015: Não arranque minhas asas

Este capítulo contém gatilhos, caso seja sensível a temas como estupro, violência física e crises de pânico, aconselho desde já que não leia.

Estamos na delegacia.

Não estou chorando, nem soluçando, muito menos fungando. Estou apenas olhando para um ponto fixo no chão de porcelanato e acredito que esse é o único motivo pelo qual eu não tenha entrado em colapso até agora. 

Porque estou tremendo muito.

Tento a todo custo afastar as lembranças de tudo o que aconteceu há meia hora atrás quando eu voltava do hospital. Do instante em que ouvi aqueles passos precedidos por vozes me chamando de gatinha, do pânico que senti e que ainda parece me envolver embora me sinta também entorpecida pelo tanto que não consigo assimilar ou então lidar.

Foi horrível quando eu estava tão amedrontada que ligar para alguém parecia tarefa difícil e como uma luz no meio da escuridão me lembrei que poderia mandar uma mensagem de urgência para Querin assim como fiz no dia em que encurralamos Agah. Foi insuportável o momento que me colocaram contra a parede e tentaram sentir meu cheiro. Foi detestável que eu não fui capaz de lutar sozinha contra dois caras no meio de uma estrada deserta e juro que cheguei a pensar no pior até que Querin e Ur tivessem aparecido e acabado com aqueles caras.

Tudo parece um borrão ao mesmo tempo que me vem tão nítido o carmesim nos punhos do meu irmão fora de controle esmurrando os meus agressores, de Querin me abraçando após ter chamado a polícia e tentando me manter calma. 
“Eu acabava de sair da universidade e tinha ido buscar Ur na academia” me lembro de tê-lo ouvido dizer em algum momento quando estávamos a caminho da delegacia.

Um soluço rompe minha garganta e parece que eu não tenho ar nos pulmões de tanta pressão que eles exercem a fim de executar o processo de respiração. Não dá certo. Mesmo sem querer estou balançando o corpo ligeiramente para frente e para trás, as mãos pressionadas contra o banco de madeira desconfortável, as unhas quase quebrando pela força que aplico ali.

Eu sei que estou tentando apenas segurar essa linha que me impede de surtar. Estou me esforçando muito para não gritar, chorar e berrar. 
Mas não consigo evitar sentir tudo em mim arder pessimamente.

Vem aqui, Igith.

Essa frase ecoa em minha mente, outro soluço machuca minha garganta e meus braços agora abraçam meu corpo como se pudessem me proteger, mas tão rápido eu me solto porque sinto repulsa de mim mesma. Do que me aconteceu. Do que iria me acontecer de novo se eles não tivessem chegado a tempo.

“Igith” 

Alguém parece chamar, eu não ligo de primeira. Estou tão destemida em segurar a linha que tenho medo de soltá-la caso perca o foco.

“Igith” Ouço outra vez e soluço, olhos úmidos já querendo transbordar. Mais uma vez “Igith”, num tom suplicante me faz virar um pouco o rosto apavorado e dar de cara com o meu irmão tão quebrado por me ver assim ao lado do amigo que eu não tenho coragem de encarar diretamente.

Então torno a olhar para baixo, lágrimas ainda contidas no rosto. Meu peito aquece como o inferno e é como se tudo fosse entorpecente demais para que eu reaja.

Um deles se agacha perto de mim, o perfume é do meu irmão, eu acho. Não consigo processar bem as informações quando braços fortes me envolvem e eu quero gritar “não me toque”, e inutilmente palavra alguma sai da minha boca. 

Não consigo respirar, a temperatura do meu corpo parece subir a cada segundo. Estou suando frio, quero um banho e um agasalho.

“Não podemos levá-la para casa assim.”

É a voz de Ur, está trêmula como nunca antes ouvi. Parece apavorado. Eu também estou e só queria que ele me soltasse, que me abraçasse e me fizesse sentir bem. 

“Miran está de viagem, podemos passar a noite lá.” Dessa vez o amigo do meu irmão fala, sua voz é tão baixa que quase se mistura aos meus pensamentos barulhentos. Não estou olhando para ninguém, meu foco ainda é o chão. Só tenho que aguentar, suportar. Você consegue. Você consegue Igith, você é forte.

Você é uma menina forte, Igith. E muito linda.” Seus dedos fazem círculos desconfortáveis em torno do meu ombro nú, descem um pouco e deslizam pela clavícula. Eu me afasto um passo, ele se aproxima noutro.

