013: Um momento de felicidade

Nunca, jamais, fui tão feliz em minha vida quanto no dia que se seguiu a minha conversa com os meus familiares. Tinha tido a noite mais tranquila que já tive em tempos, sem pesadelos angustiantes ou lágrimas silenciosas no meio da madrugada. Eu dormi feito uma pedra. Mas uma pedra muito tranquila.

Pela manhã todos estávamos reunidos em volta da mesa sem aquela tensão desconfortável habitual nos envolvendo, de fato foi maravilhoso poder sorrir para eles e ouvir com vontade sobre as novidades que papai trazia a cerca da sua promoção na empresa tanto como sobre a cerimônia de formatura de Ur dentro de três semanas.

Vovó Yame fez falta. Muita mesmo. E estávamos ansiosos por visitá-la e saber como estava, mas também tinha um ponto que faltava a ser resolvido.

Bursüm.

Foi muito complicado ter um diálogo com ela. Assim como cada um de nós a caçula estava magoada com a nossa situação. Bursinha não queria abrir a porta a ninguém, o medo de que tudo voltasse a ser como antes era grande, portanto Querin ter se disposto a ter uma conversa com ela minutos depois foi algo importante para nós, porque de fato teve efeitos que levaram a mais nova a aceitar ver a nossa mãe, minutos depois, a família toda.
Elas tinha conversado. Não sabemos como foi o início, mas o final... ah, sim. Mamãe e Bursinha limpavam suas lágrimas quando nós batemos a porta e entramos também.

Nos reconciliamos e ali eu descobri que nenhum deles deixou de fazer visitas a minha irmã. Nem um dia sequer.
Sou eu quem moldava ideias fixas sobre quem eles eram e faziam somente com o que tinha em mãos e entendi o quão hipócrita somos capazes de ser quando julgamos as pessoas sem conhecê-las e detestamos que nos julguem.

Assim como aquele momento nos fez entender que, apesar de começarmos a resolver nossas pendências, certas coisas não melhoravam de um segundo para o outro, pois todos desejávamos ter Bursüm ao nosso lado quando chegamos ao hospital e a minha sugestão de levá-la ao colo e verdar-lhe os olhos embora parecesse eficaz, a sua resposta foi clara e suficiente para nos por a par de como ela poderia se sentir quando emendou, a voz transpassada de um fiapo de tristeza: “Uma venda não é suficiente para acabar com o sentimento que tenho de estar lá fora, Igith. Entenda.”

E então Querin se dispos a ficar junto com ela em casa quando nos despedimos, mas foi expulso no minuto seguinte com a justificativa de que ela era capaz de esperar por nós sim e que mandassêmos  lembranças a nossa avó.
Não conversamos muito durante o trajeto de ida, mas minha nossa, foi muito bom o pouco que falamos. Meus pais ali na frente pareciam tão próximos um do outro... tão bem resolvidos que meu coração se encheu de alguma coisa que até ao momento não sei dizer o quê.

Mas eu estava feliz, muito mesmo. Queria que vovó Yame visse a nossa família sendo uma família de verdade. Que se orgulhase de mim e deles também. E bom, foi um pouco difícil convencer o doutor a permitir a entrada de todos nós de uma vez só apesar de eu ter sido a primeira a ver minha avó deitada naquela cama com o olhar fixo num ponto qualquer da janela com as cortinas abertas.

Vovó Yame estava um pouco pálida, coberta até a barriga com os lençóis brancos do hospital e excepcionalmente calma, talvez pelos cateteres que lhe passavam sangue e soro na mão direita desta vez.
Quando eu abri mais a porta ela virou com um pouco de dificuldade a cabeça, mas não parecia ruim, pelo contrário, parecia melhor do que a última vez que aqui estivera.

“Evitem muito contato” Disse o profissional antes que nos cedesse a entrada.

Eu respeitei isso, portanto apenas peguei na sua mão livre de agulha e encostei na testa pedindo a sua benção.
Minha avó abriu um pequeno sorriso para mim, mas olhava por cima do meu ombro antes de me encarar de fato, interrogativa.

