Cap. 41 - Caída

Aquela noite ficaria para sempre gravada na minha mente. Fui para casa me sentindo suja e mesmo esfregando a pele até quase sangrar, a sensação não passava.

Eu não aguentava mais chorar. Enrolada na toalha e com o corpo dolorido, olhei com pesar meu rosto no espelho e mal me reconheci: cabelos sem brilho, olhos inchados e a marca no rosto. Coloquei a mão no hematoma imaginando que teria que usar muita maquiagem para trabalhar no outro dia.

Observando o restante do meu corpo, era visível as marcas avermelhadas onde eu havia recebido tapas e apertões quando me recusava a cooperar. Meus lábios estavam inchados, principalmente no local onde havia um pequeno corte, cujo motivo nem quero me lembrar..

Em que havia me transformado? Meu Deus, o que seria de mim? Eu agora conseguia entender o Miguel, o quanto se sentia afastado de Deus.

Ele ainda me mandava mensagens, mas eu não conseguia abrir. Não conseguia imaginar o que ele pensaria de mim se me visse no estado em que me encontrava. Justo quando as coisas estavam se encaminhando bem entre nós.

Fiquei emocionada quando ele mencionava a minha voz, mas naquele momento sentia que minhas forças para cantar haviam se esvaído. Não conseguia cantar, apenas uma canção que nunca saía da minha mente. Deus não se daria ao trabalho de me ouvir cantar, daria? Então não via motivação para tentar.

Os dias que se passaram foram mais do mesmo, mas eu tentava não ficar a sós com o Jonas, desde o fatídico dia em seu apartamento. Ele obrigava-me a sair com ele praticamente todos os dias: íamos a barzinhos, festas, inferninhos.... sentia-me um trapo humano, pois era coagida a beber com ele, mesmo eu tentando recusar. Aos poucos comecei a fingir acompanhá-lo nos drinks, mas apenas fingia beber. O mesmo não pôde ser feito um dia em que me deu algo para tomar e eu fiquei fora de mim. No outro dia, tive a certeza que havia sido dopada e então nunca mais ingeri nada que ele me pedisse, sempre dava um jeito de despistá-lo e jogar fora assim que ele virava o rosto. Já estava expert nisso.

As noites de festas e badalação eram tudo que eu buscava, numa época não tão distante, quando pensava ser o que queria, iludida com a ideia de que a vida cristã não me deixava curtir os reais prazeres da vida. Hoje tenho uma nova visão: a gente pode se sentir livre, ter prazer, mas são sentimentos efêmeros. E nada disso se compara com a alegria genuína de estar na presença de Deus!

Ah, como a gente se ilude! Como somos seduzidos por tão pouco!

Cheguei em casa exausta e ao visualizar meu rosto no espelho, não me reconheci. Meus cabelos ruivos que tanto amava já não existem mais. Enquanto tocava as mechas douradas - exigência do Jonas, num corte chanel curto - um pequeno ato de rebeldia por ser forçada a mudar a cor dos cabelos - que me rendeu um belo tapa no rosto e uma enxurrada de palavrões que nunca havia ouvido em toda a minha vida.

Suspirei e ouvi o celular com uma notificação de mensagem. Não li imediatamente, pois poderia ser o Jonas. Bem, mas também poderia ser o Miguel e eu ansiava todas as noites e manhãs por suas mensagens. Era o motivo de não me deixar abater e suportar tudo aquilo.

Sorria sozinha quando ele me chamava de Rubi. Nunca entendi o motivo desse apelido, mas tinha a impressão de ser devido aos meus cabelos ruivos.

O sorriso morreu quando meus olhos se fixavam em minha imagem no espelho: até isso o Jonas me tirou.... Faltava pouco para que eu não tivesse nada mais da minha dignidade.

Abri a mensagem e lá estava novamente meu sorriso, mesmo triste.

Oi Rubi, pensando em você. Não que seja novidade, já que ultimamente é o que mais tenho feito. Estou preocupado com você, pensei que confiasse em mim. Mas saiba que não pretendo desistir de você! M.

Só percebi que chorava quando uma lágrima caiu na tela do celular. Eu não iria conseguir continuar nesta situação por muito tempo, teria que fazer algo. Pensei em ir para a casa da tia Ana por uns dias, ela iria adorar com certeza! Já estava muito em falta com a minha família, a Sara e o JM havia realizado uma linda festa de noivado e eu não pude ir. Não com tanto hematoma, maquiagem nenhuma iria esconder o que havia acontecido dos olhos sagazes da minha tia Ana. Acho que nem o JM, mesmo envolvido com o noivado e tudo deixaria passar.

