Capítulo 1

Há uma diferença clara entre presa e predador.

Não estou me referindo ao tamanho ou à capacidade destrutiva de um comparado ao outro, até porque já vi seres minúsculos devorando criaturas que eram o dobro de seu tamanho.

Não, me refiro à noção de espaço, capacidade de reconhecer a parte à qual pertence naquela pirâmide simples e devastadora. Às vezes me perguntava: serei eu a caça ou o caçador? A resposta veio com o tempo, em um vislumbre de existência em que me vi empacado, analisando as mãos cobertas pelo líquido quente que escorria sobre meu corpo paralisado; lágrimas e suor transformando em rosa o escarlate.

O meu sangue? O sangue dele.

Todos os dias, quando deitava minha cabeça no travesseiro para descansar, sua forma visitava-me em pesadelos.
Nunca fomos exatamente simpáticos um com o outro. Ele odiava a ideia da minha existência e eu o odiava porque não podia ser ele.

O alegre garoto de pele bronzeada, cabelos encaracolados e sorriso radiante como o de um anjo. Suas conquistas eram um soco em meu estômago tal como minhas derrotas, decepções para sua cota de infelicidades.

Lembro-me de vê-lo dedilhar o violão, rodeado por nossos amigos, cantando alguma música pop genérica. Todos os olhos estavam sobre ele e, pela primeira vez, notei que talvez pudesse não suportar. Aquele era o declínio, minha chance de por para baixo toda a perfeição que emanava, então eu o fiz.

Eu sou o topo da pirâmide. Penso me desvencilhando dos seres amontoados no corredor frio. Não consigo fazer com que minhas mãos parem de tremer, então escondo-as nos bolsos do meu moletom índigo. Meu all star desgastado provoca ruídos conforme o arrasto pelo piso cinza antiderrapante.

Não deve ser mais de dezoito graus, mas o colégio inteiro parece ter sido inundada por uma tempestade de gelo. É quase impossível encontrar alguém que não esteja soterrado em uma avalanche de tecidos industrializados; casacos de pelos falsos e jaquetas de couro sintético deslizam em corpos esguios e largos, altos e baixos. Estou hiperventilando.

— O que foi? — Caio, um garoto de olhos elétricos e pele negra, puxa-me pelo braço quando chego à área externa, onde alguns alunos sentam-se em duplas ou trios para devorar o lanche da cantina. Assim como eu, está no último ano do ensino médio. É o meu melhor amigo desde a quinta série e sua mãe, uma senhora ranzinza de meia idade, é uma das poucas psicólogas realmente boas na região.

— Nada — forço minha voz a permanecer neutra, mas sei que não funciona porque me encara de sobrancelha erguida. Ótimo.

— Benjamin, vá enganar a vovozinha — deixo escapar um riso nasalado. Caio é do tipo de gente que evita a todo custo falar palavrões, mesmo quando parecem realmente necessários. Uma vez, deixou café fervendo cair no próprio pé e inventou uma série de adjetivos esquisitos para não se render ao que considera um vocabulário indigno. Minha mãe costuma dizer que deveria ser mais como ele.

Como eles, penso, infeliz. Uma onda de ressentimento atravessa o meu corpo e encaro o chão, talvez esperando que se abra e me deixe cair no inferno.

— E por que eu não estaria? — ele me analisa por alguns instantes.

— Você está parecendo um defunto — péssima escolha de palavras. Vento frio atinge meu rosto e a idéia da carne apodrecendo em uma vala cobre os meus pensamentos em uma sombra perpétua. Quero gritar.

— Eu estou bem, cara — reforço com um riso fingido e dou um soco leve em seu ombro antes de continuar: — juro.

Além de assassino, um mentiroso.
Estou acostumado com a ideia, por mais que ela soe como um martelo irritante batendo várias e várias contra a minha cabeça. É assim desde quando precisei explicar para minha mãe o sangue em minha camiseta, alegando ter me machucado em algum arame farpado enquanto pedalava que nem louco para casa.