— Onde estão os outros, Igith?

Eu não respondo de primeira, antes olho por cima do ombro também e observo a porta ser empurrada com delicadeza para dentro, revelando expressões suaves e felizes de cada um que entrava no quarto âmplo. Sorrio com o leve aperto da mão da minha avó na minha e posso apostar que ela está entendendo tudo, vovó Yame é boa em compreender as coisas, muito diferente de mim.

Quando volto a olhá-la, ela está me perguntando “finalmente?” apenas com o olhar, o que faz o meu sorriso se alargar ainda mais em resposta.

— Meu Deus, finalmente tomaram vergonha na cara e decidiram se acertar? É que estou sentindo um cheirinho de harmonia emanando de vocês!

A voz dela está um pouco rouca, mas não impediu que déssemos leves risadas antes que eu confirme sem deixar de sorrir.

— É o que parece, e foi tudo graças a ele — aponto com o polegar na direção de Querin recostado na parede ao lado da janela, depois me volto um pouco para ele e tem a sombra de um leve sorriso desenhada nos lábios dele. — E te garanto que o gosto não é de todo ruim.

— Minha nossa, só podia ser! — Vovó sibila sorrindo aberto para o dito cujo. — Do jeito que vocês são orgulhos, duvido que alguém daria o primeiro passo sem um empurrãozinho. E eu agradeço por isso, Querin.

Querin parece ficar um pouco sem jeito com elogios ou coisa assim. O que eu considero um pouco engraçado, pois o que esse cara aparenta o tempo todo é segurança e autoconfiança.
Mas ele consegue dar um sorriso mais visível dessa vez para a mais velha.
A qual passa a contar como se sente nos minutos seguintes, conversa com Ur, depois com os meus pais e por fim volta a dialogar comigo a cerca da nossa reconciliação e eu falo tudo com tanta emoção que vovó também se emociona e suspira, alegre.

— Eu esperei tanto por esse dia. Ah sim, Deus sabe como eu esperei. Agora eu só morro em paz quando ver a minha pequena se recuperar da fobia.

— Nossa, vovó..., para com isso. — Ur repreende do outro lado da sala onde conversa com seu amigo sobre algo que eles vêem lá pela janela.

— Está bem, querido. Não vamos estragar o momento. Mas agora me digam: como ela está.

— Bursinha está bém. Ela só... ainda não está preparada para ver a luz do dia fora de casa.

Vovó assente, parecendo pensativa, depois ela volta a sorrir como se uma luz tivesse iluminado sua mente.

— Oras, agora que nós estamos bem vamos fazer de tudo para tê-la bem também, certo? — É com certeza o desejo de todos nós quando concordamos com ela. — Mais uma coisa, confinada nesta sala não sou capaz de cuidar das minhas plantas, o que não me agrada muito porque elas são capazes de morrer durante essa véspera.

— Não devia pensar nisso agora, mãe. Aproveite esses dias para descansar de verdade.

— E mais, eu estarei aqui para fazê-la companhia sempre que voltar da escola. — Eu concluo a sentença da minha mãe. — Assim...

Eu me volto para a porta da sala quando sou interrompida com a entrada de uma enfermeira antes super sorridente até constatar o quanto o quarto está cheio. As bochechas da jovem de aparentes vinte e dois anos assumem um leve tom rubro conforme ela se aproxima apertando a prancheta contra o peito.

— Ai, me desculpem... Eu vim apenas... hum... verificar como está a nossa paciente. — A coitada é tão tímida que baixa a cabeça quando Ur lhe lança aquele olhar presunçoso que eu tanto desprezo às vezes.

— Tudo certo, é preciso que nos retiremos? — Meu pai que até então permanecia quieto do lado da mãe, se importa em perguntar.

A enfermeira faz que não e dá um sorriso tímido para vovó Yame.

— Não. Não é necessário, serei rápida.

Nos afastamos de vovó Yame a fim de deixar a jovem fazer o seu trabalho mais a vontade e eu me atrevo a me aproximar dos garotos de tanto que eles parecem se divertir.
Você deve tentar socializar — eu me encorajei.

