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Depois de vomitar várias vezes no ferryboat a caminho de Valença, a certeza que aquela terra era amaldiçoada para mim voltava como um caminhão desgovernado.

Deixe-me ser claro: Apesar de toda essa beleza e graça monumental do meu belo rostinho, eu fui uma criança humilhada. E como toda boa criança humilhada, eu orbitava em torno de uma estonteante - e cegamente brilhante – estrela.

Você já sabe quem é, não vou falar o nome daquela criatura.

Não, não vou.

Tudo bem.

Olaya.

(22 anos atrás)

- Você não pode ficar aí o dia todo... – Ela cantarolou, embaixo do umbuzeiro onde eu estava pendurado no último galho em uma tentativa inútil de provar minha força.

-Pessoal... – Minhas mãos pequenas e gordinhas deslizavam pelo galho, minhas pernas soltas e balançando para todos os lados – me ajudem!

- Sal, Sal – o coro zombava repetidamente o meu nome – derrete na água!

- Que tipo de nome é esse? Estranho igual ele!

E o grupo de crianças ria, apontando o menino da cidade como maldosas que todas elas são. Meus braços ardiam, dormentes por sustentar o peso do corpo. Pelo canto do olho, a vi largando as sacolas de compras da pousada na areia e subindo com as pernas treinadas o tronco da árvore.

- Se segura, Sal! Se você cair, a vovó mata a gente. Eu não quero morrer hoje, seu idiota. Tá me ouvindo? – ela ia passando pelos galhos, arranhando os braços entre os galhos entremeados, os cabelos vermelhos assanhados para todos os lados e aqueles pés castigados e sempre descalços trilhando o caminho até mim.

E ali, naquele único momento, eu torci por ela. Para que Olaya me salvasse. Um fio de respiração me faltava, o desespero de cair corroendo o meus olhos em lágrimas salgadas.

Eu me lembro de todos os detalhes do meu último dia em Gamboa.

Quando ela, antes de me segurar, virou para cima respondendo a um chamado hesitante. Como demorou um instante de segundo antes dela ignorá-lo e voltar a estender os dedos sujos de tinta para mim e como a minha mão escorregou sobre a dela em um último sussurro cálido, longe demais.

Naquele momento em que Olaya hesitou, eu caí. O vento sobre os meus cabelos molhados de suor, as cores correndo em minha volta rápido demais... E depois mais nada.

Lembro-me de ter acordado já dentro da lancha rápida ancorada ao cais, meu corpo amarrado em uma espécie de prancha de segurança enquanto meus pais choravam, gritando coisas absurdas para minha vó.

- Ele nunca tem um momento de paz aqui, mainha! – Meu pai vociferou para a vovó, sua roupa social demais suada em todos os lugares – Sempre sofrendo, sempre caindo e quebrando coisas...

Enquanto os adultos se distraíam em vociferar palavras que nunca mais foram esquecidas, as pequenas mãos de Olaya se agarraram as laterais da lancha onde eu estava, emergindo da água com os olhos vermelhos.

-Sal... Lá na praia, eu vi alguém no umbuzeiro. Um fantasma! – Ela tentou.

- Vá embora. – Com a voz rouca, fechei os olhos – Você podia me salvar e não quis!

- Eu quis, sim! Sal, escute... tinha alguém...

- Vá embora, Olaya! Eu te odeio!– minhas mãos presas a lateral do corpo, a dor em meus ossos quebrados saindo a cada respiração - Eu não acredito em você.

E o silêncio da mágoa, plantado naquele pequeno coração do mar, a fez ir embora, nadando de volta para a costa.

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Depois de chegar em Valença, ainda tinha que pegar a lancha rápida que havia fretado até Gamboa. O quê? Você só poderia estar maluco em achar que eu iria pegar aqueles barcos enormes cheios de turistas suados e estupidamente felizes.

Quero vomitar sozinho desta vez, obrigada.

- Eu sou Rodrigues, sim? Contratei o seu serviço. - Passei pela multidão se aglomerando, entrando desajeitadamente na lancha – Você tem água, uma balinha?

Olhei por um segundo apenas para a pessoa que estava pilotando o barco, enquanto entregava as minhas malas e abria o meu celular. Ela permaneceu de costas e em silêncio, ligando a embarcação. Começamos a andar e eu liguei para Carina.

- Oi chuchu! Já está no paraíso? – Carina zombou do outro lado da linha. A ligação estava péssima, mas eu conseguia ouvi-la rir.

- Não vejo a hora de resolver logo as coisas, o mar acaba com a minha pele – zombei de volta. – Assim que chegar em terra mando os contratos do seu papai pelo meu notebook, ok? Não é bom apenas eu ter uma cópia.

- Rorô? A ligação está péssima, não escuto nada! – o áudio chuviscou e eu gruni de impaciência.

- Eu disse... –indignado com a interferência de sinal, me virei para a piloto - Ei, garota, aqui não pega celular não?

Silêncio.

Onde já se viu? Péssimo atendimento. Estalei os dedos. Ouvi um suspiro.

- Você não sabe falar? Uma coisa que você tem que aprender é a tratar melhor quem te paga, viu?

Então o farfalhar o piso quando ela se virou. Na minha urgência de entrar na lancha, não notei os cabelos vermelhos embaraçados pelo vento; a pele bronzeada de uma vida inteira, as unhas com os cantos sujos de tinta e os pés... descalços.

Aqueles pés horríveis.

- Presta atenção no que vai acontecer – A voz mais rouca do que eu lembrava, os passos lentos em minha direção como uma cobra rastejando – eu vou voltar para Valença, você vai pegar sua mala e cuia e sumir da nossas vidas, entendeu?

Eu gargalhei. Não pode ser real.

– E que direito você acha que tem sobre os meus projetos? – desdenhei –Pago para ver eu chegando naquela ilhazinha... Mas o que você está fazendo?

Ela parou a lancha, segurando as minhas malas que havia entregado no porto.

- Vá embora... ou essas coisaradas todas aqui conhecem o mar.

A embarcação desligada e sem âncora balançava perigosamente para todos os lados.

- Solte as minhas malas! – Vociferei. A víbora levantou uma sobrancelha – Ou melhor: solte as minhas malas em segurança dentro da lancha!

- Decida, querido. 3, 2...

- Eu não vou embora! – gritei, já enjoado pelo balançar das ondas - Por que você não se mete nos planos de outra pessoa, hein? Sua cobra, maldita e peçonhenta...

- O que você precisa saber, Sal – Olaya disse baixinho, como um segredo só para nós dois – É que eu sou louca.

E soltou.


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Amigos! Queria deixar só uma breve dica: As ilustrações tem TUDO a ver com a narrativa! ( De forma poética, ngm tá se afogando não hein ahhaha) Por enquanto, só posso falar isso.

Explicações sobre a demora em postar: Eu demoro muuuito para escrever por que sinto que tenho  que estar no mesmo feeling que a personagem, para traduzir isso melhor nas palavras. E bom, um pessoal pediu para que eu postasse assim que saísse o capítulo, e não guardá-los para postar no final. Se você quiser aguardar a trama se concluir e ler depois TÁ TUDO BEM MEU CHUCHUZINHO. Eu vou te esperar até lá, assim como você me esperou <3

Obrigada por tudo e sempre!

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