregalo um pouco os olhos, e meio que sorrio depois disso quando ele dá uma única risada, se despede de mim e dá meia volta. E sendo franca não sei o que me dá na telha quando toco sua mão num acesso de ansiedade e, subitamente, faíscas parecem se apossar de mim e percorrer até o último dos meus nervos, me deixando eletrizada de tal forma que me obrigo a soltá-lo de imediato mesmo que não consiga desviar o olhar das suas íris escuras me encarando encabuladas.

Pela primeira vez eu vejo ele refletindo a minha expressão no momento. Querin não perecia esperar por essa atitude minha. Muito menos eu. Eu quase surto por não saber o que fazer, o que dizer. O garoto voltou a ficar de frente para mim e também demonstra não saber o que dizer por alguns segundos.

Nós nos encaramos, olhos levemente arregalados. E, novamente, olhares dizendo mil e uma palavras que ainda não tivemos coragem de verbalizar.

Eu respiro fundo. Ele aperta os olhos e cerra os punhos de leve. Quando os abre, eu ainda estou o encarando.

— Igith — meu nome na sua boca soa tão baixo e tão e sai tão lento, ainda assim reverbera pelo fatídico silêncio do quarto e mexe com tudo dentro de mim. — Precisa de alguma coisa?

Por impulso quero dizer não e me livrar logo desse embaraço, porém eu escolho assentir devagar com a cabeça sentindo as bochechas corarem a cada segundo.
Espero que ele pergunte do que preciso, mas a pergunta não chega e entendo isso como Querin me permitindo dizer tudo que quero por incentivo próprio.

— Hoje cedo, na cozinha... — eu o encaro de baixo e, do nada, ele parece tão alto e grande e me faz sentir... Ah... — Você pode se sentar um pouco? Estou me sentindo muito pequena com você parado aí.

A tensão parece quebrar perante ao sorriso que ele me dá pelo humor na minha última frase. O garoto senta do meu lado e coloca no seu colo o livro que eu lia. Então me encara atento.

— Pode continuar, acho que a altura está boa agora, não é? — Faço que sim, sorrindo sutilmente. Depois fito minhas mãos e retorno ao que dizia.

— Hoje mais cedo quando você se aproximou de mim eu fiquei muito nervosa porque pensei mesmo, muito mesmo que você iria me beijar. E depois quando disse que não pretendia fazer isso, de algum modo algo em mim pareceu ter murchado ao invés de me sentir aliviada que você não tentaria alguma coisa comigo. Não compreendo bem o porquê, mas eu sinto essas coisas por você, quando você está perto, sabe? A confusão se instala em mim e perco a linha muitas vezes. Eu não sei se você está me entendendo, e, sei lá, nem faço ideia se isso faz algum sentido para ti.

Um vinco surge entre as sobrancelhas dele o fazendo assumir uma expressão pensativa. Eu engulo em seco, pois agora estou o encarando e essa situação com certeza merece o prêmio Nobel de todas as situações cômicamente trágicas que nós passamos juntos.

— Tenho duas coisas importantes para te dizer — ele diz seriamente. Eu assinto e escuto. — Primeiro: eu jamais tentaria nada sem ter a sua permissão, Igith. E por mais que eu quisesse beijar você, não o faria assim do nada. Entende? Não tinha nada haver com o seu estado ou com você, eu poderia beijá-la a qualquer momento desde que você desejasse, desde que me permitisse.

Eu inalo ar devagar, muito devagar mesmo e quase o prendo na garganta quando Querin coloca a mão sobre a minha e a leva ao peito, no lado esquerdo, bem no lugar onde o seu coração bate rápido demais.

— Sente isso? — Eu faço que sim no automático. — É a segunda coisa que você precisa saber: eu entendo perfeitamente o que você diz, pois também faz sentindo para mim. É assim que eu fico quando estou perto de ti desde o primeiro sábado que a vi entrar pela porta daquele cozinha, Igith. É assim que o meu coração bate quando penso na pessoa extraordinária que você é por trás dessa dor que tanto suporta carregar. É desse jeito que me encontro toda vez que olho para você e para o modo que tu consegues ser forte. Tudo isso é fascinante para mim. Você é simplesmente fascinante.