— Oi, vocês. Do que falam?

— Oi, Igith. — É Querin quem fala primeiro.

Eu desvio o olhar para baixo e depois o encaro de volta. Ele não está sorrindo agora, mas também não parece chateado. Nós ficamos nos encarando assim por segundos ou até um minuto, não faço ideia, porém, em algum momento um sorrisinho cresce nos meus lábios até as costas de alguém estarem atrapalhando o meu contato visualizal com ele. As costas de Ur.

Meu Deus!

— Ei, ei, ei... Sério que vocês vão flertar aqui na minha frente, Querin? A Igith ainda é a minha irmã, está bom?

Eu reviro os olhos e o empurro para o lado pela cintura. Só que não me atrevo a olhar para Querin outra vez, muito menos para o meu irmão, minhas bochechas parecem que vão derreter de tanto que estão a aquecer.

— Nossa, não fale besteira, Ur. Eu só queria conversar com vocês. Mas parece que não sou tão bem-vinda.

— Céus, você é muito dramática maninha — meu irmão envolve sua mão no meu pulso quando eu dou meia volta para me afastar, e eu me solto tão bruscamente que me arrependo de ter reagido tão mal assim a ponto de me sentir envergonhada. É só ele. É só Ur, teu irmão — Não vai embora, Igith. Eu só estava brincando... Quase... Estou de olho nele, apenas.

Ur está sorrindo para mim, a mão agora estendida para que eu a toque enquanto meus olhos estão vidrados onde ele me tocou antes que eu eleve os olhos e o encare, meio brava, meio divertida. Depois aperto a mão estendida para mim e meu irmão me puxa para mais perto dele.

— Você torna as coisas estranhas Ur. — Eu reclamo, olhando de relance para Querin que me encara analítico antes de se defender.

— O que foi que eu fiz, Ur?

— Não se faça de inocente. — meu irmão rebate, a voz suave. — Você é um garoto e eu também.

Eu rio e estou olhando para o acusado apertando seus olhos como se se sentisse ofendido e minha nossa, eu não devia ficar pensando no quão fofo ele parece quando faz isso.

— Para com isso, Ur. Eu vou te bater se não parar.  — Ur dá uma risada abafada junto ao seu amigo e nesse momento eu me sinto tão inclusa perto deles que não me importo que o meu irmão está com o braço em volta do meu ombro.

— Pronto! Está tudo certo por aqui. — Confirma a enfermeira se dirigindo até à porta, contudo, antes de sair ela se vira para nós e sorri. — Senhora Yamenet, a senhora tem sorte de ter uma família linda dessas. Não são todos que tem a oportunidade de estar com os seus familiares em momentos como esse.

Quando nos entreolhamos, quase damos uma risada coletiva. É incrível que algumas coisas podem mudar de um dia para o outro.

— Eu sou uma velha abençoada, querida. Sem sombra de dúvidas eu sou.

— Isso é notável e admirável. Mas agora tenho de ir, fiquem a vontade.

Entretanto, no minuto seguinte a sala fica muito silenciosa quando vovó Yame volta a falar a cerca das suas plantas e faz a pergunta que cada um tentava evitar: quem irá cuidar delas?
A questão nos faz ficar quietíssimos e eu sei bem o porquê, ninguém está com vontade ou terá paciência de cuidar daquelas plantas tal como a vovó faz. Eu em particular, para além de ser esquecida não tenho paciência nenhuma para fazer jardinagem apesar de ser divertido.

Então, quando minha avó já começava a manear a cabeça negativamente, a nossa salvação aconteceu quando Querin abriu a boca com tamanho desconforto que surgiu com o silêncio.

— Se não for um problema, eu faço pela senhora.

E acho que eu ouvi um “amém” dito bem baixo por alguém a ponto de me fazer encher as bochechas de ar e quase soltar uma gargalhada estrondosa.
Nós somos péssimos. Sério.

