017: Sonhos e desejos

A sensação que tenho é a de que estou caindo no mesmo abismo no qual vivi por muitos anos. Não consigo ver luz alguma a que me agarrar, é como se tudo que consegui conquistar nas últimas semanas tivesse escapado das minhas mãos em um piscar de olhos e deixasse claro que nunca, jamais, dias ensolarados seriam para mim. Porque embora eu os viva, eles tendem a ser tão, mas tão curtos em relação aos que me encontro na escuridão dos meus próprios pensamentos que não resta outra opção senão pensar dessa forma.

Estou sendo esmagada por uma mistura de sentimentos que não me permitem respirar como se deve. A dor se apresenta para mim a medida que lembro daquele dia, do que ele foi capaz de fazer comigo e de como influenciou nas minhas decisões; a raiva cresce ao entender que: mesmo que Gāni esteja preso agora, a marca que ele deixou em mim não irá desaparecer do dia para a noite, mas então me sinto aliviada de ter o afastado da minha irmã até a culpa brotar por ter magoado a Yudis com a verdade, depois vem o medo me envolver quando penso em como tudo será a partir de agora em nossa casa, com as coisas que eu disse e com tudo o que aconteceu depois disso.

Mas eu também estou apreensiva, e confusa. Tão confusa a ponto de ter decidido ficar trancada no meu quarto pelo resto do dia. Não me sentia em condição de ter uma conversa estável com ninguém, portanto a primeira tentativa que eles tiveram em bater a minha porta eu não respondi, fingi estar dormindo até ter pego no sono de fato.

Não sabia que horas eram quando ouvi a maçaneta da porta ser movimentada antes que a abrissem com cuidado. Naquela hora eu estava voltada para a parede, os olhos fechados conforme tentava lutar contra a vontade de roer minhas unhas mais do que já tinha feito.

Meu corpo começou a tremer muito perante a aproximação da pessoa, eu não sabia ao certo quem era até sentir o aroma doce de pêssego e dedos apaziguadores tocarem a pele nua do meu ombro com suavidade. Eu vestia somente uma regata sem agasalho algum.

— Igith — a voz calma profere meu nome com hesitação. Eu aperto ainda mais os meus olhos pela ardência que me corre neles. O peito aperta quando minha mãe se senta do meu lado. — Filha...

Um suspiro, meu ou dela, eu não sei. Mas as primeiras lágrimas são minhas, pois não suporto que tenho de ter essa conversa com ela.

— Olhe para mim querida — eu faço que não embora haja súplica em sua voz, então me enconlho. — Por favor, nós precisamos disso.

Fungo, depois pergunto baixo: — Por quê?

— Porque chegou a hora de parar de adiar essa conversa. — Minha mãe devolve, eu me volto para ela devagar e mordo o interior da bochecha, indecisa.

Os olhos da minha mãe estão brilhantes, mas não de um jeito bom, é como se ela quisesse chorar e estivesse se contendo por alguma coisa... por mim... Sevda abre um sorriso sutil para mim, mas eu não o devolvo. Pelo contrário, limpo as lágrimas e me obrigo a ficar sentada olhando fixamente para as palmas das minhas mãos descansadas no colo.

— Eu não quero que se preocupe com isso — minha voz está muito abalada, trêmula. A garganta aperta a cada vez que uma palavra sai da minha boca. — Eu... Eu vou ficar melhor.

É a pior mentira que estou contando para ela. É a melhor mentira na qual eu quero ao menos acreditar.

— Você vai ficar bem, querida. Nós estamos aqui para te apoiar agora. — Mamãe diz, e com olhos marejados eu a encaro apertando os dedos entre o cobertor sobre meu colo. — E não volte a pedir isso, Igith. Não peça que eu não me preocupe.

Então, os olhos dela também umidecem no instante em que leva a mão a limpar as gotas que precorrem uma trilha em minhas bochechas. Eu suspiro, ela suspira. Fecho os olhos e me permito sentir a sensação da sua pele na minha, a sensação de ter minha mãe aqui. Quando os abro, o peito fica pressionado perante a visão tão abalada da minha mãe lutando para ser forte por mim hoje.

— Não peça para que eu não me preocupe, filha. — Ela torna a repetir, a voz tensa. — Sei que nunca consegui ser a mãe que vocês três mereciam, embora sempre tenha sonhado em poder dar todo o amor, o carinho, a atenção e proteção que necessitavam. Entretanto nem sempre as coisas correm como o esperado. Eu não esperava e nem estava preparada para a ansiedade ou para a depressão, e consequentemente acabei negligenciando tanto o que mais importava. Acabei negligenciando vocês por não saber como lidar comigo mesma na véspera. Fui perdendo cada um dos meus filhos aos poucos e foi como se um abismo tivesse se rompido ainda mais, não só em mim, mas entre nós.