E eu empurro Ur com todas as minhas forças e me encolho ainda mais, por mais incrível que pareça não choro. As lágrimas se mantém contidas nos olhos que aperto quando soluço e escuto de longe: “ela deve estar assustada, não a pressione.” E depois disso não ouço mais nada deles até sentir lábios suaves beijarem minha testa com calma e preceder as palavras: “Você vai ficar bem Igith... Você vai ficar bem minha irmãzinha.”

Mas eu não fico.

Pareço uma boneca de pano manipulável quando  um deles me guia até o carro. Estou muito trêmula e frágil e entorpecida o suficiente para não saber aonde estamos indo. Eu busco manter o foco olhando somente para minhas mãos e firme continuo segurando a linha que me mantém estável durante o trajeto todo. Perco a noção do tempo e não faço ideia de quantos minutos ou horas levamos até sentir o veículo frear e é a partir desse momento que tudo piora. Que tudo sai do controle. 

Eu saio do controle e berro muito nos braços de Querin no instante em que ele me tira do carro e me pega no colo. Eu choro, me debato, o arranho sem piedade para me defender de alguém que não é ele. E esse se torna o primeiro surto que tenho durante a noite.

Esse se torna o surto mais fraco que tenho antes de apagar com braços firmes me apertando contra o peitoral largo para que eu não me machuque também.

[...]

Acordo e estou deitada em uma cama que não é a minha. Mas é confortável e cheirosa, os lençóis são brancos. Esse quarto não é o meu, os tons de cinza não combinam comigo, gosto mais de azul como Bursüm. 

Eu viro a cabeça para o lado, ela dói e o pescoço também. Sinto o corpo pesado e fraco, tudo em simultâneo. Quando olho para o outro lado meu peito aperta, as lembranças vem, uma lágrima quente provoca ardência na trilha que percorre até encontrar o travesseiro.

Querin está sentado em uma poltrona num canto desse quarto que não sei a quem pertence. Sua concentração vidrada no livro em suas mãos até que suas íris escuras e inexpressivas encontram as minhas apavoradas.

A luta de mais cedo.... Querin está um pouco machucado. Um corte na parte superior da sobrancelha esquerda e alguns hematomas leves no rosto. O lábio. O lábio também tem um corte ligeiro e os dedos estão enfaixados. Tudo por minha culpa.

Quando ele se apercebe da forma de como o analiso, ele pega no agasalho suspenso no braço do sofá e veste-o com urgência antes de vir até mim, mas ainda assim manter uma distância considerável entre nós.

— Você acordou — parece aliviado quando afirma. Eu, em contrapartida, olho para o teto e espremo os lábios, sendo esmagada pela culpa.

— V-você — começo a dizer, minha voz áspera. A garganta seca. Suspiro e o encaro. — Você está ferido.

Ele nega com a cabeça e serve um copo de água para mim na mesinha de cabeceira.

— Não se preocupe com isso. — Ele pede, paciente, depois faz um gesto com a mão apontando para a cama. — Você consegue sentar? 

Eu não respondo, somente tento com dificuldade fazer isso. Estou fraca, tão leve e tão pesada e tão trêmula.
Querin me passa o copo de água e eu bebo sem pressa, o medo de ficar enjoada me envolve, aquela sensação antiga me acomete.

— Onde está Ur? — indago após minutos de silêncio antes de entregar-lhe o material de vidro e sentir que ainda não estou bem.

— Teu irmão teve de voltar para casa, achamos melhor deixar você distante por hoje pelo seu bem. Amanhã nos explicaremos com os seus pais. 

Eu sussurro um obrigada, porém ele não diz nada por alguns instantes como se ponderasse as palavras que diz a seguir:

— Vou preparar a água para o teu banho, tudo bem? — eu arregalo os olhos e nego com a cabeça com urgência.

— Não me deixe sozinha, por favor... Me deixe te acompanhar.

O garoto franziu a testa por segundos, comprimiu os lábios como se conciliasse o meu pedido e depois, assentiu em silêncio. Não posso mentir, me senti muito envergonhada com o cuidado que ele teve em me tirar da cama. Parecia que Querin estava com medo de me machucar quando pegou em minhas mãos e seus olhos não se desviaram dos meus até que eu encarasse qualquer outra coisa que não fosse ele.

Perdi um tênis na rua. Descobri isso porque tive de usar emprestados os chinelos do amigo deles, que por acaso deixou que ficássemos no apartamento dele por hoje. Isso me envergonha até agora que encolho os ombros sentada na borda direita da banheira e observo Querin do outro lado enchê-la com água na temperatura certa. 

Ninguém preparou um banho para mim naquele dia. — O pensamento me ocorre como faísca capaz de queimar o peito e provocar um soluço cortante. Lembro de como quis que nossa casa tivesse uma piscina para que jogasse nela embora não soubesse nadar. Eu não queria nadar... Queria desaparecer.