— Não vou pressionar, mas você sabe que estou aqui, né? — ele inclina a cabeça de lado e ergue as sobrancelhas para enfatizar a solidariedade na frase.

Não. Penso, mas não digo. Você não estaria se soubesse o que fiz.
— Obrigado, mas eu realmente estou bem — digo e então me afasto, torcendo para encontrar um canto vazio o suficiente para que me esconder.

Nem sequer o enterrei. Eu o sufoquei com minhas próprias mãos; observei a vida se esvair gradativamente dos olhos dourados e tristes. Não tentou se desvencilhar, gritar ou fugir. Era como se já soubesse o que o esperava. Não havia nada ao seu alcance. Só me resta rezar para que ninguém descubra a tempo.

Ou talvez eu precise que alguém saiba.

É com esse pensamento que me despeço da turma ao fim da última aula. Uma chuva fina e persistente me persegue enquanto me desloco para casa, encharcando aos poucos minhas roupas largas. Dentes batem e seguro o guidão com tanta força que todos meus dedos doem.

Fecho os olhos por alguns segundos e ele está novamente em minha frente, olhando para o vazio através de mim. Sua pele fria está próxima à minha e não há qualquer resquício de raiva ou infelicidade em sua expressão, apenas o nada desconcertante.

Ele me odiava. Tento me acalmar e, antes que perceba, estou novamente de olhos abertos, encarando o clarão dos faróis de um carro vindo em minha direção.

Em um súbito movimento, lanço-me à beira da estrada. O som do metal da bicicleta sendo arrastado no asfalto esburacado preenche a monotonia do trânsito e freios são apertados, então portas abertas.

Nada além de pavor resta em mim quando tenho um vislumbre da face no retrovisor. Sem que o motorista preste ajuda, me levanto e volto a pedalar a toda velocidade, agradecendo aos céus por não ter amassado meu único transporte efetivo àquela altura. Não sei se conseguiria andar com tanta credibilidade e tenho medo de que a polícia seja envolvida no pequeno acidente.

Não estou tão longe, então chego rápido.

Ninguém está em casa. Percebo pela posição do cadeado, estrategicamente exposto como um aviso. Uma carta com afazeres básicos havia sido jogada no balcão da cozinha. Não dou muita bola para ela e sigo sem pestanejar para o quarto escuro e úmido no andar de cima.

Você sabe que estou aqui, né?
Antes que perca a coragem, disco o número de Caio no telefone. Ele demora um pouco para atender e está ofegante quando finalmente o escuto, sinal de que provavelmente havia acabado de chegar.

— já ia te ligar. Você sabe quem é a…

— Acho que matei alguém — interrompo e a linha fica em silêncio por tempo o suficiente para que eu queira espatifar o aparelho na parede.

— Como assim? — meus dedos se encolhem no tapete felpudo do cômodo e me arrasto até o espelho.

— E se eu matasse alguém?

— Você quer que eu vá aí? — respondo a preocupação com um riso amargo.

— Eu sinto muito — começo, alisando a superfície refletora. Um soluço escapa de minha garganta e fico com raiva por não conseguir reprimi-lo. — chame alguém. Mande-os aqui.
Meus dedos fazem uma curva no queixo dividido, então sobem pela bochecha magra e brincam no reflexo do cabelo cacheado. Encosto a testa em sua testa, encaro seus olhos dourados e soluço novamente.

— É como dizem nos filmes: "mãos ao alto" — coloco no auto-falante e ergo as minhas, e ele ergue as dele. — não tenho certeza do que vem em seguida, mas posso acrescentar "temos um assassino."

Quando desligo, a dança começa. Meu corpo se dispersa em várias direções e minha mente está tão alta quanto o estrondo de um trovão. Quando o cano metálico aproxima-se de minha têmpora e a explosão ocorre, finalmente descansa. Apaga-se como uma vela, derretendo aos poucos, formando uma poça no vórtice da inexistência.

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