“E as coisas que disse de tarde, sobre Gāni... Meu Deus, tudo isso me faz sentir tão culpada por ter te direcionado até ele naquele dia. Por nunca ter lhe informado antes que no mundo existem pessoas cruéis e que apesar de algumas nos parecerem ovelhas inocentes, são na verdade os lobos maus da história.”

Eu sorrio triste e afasto a mão da minha mãe de mim, apertando a minha na dela com calma antes de dizer sem vacilar:

— Não foi culpa sua, mãe. Não tinha como você saber que o tio sorridente era na verdade um homem sem escrúpulo algum que acredita que garotas de doze anos usando vestidos de verão estão sensualizando para ele. Não pense assim, você não é culpada por Gāni ter tirado a minha honra.

As lágrimas de mamãe brotam novamente em silêncio e como se não pudesse mais suportar a distância, ela vem ao meu encontro e eu aconchego a cabeça no seu peito, seu coração bate frenético dentro dele, boto os braços em volta da sua cintura enquanto os dela envolvem meus ombros e uma de suas mãos segue para os meus cabelos presos em um rabo de cavalo.

— Por mais que tenha sido rompido da pior das formas, a tua honra não deve depender de um hímen querida. Os valores que você tem, os que guarda, todos aqueles que te tornam e te fazem a garota que você é e que ainda é capaz de se tornar, eles sim devem importar para ti agora. O que aconteceu não pode ser mudado infelizmente, porém você pode e vai conseguir seguir em frente. Nós estamos aqui por ti a partir de hoje, Igith. Eu prometo.

Eu torno a chorar mais uma vez, só que desta vez não é de tristeza, é de culpa. Me sinto culpada por deixá-la acreditar que eu posso seguir em frente. Por mais que tente, me esforce, não consigo ver uma saída depois de hoje. Tudo está tão confuso como se uma criancinha tivesse rabiscado coisas desconexas na minha mente.

Meu choro se torna um pouco audível e eu aperto tanto a minha mãe que tenho medo de machucá-la. Ela arfa, e chora silenciosamente também conforme me acalenta e acaricia os meus cabelos num gesto afável.

— Mãe... — sussurro, o tom baixo e abalado. Perco a coragem. Me calo. Mas ela fala, angustiada.

— Sinto tanto por ter passado por isso sozinha minha pequena. Sinto tanto por nunca ter tentado romper essa barreira que havia ente nós antes e conversar sobre tudo quanto uma mãe pode falar com sua filha a ver se te prevenia de todos esses males do mundo. Eu sinto tanto, mas tanto que não sei como me desculpar com você. — Ela inala ar com calma e se afasta, pega o meu rosto com ambas as mãos e continua: — Mas também desejo muito mesmo poder ser a mãe que não fui capaz de ser desde que você era pequena, Igith.

Eu pisco. Uma e duas vezes. Depois, tento sorrir um pouco para ela perante ao seu pedido. Assinto e afirmo:

— Somente aceito se me permitir ser a filha que eu deixei de ser aos doze anos. — Mamãe não se contém, ela se deixa chorar e volta a me abraçar após sussurrar “é claro que permito, querida”, bem baixo, agarrada a mim pelo rosto da noite.

[...]

Estou ainda no meu quarto, é tarde de domingo e eu não fiz praticamente nada a não ser olhar para o teto branco acima de mim. Minha indisposição é tanta que nem forças para ir ter com a minha avó e saber como ela está eu tenho. Mais cedo meu irmão fez o favor de trazer a comida para o meu desjejum e apesar de fome ser a última coisa que eu sinto até ao momento, me obriguei a comer parte da refeição enquanto compartilhava de um silêncio meio esquisito com Ur.

Ele parecia desconfortável, eu vi. E me senti péssima por aquilo. Ur não conseguia disfarçar o quanto toda aquela situação o incomodava e eu estava me sentindo mal também até ele se ajoelhar frente a base da cama e calmo dizer:

— Não vou tratar você diferente por ontem, Igith. Você continua sendo a minha irmã forte, corajosa e impertinente. Aquela que eu adoro importunar. Mas não vou mentir, estou muito passado com tudo isso, muito frustrado e ainda não sei como lidar com essa situação. Eu estava a ponto, um ponto de matar aquele canalha com as minhas próprias mãos se o baba não tivesse me atrapalhado.

Ur estava com as mãos apoiadas próximo de mim, e eu, sentada de pernas cruzadas sobre o meu edredom, parei de comer e tirei a bandeja do colo antes de levar as minhas mãos e com hesitação tocar as deles. Meu irmão fechou os olhos por alguns instantes como se quisesse acreditar naquele contato e tornou a abri-los.