— Finalmente alguém de bom coração. Quando vocês entenderem o quão bom é cuidar de plantas, se arrependerão de ter perdido essa oportunidade. — Vovó pontua com um quê de diversão na fala. Mas ninguém está arrependido. Ao menos eu não. — E muito obrigada Querin, faça delas, suas também.

— Será um prazer, senhora Yame.

Descobri que Ur é uma cópia masculina da minha avó nas duas horas seguintes que passamos com ela. Ele consegue ser muito insuportável — não que vovó seja, mas notei isso logo de início nele — e tem um senso de humor tão bom quanto o dela.
Quase para as três da tarde tivemos de voltar para casa e atualizar Bursinha sobre a nossa avó após termos decidido que hoje teríamos pizza em família no jantar.

Bursinha estava de joelhos em cima de um puff encostado à janela da sala quando chegamos em casa. Minha irmã sorriu para nós, passando o cabelo que atrapalhava sua visão para trás da orelha e caminhou em nossa direção, ansiosa.

— E então... como foi e como a vovó está?

Caminho até ela e beijo sua bochecha carinhosamente, em contrapartida Bursüm resmunga, mas não me afasta dela.

— Nossa avó está bem. Ela também sente muita saudade de você.

— Ah, que alívio! Eu espero que ela volte logo. — Na verdade, é tudo o que nós todos esperamos.

Eu vejo os meus pais se dirigirem a cozinha enquanto Ur segue à porta dos fundos e logo após chama Bursinha para junto dele. Não sei se ele tem noção que ao fazer isso está me deixando sozinha na sala. Portanto, minha temperatura parece subir muito quando tomo ciência não só disso, como também de que Querin está descendo as escadas agora e vindo em minha direção.
Não exatamente em minha direção, porém eu estou muito perto do primeiro degrau e agora de frente para ele.

— Oi — diz ele, um dos cantos da boca se repuxando num sorriso sutil.

Eu baixo a cabeça, mordo o lábio inferior e meio que abraço minha barriga enfiando as mãos dentro do meu agasalho aberto na parte de frente.
Minhas bochechas parecem que vão explodir e sei lá, nunca me senti tão patética quanto agora.

— Olá — devolvo e volto a encontrar os olhos escuros me encarando com algo que eu não sei dizer o que é, mas é muito intenso e me deixa confusa.

— Como se sente hoje?

— Bem, estou melhor do que ontem e, eu tenho de dizer obrigada por isso. Por ter me ajudado embora eu não merecesse. — Suspiro e continuo. — E também quero voltar a pedir desculpas. Às vezes eu ajo feito uma criança tola, eu sei. E peço perdão por isso, por ter me alterado.

Eu aperto os olhos e tento conter minhas lágrimas. Não sei por qual motivo eu quero chorar, mas as lágrimas parecem querer brotar com tudo e não estou me permitindo fazer isso. Não na frente dele.
Já é suficiente ter quebrado meu orgulho aqui, me confessando e desculpando. Chorar seria demais.

— Não fale coisas assim de si mesma, Igith. — Eu torno a abrir os olhos e ele não está mais sorrindo, as feições assumiram algo diferente, mais doce. — Todo mundo erra e apesar de você agir da única forma que se permitiu até agora, acredito que ainda tem oportunidade de crescer mais nas atitudes.

Quando ele toca a ponta do meu nariz, eu não sei, sinto algo tão estranho e tão bom brotar dentro do meu peito que não quero mais chorar... Eu tenho vontade de sorrir, mas ao invés disso me sinto corar bruscamente ao vê-lo sorrir para mim e me convidar a seguir os meus irmãos no jardim.

[...]

Eram quase seis da tarde quando depois de um banho eu me permiti refletir sobre a sociedade que tanto me deixa revoltada, sobre a minha família e principalmente sobre mim.

Descobri há pouco menos de um ano que eu tenho um grande problema que nunca quis considerar um problema até ontem.
Desteto ser julgada pelas pessoas como detesto ainda mais que elas digam o que não sabem com relação a mim. Porém, de forma hipócrita sempre fui a primeira a fazer isso com elas.