Meu lábio inferior treme consoante lágrimas ardilosas se formam no canto dos olhos.
Ele sente o mesmo por mim — É o meu primeiro pensamento, o qual me faz sorrir antes que outro, não tão bonito quanto o antigo, começa a se enraizar sem reservas em minha mente.

Eu tento o afastar, mas quando lembro que este é garoto muito incrível, a minha falta de confiança em mim mesma começa a me dominar e tenta me convencer que Querin é incrível demais para mim. É repentino, entretanto é forte a ponto de fazer-me pensar que não o mereço; que ele merece alguém melhor, alguém que esteja completa, inteira. E isso é algo que não me define no momento, pois estou completamente quebrada em pequenos estilhaços de tal modo que não me sinto a altura de receber esse sentimento, essas palavras, esse garoto.

E começo a me arrepender de ter começado com essa conversa. Por ousar me expressar tão rápido como uma garota boba sem ao menos pensar na bagagem que ainda carrego, que não consigo simplesmente jogar fora.

— Não chore, Igith — ele pede, a voz amena a medida que sua mão refaz a trilha das minhas lágrimas e limpa as minhas bochechas. — Por favor, não chore.

Eu nego com a cabeça e me afasto do seu toque. Envergonhada demais para olhar-lhe nos olhos.

— Me desculpe... — eu peço baixinho. — Me desculpe por não ser quem você esperava que eu fosse. Essas emoções, essas coisas, todas elas... Estão espalhadas em mil partes de mim. E eu não devia ter dito nada disso, porque você não merece algo assim, Querin. Não merece. Me desculpe.

Seu polegar faz um gesto delicado no meu queixo e carinhosamente ele pede que eu o encare. Eu faço, incerta. Mas faço e não me arrependo do que ouço a seguir.

— Quando estamos quebrados por dentro necessitamos em algum momento de recolher nossos pedaços. E, se não tivermos força para o fazer sozinhos, podemos ser ajudados. Não é sinal de fraqueza, é ser humano. Portanto, caso faltem algumas peças nossas, há gente disposta a se doar até que possamos nos manter de pé. A sua família está disposta a se doar para você neste momento, Igith. Eu estou disposto a fazer isso junto deles até que te sintas completa novamente. Está disposta a viver isso Igith? A aceitar isso de nós?

Eu fico ereta e logo depois assinto com calma, fechando os olhos a medida que seus dedos deslizam pela minha bochecha e se limitam somente naquele gesto. Quando torno a abri-los, Querin está me encarando fixamente. Eu desço o olhar até seus lábios e mordo os meus levemente, a sensação de querer saber como é encostar meus lábios nos de outra pessoa que não seja a minha melhor amiga me envolve.

Hesitante aproximo a ponta dos dedos do seu lábio inferior, e o suspiro trêmulo que ele deixa escapar perante ao toque reflete um sorrisinho tímido em mim, mas se retrai quando por fim encontro o seu olhar. Está intenso, muito intenso. Parece o meu. Sua respiração tão pesada quanto a minha e a pele arrepiada se compara a sensação que serpenteia pelo meu corpo reagindo ao dele.

Querin desliza um pouco a mão para a curva do meu pescoço e eu enrijeço a lembranças que não gostaria de ter agora. Ele é atento e se apercebe da reação, portanto decide levar a mão até a minha nuca buscando confirmação do meu conforto com o toque quando não desvia o olhar do meu sequer um segundo. Parece saber me ler como um livro aberto e compreender onde eu quero ou não ser tocada. Me faz querer agradecer e o beijar de uma vez. Porém eu espero, eu espero ele encostar a testa na minha, roçar levemente nossos narizes em meio as respirações mescladas e declarar comedido:

— Hoje mais cedo somente não beijei você porque não queria te assustar, pegar desprevenida ou até deixar desconfortável. — Eu quase consigo ouvir meu coração agora quando levo minhas mãos timidamente a tocarem seu peito e sentir seu coração sincronizado ao meu. — Como também não quero que se sinta pressionada a fazer algo que não quer, tem todo o direito de dizer que não. Então, eu vou pedir uma única vez Igith, e vou respeitar a sua decisão, certo?