— Não valeria a pena. — Eu disse. Nós apertamos as mãos. Ele me olhou profundamente, continuou sério.

— Quer falar sobre isso? — Fiz que não, abri um sorrisinho e o convidei a sentar do meu lado. Tínhamos passado a manhã juntos e ele soube como tentar me distrair de todo furacão que estava acontecendo dentro de mim por um bom tempo.

Mas aqui, e agora, no silêncio do meu cantinho, olhando para o teto há mais de meia hora eu não consigo fingir que estou conseguindo lidar com isso.

A dor.

Ela cresce em mim a cada vez que me lembro de tudo que aconteceu ontem, no dia anterior, aos meus doze anos... É tão esmagadora que se torna entorpecente e me faz querer desistir de tudo ao passo que me pergunto se algum dia eu quis mesmo lutar por isso... Pela minha vida. Se algum dia eu tive algo a que me agarrar com tanto afinco a ponto de me fazer desejar ficar aqui... Respirando o ar que não estou conseguindo inalar bem.

Droga — eu pragejo baixo. Desviando o olhar dos meus apontadores sobre a minha escrivaninha.

Detesto essa sensação que corre por meu corpo quando estou nervosa. Detesto pensar em lâminas nessas horas. Eu mordo o lábio inferior e procuro pensar em algo diferente, subitamente faço careta quando é em Querin que meus pensamentos me levam.

Faz quase um dia que não o vejo.

Talvez ele tinha ficado tão assustado com tudo que decidiu ir embora. Eu não quero nem imaginar como ele está, em que pensa ou como se sente em relação a isso. Na verdade, eu agradeceria se ele tomasse essa decisão.
Não o culparia nem um pouco, tem todo o direito de se afastar dessa família e dos problemas que a envolvem. Tem todo o direito de se afastar de mim... Principalmente depois da madrugada de sábado.

Eu me sinto envergonhada, tão envergonhada a ponto de me sentar na cama e o nervosismo começar a tomar conta de mim, me levando a roer as minhas unhas incontrolavelmente até que alguém bate a minha porta e meu coração quase não sai pela boca devido ao susto.

Olho para aquela direção e espero que batam novamente. Não acontece. A pessoa parece estar desistindo do que quer que seja e eu, lentamente afasto o edredom para o lado e deslizo da cama de encontro a entrada do quarto.
Suspiro. Olho para os meus pés vestidos em meias coloridas combinando com o pijama longo e largo, de seguida levo a mão a maçaneta e a giro com calma, nervosa.

— Oi.

Eu engulo em seco. O primeiro pensamento que tenho é o de fechar a porta na cara dele, porém não faço isso. Me obrigo a afastar a tensão do corpo, mas a vermelhidão em minhas bochechas não consigo evitar quando sussurro baixo, afastando uma mecha solta do rabo de cavalo para trás da orelha.

— Oi — respondo em uma versão tão vergonhosa da minha própria voz que tenho vontade de enterrar o rosto na terra igual uma avestruz.

Ergo o olhar, meus olhos se arregalam perante a visão que tenho dele: Querin está com os cabelos um pouco cortados, veste uma regata preta e calça moletom por baixo. Ele parece um pouco hesitante quando me encara de volta e coça a nuca.
Ficamos assim por segundos, até eu negar com a cabeça a fim de sair desse transe maluco e abrir passagem para que ele entre mesmo que não saiba o que dizer a seguir.

Sento na minha cama um pouco afastada dele, e sinto que o garoto faria o mesmo. Me daria espaço assim como permitiu que eu tivesse nas últimas vinte e quatro horas.
Eu e ele permanecemos em silêncio pelos próximos minutos, o qual no início parecia tenso, acaba se tornando aconchegante quando somente nossas respirações se ouvem e nós encaramos o teto do quarto — ambos deitados de barriga para cima, os pés batendo contra a base da cama.

— O que veio fazer aqui? — Eu decido perguntar em algum momento, rompendo o silêncio mesmo que de maneira um pouco grosseria.

Sinto seu olhar sobre mim, mas não o encaro.

— Vim saber de você. Sobre como se sente.

Eu rio um pouco, apesar de não ter humor algum para o fazer. Depois, viro o rosto até encontrar olhos escuros me analisando e parecer que eu acabo de ficar meio zonza outra vez. Desvio o olhar até ter coragem de olhar para ele sem ter essas coisas me atrapalhando.

— Estou legal, Querin. Você não devia se preocupar com isso.

— É um pouco tarde para pedir algo assim.

Eu pisco os olhos e o fito curiosa.

— Por quê?

Ele abre um sorrisinho, e apoia a cabeça ao cotovelo. Não responde de imediato, me encara de um jeito tão estranho que me faz sentir aquelas coisas outra vez.

