01

– Alcides? – Maria das Dores cochichou ao seu marido. Em um vilarejo pequeno como Gamboa, aquela criatura da língua grande era o que mais se assemelhava ao jornal local.

Infelizmente.

–E eu lá quero saber a boa de hoje, Maria? Lá no porto estava um fuzuê. Um monte de granfino mal humorado indo embora. – Secou o suor da testa com a velha toalhinha que fazia morada em seu ombro.

– Olaya, aquela criatura desajuizada! Gritou com todos aqueles pedreiros, se amarrou pelada no trator... PELADA, Alcides! – com tanta emoção ao proclamar a boa nova, não podia conter as mãos e deu um tapa nas costas dele.

O velho marinheiro se encolheu, colocando as mãos na cintura, olhando para o além mar com a experiência de uma vida. Pôs os pés na margem rasa e tranquila.

O horizonte caindo no sono devagarinho, como antes de uma tempestade.

– Se você quer saber – cuspiu o palito de madeira da boca, fazendo uma careta – Vai ter tanta coisa acontecendo nessa ilha que a tua língua vai cair.

Antes de abrir a boca para responder o marido com um comentário espertinho, o furacão de areia passou por eles; os pés descalços batendo com força em cima da passarela de madeira, semi vestida e furiosa, em direção à delegacia. Os cochichos reprovadores à seguiam como maré quente.

Mas, alí estava. Em cada morador da vila, como um beijo traidor no canto dos lábios erguidos.

Vitória por hoje.


Existem momentos em nossa existência inútil no qual achamos que estamos perfeitos, felizes e completos, e que nada; nem a menor criatura infame, vai mudar essa condição.

Sorri por cima do meu martini para a loira ao lado do Governador Munhoz. Ignorando a conversa fiada típica de políticos desse calão, passo os dedos sobre a licitação e a empurro suavemente pelo tecido aveludado da mesa de jantar. Ele passa a língua nos lábios.

Uma raposa tentando enganar a outra.

— Eu já fechei com a Constrosul, Rodrigues. Já falei com umas duzentas pessoas do seu escritório e não pensem que ao me enfiarem você cheio de sorrisinho fácil vão conseguir alguma coisa. Não posso simplesmente desfazer um contrato assim. — O seu nariz de porco se enrugava de um jeito horroroso enquanto ele mastigava o peixe.

— É claro que pode. Você me conhece, governador. Achei que éramos amigos! — Sorri largo, levantando o braço para acenar à carta coringa que acabara de entrar no salão do restaurante.

— Papai! Rorôzinho! — Observei Carina desviar das mesas justapostas em direção ao Munhoz com um sorriso perigosamente malvado. Sentou ao meu lado, aproveitando para sussurar pra mim enquanto me abraçava — Você vai me dever essa para o resto da vida, seu cachorro.

Eu poderia beijar você agora mesmo — sussurrei de volta, piscando para minha melhor amiga.

Volte em outra vida, quando você for mulher — e mais alto — Então papai, estão se divertindo? O Rorô me contou que vocês vão trabalhar juntos, eu estou tão orgulhosa e feliz por vocês...

E então, o que eu havia preparado há meses aconteceu: O incorruptível excelentíssimo governador amoleceu como jaca. Depois de anos tentando se reconciliar com a filha rebelde, ele não poderia dizer não e correr o risco de que eu acabe apresentando a querida amante dele, branca feito uma pedra de desespero, sentada ao seu lado.

— Cla... Claro. Perfeitamente. — Suas mãos tremiam enquanto ele hesitava com a caneta na mão.

— Inclusive, gostaria de apresentá-la a minha nova namorada. — apontei para a apática amante do governador — Inclusive, só estou esperando o seu querido pai assinar o nosso contrato para poder ir ao cinema. Não é querida?

E então estava feito. Ao sair do restaurante, recebo uma mensagem de Carina.