Pensei nisso e resolvi que iria passar uns dias lá, mesmo sabendo que viraria alvo de curiosidade acerca do meu cabelo. Como se minha única mudança fosse essa! Mas inevitavelmente era a mais visível e com certeza todos reparariam nisso! Pensando bem, não ia dar certo. A tia Ana comentaria com minha mãe com certeza, e sei que ela se sentiria decepcionada por eu "renegar" sua herança ruiva.

Suspirei desanimada. Olhei em volta de mim, meu quarto do jeito que sempre tinha sonhado, liberdade de estar longe das asas dos pais, mas o que estava valendo tudo isso?

Eu era escrava de minhas próprias escolhas e não sabia para onde ir. Coloquei um lenço no cabelo para não ficar a todo o tempo vendo a imagem de minha derrota, sentei em minha cama, abri um diário antigo e comecei a ler. Enquanto isso, coloquei os fones e comecei a ouvir uma playlist que a Celeste havia montado mas ainda não tinha ouvido.

Comecei a ler e mais uma vez tive a certeza do quanto era imatura e iludida, pois fazia planos achando que o mundo era receptivo e me daria tudo que havia sonhado. De repente, começou a tocar uma música que gostava muito e automaticamente me vi fechando os olhos enquanto cantava e sentia no fundo da minha alma a letra da canção.

"Eu oro, eu choro, eu clamo

Mas parece que o céu está de bronze.

Eu oro, eu choro, eu clamo

Mas parece que Deus não me ouve..."

Quando o cantor começou a cantar as palavras correspondentes a resposta de Deus, minha garganta se fechou e não consegui mais acompanhar a música. As lágrimas foram descendo abundantes e eu me perguntava se um dia eu teria uma resposta de Deus:

Filha, eu estou. Tudo tenho acompanhado, embora não possas me ver, mas sempre estive do seu lado...não consegues entender que o meu silêncio é pra ouvir a sua alma, colocar sua fé em prova.

Filha, no silêncio eu te conheço, sondo os teus pensamentos, posso até ouvir palavras que não foram pronunciadas.

Neste instante tudo o que havia me acontecido até aquele momento foram passando como um filme na minha cabeça e as lágrimas jorraram abundantes. Chorava alto, gemendo e soluçando, clamando a misericórdia de Deus.

Senti um abraço me envolvendo e um queixo encostando em minha cabeça. Mesmo sem abrir os olhos, senti o conforto naquele abraço, minha mente evocando a presença do Miguel ali, inclusive seu cheiro. Mas sabia que isso não era possível, então permaneci de olhos bem fechados, aproveitando a ilusão que a minha carência e saudades dele havia criado.

O choro se intensificou e os braços que me cercavam se apertaram mais ao meu redor, surpreendendo-me por sentir que era tão real, dei um soluço e falei baixinho o nome dele, apenas uma palavra: Miguel. Imediatamente ouvi uma voz falando comigo, baixinho:

— Shhh, estou aqui. Vai ficar tudo bem.

Abri os meus olhos e percebi estupefata que não era imaginação: o Miguel estava ali, no meu quarto, me abraçando, consolando meu pranto. Como, meu Deus? Imediatamente fiquei tensa e tentei sair do abraço. Num primeiro momento, ele não permitiu, mas ao notar minha insistência, suspirou e deixou de me abraçar. Mas não se afastou.

Não sei ao certo quanto tempo permanecemos ali, olhando um para o outro, não sabia o que dizer, não conseguia acreditar que ele realmente estava ali! Um pouco reticente, sua mão foi de encontro ao meu rosto e seus olhos pareciam ler o que se passava em minha alma.

— Eu estou aqui, de verdade — arregalei os olhos instintivamente, pensando que certas coisas não mudam, nem o dom que ele tinha de saber o que se passava comigo.

Ele deu aquele sorriso que tirava meu fôlego, mas com um tom triste, mas que logo arrefeceu.

— Você está sofrendo, Raquel - não era uma pergunta - e não imagina como dilacera meu coração vê-la assim.

Baixei os olhos sem saber o que dizer. Ele tocou meu queixo levantando meu rosto. Seus olhos estavam sérios.

— Você confia em mim? - não disse nada, apenas assenti com a cabeça - então, me deixa ajudar você... - novamente mexi a cabeça, desta vez em negação e ele suspirou - onde está aquela garota determinada que insistiu comigo? Que conseguiu quebrar as barreiras que eu tinha erguido à minha volta?