— Nossa, garota boba. — E então dá uma risada contida e torna a encarar o teto, nos colocando em silêncio outra vez.

Eu o analiso ali, deitado na minha cama fitando o teto do meu quarto enquanto pensa em coisas das quais eu nunca terei conhecimento. Fico refletindo também sobre ele, e me perguntando como esse garoto consegue estar aqui comigo. Como ele é capaz de agir tão naturalmente comigo depois de tudo. E de como eu estou conseguindo interagir com ele depois de tudo.

Querin sempre consegue me passar uma sensação de tamanho conforto a ponto de poucas coisas importarem. Quando o conheci eu não esperava que criaria um laço de amizade nessa profundidade com ele de tal modo que o permitiria se deitar na minha cama do meu lado e o encarar me encarar também.

Não esperava que eu fosse querer explodir de vergonha quando seus olhos me disssem mil e uma palavras que sequer sua boca pronunciou para mim em um curto período de tempo.

Não esperava que ele me passasse a sensação de bem-estar em meio ao caos de um minuto para o outro, pois sequer imaginava que pessoas tinham esse poder na vida das outras.

— Ei — ele chama, acenando para me acordar dos meus devaneios. Eu pisco, então assinto para que ele prossiga. — Você tem algum sonho que deseja muito realizar?

Eu semicerro os olhos e comprimo os lábios antes de dar de ombros, olhar para cima e levar as mãos a desenhar círculos preguiçosos na região da minha barriga inconscientemente.

— Quer saber disso por quê?

— Os sonhos das pessoas dizem muito sobre elas. — Sua resposta me faz voltar a encará-lo, eu ergo levemente uma sobrancelha por ele estar tocando na fotografia da minha família sob a minha cabeceira. — Quando foi isso?

— Há uns anos atrás, em um parque aqui da cidade.

— Você sempre teve esse rosto de menina fofa e emburrada, não é? — Indaga ele num tom divertido, tal que rouba uma risadinha de mim e lhe rende um soco leve no ombro.

— É. — O garoto também ri.

— Te dou um tempo para pensar na resposta, ok?

— Como assim?

— Sobre o seu sonho, Igith. — Eu sussurro um “ah” e ele sorri, meio minuto depois não está sorrindo mais quando se volta para mim e torna a apoiar o peso sobre o cotovelo. — Tenho mais uma pergunta.

— A-hã?

— Você já pensou em aprender a lutar, Igith? — Eu franzo o cenho e torço os lábios, mas depois disso, assinto encolhendo os ombros. — O que te impedia?

Ele parece muito sério quando me faz as perguntas, eu fico um pouco desconfortável, mas não me limito em confessar para Querin.

— Não tinha ninguém que me ensinasse. Eu não tenho um emprego como o Ur para pagar uma academia.

— O problema era esse?

Eu faço que sim.

— Ainda está a fim de aprender defesa pessoal?

Torno a fazer que sim meio desconfiada, portanto eu me sento e ele segue os meus passos sem vacilar na expressão.

— Estaria de acordo se... — eu o corto na hora.

— Se você me desse aulas de defesa pessoal?

Agora ele faz que sim e o ar parece se tornar uma mistura de muitas coisas assim como o meu interior.

— Você aceitaria?

As palavras parecem me faltar, e depois de quase quarenta e oito horas sem me sentir eufórica a emoção me percorre as veias com velocidade cortante.

— Sim, sim, sim. Isso seria demais! — Eu falo tão feliz que chego a me sentir envergonhada por isso. Sinto minhas bochechas corarem antes que eu entrelaçe meus dedos sobre o colo e repita mais calma: — Quero dizer, eu seria grata se fizesse isso por mim.

Então, a partir desse dia Querin começa a dar-me aulas básicas de jiu-jitsu no jardim da minha avó pelas manhãs da forma mais paciente possível com a promessa de me apresentar a academia após o começo das férias de novembro.

Ei pessoal, tudo bem por aí? Espero mesmo que sim. Caso não, melhoras!

Então, não quero demorar aqui, somente pedir desculpas pelo atraso na att e informar que estou pensando muito em mudar o dia da reportagem dos capítulos.

Mas pq autora? Por que ando muito ocupada nesses dias e meus estudos tem me ocupado demais. Portanto para não deixar vocês na mão vou arrumar um dia bom para postar certinho.

Gente, um aviso/conselho, levem como melhor entenderem, acho bom que prestem atenção nos acontecimentos deste capítulo e dos quem vem a seguir, tanto como nas atitudes e pensamentos da Igith, pois eles vão influenciar muito para o que vem a seguir.

Bom, como eu disse: não quero me demorar então até breve. Frase final do capítulo está na segunda parte. Não se esqueça de votar e comentar bb. Beijinhos de algodão doce!

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