O mesmo sentimento está surgindo agora. Quero desaparecer tanto que tudo que me impede são os braços que tornam a me envolver hesitantes e cautelosos. Eu soluço novamente quando a mão lenta evita se movimentar muito nos meus cabelos, somente me aproxima do seu peito no silêncio e me permito chorar ali, me esforçando muito para separar o toque dele dos toques dele.

Querin é muito paciente em me acalmar, ele não diz uma só palavra porque qualquer coisa que diria, não faria eu me sentir melhor tal como seu silêncio foi capaz de me fazer sentir.
Eu não o encarei quando nos afastamos. Não disse uma palavra no instante em que ele se afastou e me permitiu ficar no banho onde eu chorei mais um pouco.
Mas minutos depois o garoto me trouxe uma muda de roupas, bermuda e uma camiseta longa demais para mim, das quais me vesti antes de voltar ao quarto e me sentar na cama à sua espera.

Ele tinha ido preparar comida para mim.

— Fiz uma sopa — ele diz sentando do meu lado com uma bandeja de madeira nas mãos. Uma taça de sopa e pão fatiado de lado. — Minha mãe sempre fazia para mim quando eu não me sentia bem. 

Tento sorrir, mas parece mais uma careta de dor.

— Obrigada, o cheiro está incrível — e é verdade, porém eu não sinto fome, meu estômago parece se enrolar a cada segundo que passa. Suspiro e abaixo a cabeça. — Mas eu não sei se consigo, não sinto fome alguma, Querin. Estou mais enjoada que faminta.

— Ei, você precisa comer um pouco. Duvido que tenha se alimentado direito durante o dia.

E ele tinha razão. Eu não tinha comido quase nada desde que saí de casa. Eu não tinha ingerido nada senão água durante o dia todo. Me neguei a comer na casa de Hazal, iria jantar com a minha família caso não tivesse acontecido o incidente de mais cedo. E mesmo assim não sentia fome.
Pedi que ele me trouxesse uma sacola para vomitar, pois sabia que tensa a comida sempre tendia a fazer o caminho de voltar.

E foi exatamente isso que aconteceu até que a sopa acabou.

Eu me deitei de estômago vazio e vi preocupação nos olhos dele quando me cobriu com a manta antes de apagar as luzes e se acomodar novamente naquela poltrona cinza escorada na parede.

[...]

Nunca entrei no quarto dele antes, é a primeira vez que ele me leva a conhecer o espaço. Não gosto da sensação porque estou me sentindo desconfortável demais em estar aqui.

Sobrinhos deviam se sentir assim em relação aos seus tios? Minha amiga se sente assim em relação a ele? Eu não sei dizer. Estou concentrada demais nos lençóis verdes que cobrem sua cama, ela é consideravelmente grande e penso não ter visto uma assim antes.

Eu dou um pulo de susto, ele acaba de entrar no quarto. Quando me volto para ele, está sorrindo para mim, mas não sei por quê hoje esse sorriso não me faz sorrir também. Eu deveria voltar para casa. É o meu primeiro pensamento ao vê-lo se aproximar e surrurar que me acha forte e linda antes de se dirigir a cama e se sentar lá.

— Igith, vem aqui — seu chamado me faz estremecer de um jeito nada bom. Eu mordo o interior da bochecha e me aproximo devagar. — Sabe que eu gosto muito de você, não? — Eu assinto, mesmo incerta. — E por eu gostar tanto de você quero te ensinar uma coisa, está de acordo? 

Não! É o primeiro pensamento consciente que se forma em minha mente. Não. Se repete mais uma e duas vezes. Eu não estou de acordo, nunca estive. Lágrimas ardentes molham minhas têmporas as memórias que surgem após aquela fala. E eu começo a me debater, e a gritar e a chorar porque é como se as mãos daquele homem estivessem em mim. Eu as sinto tão vívidas que sinto repulsa de tudo que acontece, sinto repulsa de mim e sou incapaz de me conter. 

Meu coração acelera tanto que parece estar prestes a parar, não consigo puxar ar de encontro aos pulmões e meu corpo arde perante as ondas de calor que parecem me percorrer.

— Não! — Eu berro. — Não quero mais! Me deixe em paz! Saia daqui, por favor tira isso de mim!

Meus olhos permanecem apertados e mesmo assim sinto as lágrimas escorrerem lentamente conforme meus bruscos movimentos começam a ser acalmados com uma força maior que a minha.
Mas eu ainda estou agitada, ainda sinto o corpo quente, a pele dele na minha, a respiração no meu pescoço, aquela coisa dentro de mim....