Eu faço que sim, minha boca parece ressecar a cada segundo de ansiedade percorrendo o pouco espaço entre nós.
Querin fecha os olhos e eu o imito, logo depois, a pergunta vem, lenta e precisa.

— Posso beijar você, Igith Kefrām?

Volto a concordar com a cabeça, até por fim verbalizar:

— Você pode me beijar, Querin Attagül.

O ar quente que ele expira toca minha bochecha e me faz sorrir também a medida que seu nariz continua roçando carinhosamente no meu antes que mãos quentes preencham minhas bochechas e tomem meu rosto nelas. Ambos parecemos hesitar um pouco nos primeiros minutos, mas os minutos seguintes se tornam um dos mais extraordinários da semana toda quando Querin me aproxima delicadamente dele e seus lábios pressionam os meus, suaves e pacientes.

Eu congelo no início, sem saber ao certo como fazer isso de fato; sem saber ao menos como digerir a explosão de milhares de borboletas alçando vôo em minha barriga e os arrepios serpenteando por cada centímetro do meu corpo. E extremesso completamente quando, após segundos com os lábios somente pressionados um no outro, Querin move lentamente a boca na minha e me instiga a seguir o gesto, assim, de um instante para o outro, ele me guia e me ensina a fazer isso melhor do que eu imaginava ser capaz de fazer.

Nós nos beijamos devagar, sem pressa alguma, mas o momento é tão cheio de algo tão intenso que é como se não estivesse mais naquele abismo. É como se um choque de cores, emoções e sentimentos nos envolvessem e me dessem motivos para não pensar mais em desistir. É tão bom que quando nos afastamos a fim de recuperar o ar meus olhos parecem cintilar tanto quanto os dele no momento.

— Nossa — digo, levando a ponta dos dedos a tocarem os lábios levemente inchados. A sensação do que aconteceu entre nós ainda percorrendo cada centímetro deles. — Isso foi...

— Uau — ele completa e sorri para mim.

Eu concordo. Isso foi muito uau.

— Você gostou? — Pergunto um pouco nervosa. O sorrio dele cresce, e, quando toma meu rosto novamente em suas mãos responde a minha pergunta com outro beijo.

— Isso responde a sua pergunta? — Tímida eu faço que não, encarando-o com expetativas que não demoram a ser correspondidas. Então, Querin me beija mais uma e outra vez.

— Isso responde a minha pergunta — sussurro para ele tocando hesitante na sua blusa e apertando devagar os dedos ali antes de deitar a cabeça no seu peito e buscar conforto naquele lugar. Sinto hesitação da parte dele também. Tenho conhecimento desde aquela madrugada que Querin tem receio de me causar mal-estar caso me toque demais, e eu entendo o lado dele, por isso mesmo digo: — Você pode me abraçar. Por favor, não tenha medo de mim.

Seu coração parece acelerar nesse momento e acompanhar as batidas do meu quando seus braços me envolvem e ambos suspiramos mediante a esse contato.

— Não tenho medo de você, só quero te ver bem. — Eu sorrio esfregando a bochecha no tecido da sua camisa, sendo inebriada pelo aroma suave do seu perfume.

— Acha que o que acaba de acontecer vai tornar as coisas entre nós estranhas?

— Você vai permitir que as coisas entre nós fiquem estranhas depois disso?

Eu nego com a cabeça, ele acaricia os meus cabelos e deixa um beijo no topo dela.

— Eu não quero que as coisas fiquem estranhas.

— Então as coisas não vão ficar estranhas.

— Você promete?

— Eu prometo, Igith.

Não quero ter você
para preencher minhas partes vazias
quero ser plena sozinha
quero ser tão completa
que poderia iluminar a cidade
e só aí
quero ter você
porque nós dois juntos
botamos fogo em tudo.

~ Rupi_Kaur.

Glossário

Manti* → os italianos chama de ravióli, é uma versão de carne envolvida por uma massa sobreposta por iogurte fresco besuntado de manteiga derretida e polvilhado com ervas picadas e flocos de chile.

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