Só percebi que chorava quando percebi seus dedos limpando minhas lágrimas.

— Você não entenderia, Miguel....

— Tente. Por favor não suporto vê-la assim e não poder fazer nada - passou a mão pelos cabelos, nervoso - eu me sinto um inútil...

— Não diga isso...mas, é complicado. Não se preocupe comigo, vou ficar bem.

Ele se levantou e caminhou pelo quarto, as mãos ainda nos cabelos.

— Como não me preocupar? Como? Ainda mais que estou completamente... - não concluiu sua frase, ficou de costas pra mim olhando pela janela, mas senti que seu corpo ficou tenso de repente.

O que será que ele ia dizer? Completamente apaixonado? Ri comigo mesma, isso seria um sonho, mas não teria essa sorte. Aguardei, mas ele não continuou.

— O que estava dizendo, Miguel?

Ele se virou lentamente e vi seus olhos numa luta interna. Ele se aproximou, pegou a minha mão puxando-me para que eu ficasse de pé e de mãos dadas comigo me levou para a sala. Não entendi muito bem, mas o acompanhei. Suspirei e ele se sentou no sofá comigo ao seu lado.

— Acho melhor conversarmos aqui, posso ser mais objetivo - antes que eu pudesse dizer alguma coisa, continuou - eu não tenho como não me preocupar com você. Queria conversar sobre tanta coisa...mas você é a minha prioridade. Tem noção da importância que tem na vida neste momento? Penso em você ao me levantar, durante o dia, querendo saber se está bem, a noite. E sabe de uma coisa? Enquanto penso em você não penso em morrer.

Sobressaltei-me. Como é que é? Ele tomou as minhas mãos entre as suas e as acariciava enquanto conversava comigo.

— Outro dia eu explodi com você quando mencionou a senhora Bretas, mas é porque ela existe - ao ver que eu arfava, ele se corrigiu - bem, eu sou casado. Na verdade, sou viúvo. Perdi minha esposa há quase um ano, ela estava grávida de nosso primeiro filho. Foi um filho tão amado e esperado...mas ela estava com a pressão muito alta e eu não sabia. Me sinto tão culpado por não ter prestado a devida atenção.... - parou de falar e ficou pensativo, balançou a cabeça e continuou - ela teve uma eclâmpsia e faleceu junto com meu filho.

Ficou em silêncio e vi as lágrimas descendo em seu rosto. Quis secá-las, mas estava tão em choque por ele ter decidido me contar tudo, que não me movi. Depois de um tempo bastante longo, suspirou e pareceu atormentado, mas resolveu continuar.

— Naquele dia me vi sem chão. Eu tinha a vida que sempre sonhara, ia bem na carreira, amava a minha esposa, ia ser pai....mas perdi tudo de uma vez. Não consegui me reerguer, não consegui ser mais quem eu era. Eu... - sua voz estava embargada e ele parecia ter dificuldades para prosseguir.

Abri a boca para falar que não precisava me contar se não quisesse, mas num gesto com a mão ele pediu para não interrompê-lo.

— Eu quis morrer, Rubi. Na verdade, eu desejei tanto a morte que o desejo virou um plano...eu marquei o meu dia de morrer. O plano é colocar tudo em ordem e ir ao encontro da minha esposa e meu filho... mas depois que conheci você, penso cada vez menos nisso. Eu só tinha um objetivo e você me tirou o foco. Quando estou com você eu me permito ter...esperança. E aquele dia, na igreja, aquelas palavras entraram direto em meu coração, é engraçado eu dizer isso, mas sinto que Deus falou comigo.... Sabe quem me levou ali? Foi você...entende a importância que tem na minha vida?

Quis sumir naquele momento que um dia me foi tão esperado....O Miguel retirando sua armadura e se abrindo comigo. Ponderei sobre me abrir com ele, pedir sua ajuda, mas não sei seria prudente.

— Confie em mim, Rubi, por favor. Quero te ajudar. Não suporto vê-la assim...

Decidi contar tudo e deixar em suas mãos enfrentar o Jonas. Seria justo? Quando abri a minha boca para falar, meu celular começou a tocar. Pensei em ignorar, mas quando vi o nome JONAS brilhando na tela, meu coração se apertou e não consegui abrir a boca, em pânico.

Logo em seguida a campainha tocou e eu fiquei ali, estarrecida, sem saber o que fazer.

*****

Olá, pessoinhas!

Capítulo fresquinho para nosostros...Postei e corri.

Nos vemos no próximo, beijos.

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