— Não toque em mim! — eu grito e me debato e minhas unhas encontram algo em que se afundar. — Eu não quero isso. Essa brincadeira magoa.

“Ei Igith, eu estou aqui com você, não precisa ter medo. Você vai ficar melhor.” Quem tentava me acalmar fala baixinho, me apertando ainda mais contra si. 

Nada vai passar, meu coração não me dá descanso, as lágrimas não cessam. Cada segundo daquele dia ainda vive em mim.

— Ele quebrou as minhas asas — e uma fungada interrompe minha fala nasalada. — Me destruiu, disse que seria divertido estar com ele, que seria uma brincadeira para guardar entre nós, ele mentiu e acabou com minha infância.

Minhas palavras saem intercaladas ao choro, e macunham minha garganta porque está muito difícil falar. A tremedeira não baixa, muito menos a dor que sinto me acometer. Eu me seguro firme nos braços de Querin e não consigo separar a fantasia da realidade. Tudo se mistura numa frequência que eu não consigo acompanhar. Numa frequência que parece acabar comigo.

— Respire devagar, Igith — sua voz é calma quando o seu peito sobe e desce no mesmo fluxo. — Ele não está mais aqui, Igith. Então respira.

O ar ainda parece muito pesado, difícil de ser tragado. Mas eu consigo fazer isso lentamente quando Querin me pede para respirar com calma e faz isso junto comigo e depois diz:

— Isso, continue — o garoto começa a me afastar de si, mãos firmes em meus ombros. — Olhe para mim, Igith. Quero que olhe para mim e inspire  mais uma vez.

Eu faço no automático, ergo a cabeça, a tremedeira cedendo a cada segundo e o peito relaxando a medida que vejo Querin fazer o exercício de respiração também.

— Ótimo. Agora me dê a sua mão, Igith — ele estende as mãos e espera a minha atitude. Meu corpo ainda recebe ondas de calafrios, menos intensos agora, porém a mão treme quando a coloco sobre as dele. Querin aperta nossas mãos e abre um pequeno sorriso para mim mesmo que dessa vez não esteja conseguindo disfarçar a dor que minhas palavras lhe causam. — Eu estou aqui, isso vai passar. As outras passaram, não é mesmo?

Eu fungo uma vez e depois outra, então assinto apertando minhas mãos em torno das dele quando um espasmo me atravessa.

— Isso vai passar — sussuro e, em meio a escuridão da madrugada o olho nos olhos escuros tão cheios de alguma coisa que faz lágrimas voltarem a crescer nos meus. — Mas quando eu lembrar dele e de como está gravado nos meus pensamentos me dizendo que todos os tios fazem aquilo com as sobrinhas, minhas lágrimas vão tornar a cair e o pânico vai me consumir. Pois ele está em mim, Querin, está em mim quando eu me dispo, quando olho para mim e quando deito para dormir. Infernalmente ele me marcou para todo sempre e isso me dói. Dói porque isso faz parte de cada pedaço de mim e não tem como mudar. 

Querin aperta nossas mãos, joga ligeiramente a cabeça para trás e o ouço praguejar uma maldição antes de tornar a me encarar, os olhos tão brilhantes e profundos e apavorados quando me aproxima dele e me abraça outra vez dizendo que sente muito e molha a minha blusa mesmo que silenciosamente, tomando para si mesmo parte da minha dor.

Quando quebrarem tuas asas
você vai pensar em desistir
Quando tornarem a te machucar
você vai se deixar cair
Quando a guerreira que há em ti fraquejar
a derrota tu vais acreditar estar a se dirigir
Mas quando você se recobrar da queda, das tuas dores a melhor versão de ti irá surgir

Dinazarda

💫Não desista de lutar💫

Oi pessoal, vocês estão bem? Eu espero que sim!

Então gente, o que falar sobre esse capítulo... Eu modifiquei-o muito desde a primeira versão. A essência do capítulo é exatamente a mesma que eu tentei transmitir no início da obra, pois o capítulo quinze tem um grande impacto nas próximas decisões que a Igith irá tomar, sejam elas boas ou ruins.

Agora vocês têm a confirmação do que aconteceu com a Igith naquele dia e possivelmente já têm noção de quem foi a pessoa que causou esse trauma nela.

Eu tenho um péssimo problema com descrições, tanto de espaço como de ações e sentimentos dos personagens, portanto não faço ideia se consegui passar bem o estado de pânico e ansiedade no qual Igith se encontrou durante o capítulo e muito menos sei se ficou bom o suficiente o modo como Querin tentou ajudá-la a se acalmar.

Me digam o que acharam e se pegaram dicas para o momento que vai ocorrer no próximo capítulo.

Beijinhos pra você e obrigada por me acompanhar até aqui!

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