C. Ela não é sua namorada nem aqui nem na china.

R. Claro que não. É amante do teu pai.

C. Você não presta. Chantagem é crime!

R. Me prenda! Nada pode estragar meu dia hoje!

Não poderia estar mais errado.

***

Inspirar.

Na Marginal Tietê, minha BMW estalando de nova. Três segundos conferindo o anexo sobre o contrato do novo estádio e eu bati no fundo de um Monza 1987. Como todos vocês devem estar cientes, sem maiores danos no tubarão pré histórico. A minha bebê? Terrivelmente destruída. E como qualquer desgraça em São Paulo nunca vem sozinha, provoquei um engarrafamento de três quilômetros, antes do guincho aparecer. Três quilômetros.

Expirar.

– O que é dessa vez, Henrique? – gritei, atendendo o telefone. O barulho do motor velho do guincho ecoava pelos meus ossos. – Se for notícia ruim, fala de uma vez enquanto eu tô de bom humor.

– Se isso é bom humor... – meu assistente resmungou, do outro lado da linha – O conselho não me deixou falar nada por telefone. É assunto sério, Rodrigues. Assunto sério.

Inspirar.

Quando finalmente pisei na beleza tecnológica que se chama ambiente com ar condicionado, coloquei a mão no bolso. Ah não. Olho para os lados, com sensação de quase morte ao perder um membro do corpo.

Antes de voltar correndo para o guincho, decido entrar em minha sala para deixar o resto das minhas coisas e dou de cara com os meus sócios queridos.

– O que as belezas estão fazendo aqui? – encosto no batente da porta, todo o meu azar entalado na minha garganta.

– Nós estamos cancelando projeto do Resort.

Expi... Que se foda.

– Assim, simplesmente? Sem me consultar? – Enquanto o suor se espalhava por minhas palmas e costas, pensei em destruir cada pedaço daquelas cabeças carecas. – Esse é o projeto da minha vida, Mário! Vocês estão chutando a minha bunda, é isso mesmo?

– Ai, como você sempre foi dramático – Mário deu um aceno – A ilha não nos aceitou muito bem. Foi um desastre o dia da demolição daquela pousadinha, os moradores gritando, chorando. Teve até uma local, veja só você, se amarrou nua nos tratores, o corpo pintado de tinta representando a sua cara separada do corpo, um verdadeiro horror – Eles riram, mas eu não.

– Não vale a pena investir onde não somos aceitos, é estatístico – meu outro sócio, o ridículo do Flávio apontou.

– Um milhão de reais em suborno para o projeto acontecer! – esmurrei a mesa, com tanto ódio que ele estalava nas veias de minha testa – Os contratos, as noites sem dormir, todas as licitações que eu consegui para sermos os primeiros...

Isso não é sobre você voltar para casa, Sal.

Meu corpo virou gelo, meus pés atados como em um sonho ruim em que eu não conseguia me mover, nem gritar, nem me esconder.

Sal Rodrigues da Silva é quem eu fui. Não mais.

Nunca mais.

– Me dá um tempo – pigarreei, minha voz ainda raspando pela minha garganta, tentando ignorar o golpe baixo – Eu vou lá convencer os moradores, eu sei o que fazer. Esse projeto pode nos tornar mais ricos do que vocês sequer sonham!

– Um mês. – Flávio estreitou os olhos pra mim – Um mês e cancelamos o projeto definitivamente. E dê um jeito nessa local problemática, principalmente.

– Fechado – Respondi em um só fôlego, recolhendo as minhas coisas e ao mesmo tempo deixando-as cair pelo caminho, um turbilhão de emoções loucas e desesperadas para abocanhar o projeto da minha vida de novo.

Eu sabia quem era a única pessoa que, mesmo depois de vinte anos, ainda era a mesma criatura selvagem e desmiolada. Eu não iria perder.

E então, eu fiz as minhas malas para tomar de Olaya a minha ilha de volta.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top