Eu as rolutava e ninguém podia me dizer o contrário, pois desde o dia que comecei a ver o mundo como ele é, a cada passar de tempo eu distorcia mais e mais as coisas. Tudo bem, o vida não é um mar de rosas de fato, mas ainda existem coisas das quis se podem apreciar. E eu só não queria ver. Eu só fui impedida de ver.

Assim como pessoas... Ainda existem pessoas que vale a pena conhecer e não posso mentir que admitir isso seja como levar um tapa por todas as vezes que declarei o quão horrível todo mundo é. Eu conheci gente horrível e rotulei os restantes do mesmo modo, conheci gente que quis se aproximar, e não permiti que tal acontecesse, pois ao meu ver elas também pertenciam ao mesmo e único grupo que criei para a sociedade.

Entretanto as últimas 48h me serviram como lição para por fim compreender que é sempre bom olhar qualquer situação por mais de um ponto de vista.
Querin me fez ter ciência disso quando podia ter se afastado de mim após o dia que fui má com ele e ao invés disso decidiu me dar uma segunda chance de ser melhor.

“Às vezes algumas pessoas somente precisam de uma segunda chance para mostrarem o melhor de si.”

Essa frase me fez repensar sobre como eu vivia com a minha família. Aquele garoto insistente me fez repensar sobre a amargura que eu deixei se acumular por tanto tempo. Portanto foi graças a ele que eu decidi deixar de lado o meu orgulho e tentar entender eles e dar a segunda oportunidade que eles precisavam para se explicar para mim, como também me dei a chance de ver a vida por outras persprectivas.

E confesso que, de todas as decisões que tomei desde os meus doze anos, essa foi a melhor de todas elas. Para além de ter me reaproximando dos meus pais e irmão, me fez descobrir um amigo em um garoto! Condição que eu presumia jamais acontecer comigo, mas como eu disse, é tudo questão de perspectiva, de quebrar certas barreiras impostas por situação passada e principalmente de tempo.

Eu somente precisava de tempo e de alguém que estivesse disposto a me fazer ver o que a minha dor não me permitia enxergar.
As pessoas não são aquele homem.
E embora ainda é muito difícil viver a base desses novos pensamentos, estou me permitindo desfrutar da paz que sinto neste momento. Sentada na grama do jardim de olhos fechados apreciando a carícia da brisa leve da noite sobre minhas bochechas e meus dedos deslizando com suavidade pela terra.

— Você parece bastante reflexiva hoje. — Querin fala comigo pela primeira vez desde que ambos compartilhamos o jardim num silêncio auto-imposto que ele acaba de romper após minutos que o mesmo somente apreciava as estrelas e eu os meus próprios pensamentos.

Eu abro os meus olhos e me volto um pouco para ele, o encarando me encarar de volta.

— Meio que você é a causa disso — minha nossa, eu quero me enterrar na minha própria vergonha agora mesmo. Isso soou tão péssimo! Não era para ter sido assim.
Céus, eu devia ter ficado calada. Mas aí passaria impressão de mal educada, e... Meu Deus, por que estou me importando com isso mesmo?

Querin ergue uma sobrancelha sugestivamente, com toda certeza ele não entende a agitação que sinto por ter escolhido errado as palavras.

— Nossa, não é bem assim, ok? Não é em você que estou pensando, entende? É em suas palavras, não exatamente em tudo que me disse desde que nos conhecemos, e sim em... Nossa, eu desisto — falo e agito as mãos em frente ao corpo a fim de que ele entenda mesmo que não é isso que eu quero dizer. Depois, quando ele me dá um sorrisinho eu não suporto e enterro o rosto entre as pernas cruzadas, muito envergonhada. — Ai, eu sou tão péssima nisso.

Ouço ele emitir um som baixo semelhante a uma risada e tudo que eu quero é que um buraco me sugue nesse instante.
Meu Deus, por que eu não consigo ser normal?

— Fica calma, Igith. Eu entendi o que quis dizer. — Então eu ergo a cabeça aos poucos e o encaro hesitante. Querin ainda sorri para mim, a cabeça pendida para o lado. — Não precisa se explicar.

Eu suspiro e assinto, mas não digo nada sobre isso como também não deixo que o silêncio retorne quando pergunto por curiosidade.

— Por que você gosta de observar as estrelas?

O sorriso no rosto dele vacila por segundos. Querin ergue o olhar para o céu estrelado e parece suspirar quando o seu peito sobe e desce em um movimento lento me fazendo perguntar se essa foi a melhor pergunta que eu poderia fazer agora.
Quando estou com Querin sempre pareço querer saber muitas coisas sobre ele, como por exemplo de onde ele é ou como era sua relação com a família, entretanto me sonda o medo de ser incoveniente em algum momento. Querin parece um garoto reservado e bem resolvido consigo mesmo e isso me faz admirar parte da confiança que ele tem. Ele aparenta não ter medo de nada e às vezes queria ser assim também.

— Elas me lembram da minha irmã  — então, por fim, eu entendo o seu posicionamento a cerca desse assunto. Querin disse uma vez que está conformado com a sua situação, mas o medo que sinto de deixá-lo para baixo ou magoado com as minhas perguntas é estranho até para mim.

— Não precisa falar sobre isso se não quiser... Digo, se isso incomoda você.

Ele nega com a cabeça levemente e depois sustenta o peso do corpo com as mãos pressionadas na grama.

— Não me incomodo de falar sobre isso com você — pontua ele e parece que sua voz provoca algo que eu não sei dizer o que é dentro do meu estômago, mas eu sorrio um pouco e encolho os ombros antes que ele prossiga tranquilamente. — Quando eu era mais novo Yansel me apresentou a astronomia. Aquela era sua paixão e me impressionava como ela descrevia o universo como ninguém. Observar as estrelas era seu passatempo favorito e ela adorava a minha companhia nesses momentos. Por esse motivo acabei afeiçoado a fazer o mesmo desde que ela se foi.

— Então observar as estrelas é o seu passatempo favorito?

— Gosto de observar as estrelas, mas descobri que também gosto de conversar contigo no meu tempo livre.

Eu arregalo os olhos surpresa, e acho que é a quarta vez que minhas bochechas esquentam hoje numa conversa com ele.
Querin dá uma breve risada da minha expressão quando se inclina um pouco na minha direção.

— Meu Deus, você não deve dizer coisas assim para mim. — E maneio a cabeça para ele.

— Você cora com bastante facilidade, garota ruiva. — Diz ele e depois sorri para mim. — O que tem de mal eu falar a verdade. Gosto da tua companhia.

— Nossa, você mesmo disse! — exclamo e baixo a cabeça mordendo levemente o lábio inferior. — Não sei o que dizer quando te ouço falar assim e bom, minhas bochechas reagem por mim.

E elas ardem ainda mais quando Querin aproxima a mão do meu rosto. Eu fico petrificada na hora e sinto que o meu coração vai sair pela boca a qualquer segundo com os dedos esguios afastando os cabelos flamejantes para trás da orelha.
Quando ouso erguer o olhar de encontro ao seu, eu me arrependo, totalmente, porque ele está me encarando com um sorrisinho tão simples e tão bonito que eu pareço que não estou mais respirando.

— Você tem noção do quão lindos os cabelos são?

É uma certeza, eu não estou respirando. Acho até que minha pressão sobe a cada vez que a distância entre nós parece sumir por magia e o meu estômago dá uns nós tão estranhos que eu pareço que vou adoecer.
Eu preciso que Yudis me conte o que é isso porque estou muito preocupada agora e não sei como formar bem as palavras.

— Não está me ajudando... Você. Digo, você não está me ajudando nada com isso.

— Desculpa — ele pede, mas sua mão não deixa de alinhar meus cabelos.

— Urgh! — O garcejo forçado a nossa trás nos faz acordar instantâneamente do transe esquisito no qual estávamos e ambos nos afastamos tão rápido quanto nos levantamos e ficamos diante do meu... Pai?

Aí meu Deus. Aí meu Deus. Aí meu Deus.

Eu não consigo evitar que minhas bochechas denunciem algo do qual eu sequer tenho noção do que era. Mas sinto que estou vermelha de vergonha e o fato de estar limpando minha calça sem coragem de encarar o mais velho já diz muito sobre a minha situação.

— As pizzas chegaram.

— A-hã. — eu murmuro baixo, mas não deixo de olhar para as minhas mãos. — Obrigada por avisar.

— Pode entrar, Igith. As garotas estão lá na cozinha com o teu irmão. — Ele disse “pode entrar, Igith”. E não “podemos entrar”. Meu Deus...

E eu não protesto nem uma vez. Apenas assinto com a cabeça e sigo em frente rezando sabe-se lá por quê, que nada de mais aconteça entre os dois lá fora.
Na cozinha minha mãe está servindo as pizzas em dois pratos diferentes, Bursüm coloca os talheres na mesa e Ur... Bom, ele está somente sendo ele. Sentado numa das cadeiras com a concentração enfiada no celular.

Eu me aproximo e me dou a liberdade de deixar um beijo na bochecha da minha mãe e depois outro na da Bursinha antes de me sentar ao lado do meu irmão e esperar pelos indivíduos que ainda não chegaram.

— Onde estavas, Igith?

— Com o Querin — Bursüm, a intrometida, responde por mim quando por fim está sentada do outro lado da mesa. — A Igith gosta de estar com ele.

— Nossa, e ainda é minha irmã depois disso. — eu ironizo dramaticamente e Bursinha dá leves gargalhadas quando papai e Querin atravessam a porta da cozinha por fim.

[...]

Assim como o momento em que visitamos vovó Yame, o jantar foi de fato um dos melhores momentos que passamos no dia de hoje. Conversamos pouco enquanto comíamos, entretanto o silêncio foi ainda mais aconchegante diga-se de passagem.
De uns tempos para cá Querin passou a ter os seus próprios dias de lavar louça em casa também, mas nem isso o impede de ajudar Ur ou então eu nos nossos dias.

Hoje a louça é minha e como os outros seguiram para sala jogar Rummikub* e assistir TV, eu e Querin permanecemos na cozinha e começamos a fazer a tarefa que seria somente minha.
Não falamos muito durante o processo, porém trocamos alguns olharem que em dado momento nos fazem rir juntos sem que as palavras digam que este instante é apreciável tanto para mim como para ele.

Quando estamos prestes a finalizar eu me volto para ele e pergunto o que ele conversou conversou com o meu pai, depois pendo a cabeça para o lado e paro de lavar um copo, as mãos dentro da cuba cheia de espuma. Querin também para de passar água limpa nos copos, ele olha para mim muito tranquilo antes de dar de ombros e voltar sua atenção a louça.

— Você é curiosa, ein.

— Não sou — rebato e dou de ombros também. — Só acho que tenho direito de saber, sei lá.

O garoto se volta para mim e aproxima o rosto perigosamente do meu. Aquilo volta a acontecer, meu coração parece errar as batidas quando dou um passo sutil para trás e encaro os olhos negros me analisarem com diversão.

— E por que acha isso? — agora ele já não está tão perto de mim, porém isso não o impede de pincelar a ponta do meu nariz com um pouco de espuma a ponto de me fazer rir.

— Sério mesmo? — Eu indago um pouco espantada, sem saber como reagir nos primeiros minutos até ambos estarmos jogando água um no outro sem se importar de que estamos molhando a cozinha.

Nossa brincadeira dura pouco, pois minha mãe aparece algum tempo depois e pede que limpemos a bagunça. Mas as risadas que eu consigo dar perto dele quando dividimos as tarefas me fazem acreditar que sim, alguma coisa por aqui mudou e penso que gosto mesmo disso.

Você precisa mudar
Só assim as coisas mudarão
Precisa entender
Mesmo que não te entendam
Precisa ser paciente
Em meio a turbulência
Para que com o tempo
Você descubra da vida qual é a essência.

Dinzarda

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Glossário

Rummikub => jogo de barralho semelhante ao UNO, porém com algumas diferenças nas regras.

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