Capítulo 1
Outubro de 1894
No trem, em algum lugar do Rio Grande do Sul
Sentada na poltrona desconfortável do trem que a conduziria ao seu novo destino, Alice Lufft contemplava a paisagem pela janela, alheia às pessoas ao seu redor. A rua mergulhava em trevas completas, iluminada apenas pela imponência de uma lua cheia. Somente na capital já havia eletricidade. O restante do estado permanecia envolto pelas tênues chamas das lamparinas a gás. A moça não fazia ideia de quão antiquadas seriam as moradias no interior e estava temerosa em descobrir.
Ao longo de mais de duas horas de viagem, passaram por inúmeras árvores e poucas casas, como se adentrassem um verdadeiro deserto que lhe provocava uma secura incômoda na boca. Era difícil conceber que alguém pudesse desejar habitar aqueles rincões, mas tais pensamentos apenas surgiam em sua mente por nunca ter viajado em direção ao oeste. Ao longo dos seus vinte anos de existência, suas jornadas restringiram-se ao litoral e à Colônia de São Leopoldo, destinos que não se distanciavam muito daquilo que lhe era familiar.
Partira da Estação à meia-noite, em uma jornada solitária e melancólica, sentindo o medo se contrair em seu íntimo. Antes disso, atravessara de Porto Alegre até ali por via marítima, cruzando o rio Jacuí, mantendo-se alerta, sem saber quais eventualidades poderiam lhe ocorrer.
Despedira-se de todos no cais horas antes. Chegou a cogitar, por um último instante, persuadir a mãe a voltar atrás e permitir que ela permanecesse, porém as consequências de seus atos já haviam invadido as mais nobres famílias da capital. Não havia mais retorno possível. Por mais lágrimas que tivesse perdido ao longo das últimas semanas, nada mudaria seu estado e ela estava até resignada quanto a isso.
Seria uma viagem longa até seu destino. Ainda havia oito horas a percorrer. Alice não tinha certeza se conseguiria descansar adequadamente, tanto devido ao assento rígido quanto por causa de seus pensamentos. Havia um tempo considerável desde sua última noite de sono tranquilo, pois ela passara a refletir incessantemente sobre as ações que a haviam conduzido até aquele ponto. Não fazia muito que a jovem tinha um futuro cuidadosamente delineado, porém tudo desmoronara com a morte do pai, no início de agosto. Não era sem motivo que diziam que agosto era o mês do desgosto. Alice sentiu isso na pele. Agora, dirigia-se a um local completamente desconhecido, solitária, sem perspectivas para sua vida, deixando para trás a mãe, o irmão mais velho e sua irmã mais nova, além de todos os amigos.
Se apenas tivesse sido menos tola e ingênua, não precisaria enfrentar essa provação. Ela, que sempre se considerou astuta, fora ludibriada com uma facilidade inexplicável.
Alice não havia sido educada para trabalhar fora de casa. Viera de uma família abastada e nunca enfrentara dificuldades. Embora tivesse convencido os pais a permitirem sua formação no Curso Normal, jamais cogitara colocar em prática seus conhecimentos ao lidar com outras crianças. Esperava casar-se, ter seus próprios filhos e dedicar-se ao lar e ao marido, como era esperado de uma jovem de boa linhagem. Contudo, esse sonho fora destroçado por seu ex-noivo, um mês antes.
— Como assim não haverá mais casamento? – recordou-se Alice de ter perguntado, na ocasião, incrédula, enquanto Eurico fingia um grande interesse pelas flores que adornavam o muro da mansão no bairro nobre da capital. Ele fazia de tudo para ignorar o choque estampado no rosto da moça. – Estava tudo acertado! Apenas adiamos algumas semanas devido ao luto!
— Eu sei, Lili – concordou o homem, parecendo, ao menos, envergonhado.
Haviam ficado noivos seis meses antes, um período consideravelmente mais longo do que a maioria dos casais das grandes famílias costumava esperar. A justificativa de Eurico era que precisava viajar para tratar com os fornecedores da joalheria de seu pai e que o tempo para os preparativos estava escasso.
Ele a pedira em casamento durante um piquenique encantador em um bosque próximo à sua residência. Alice nem ousara recusar, seria um absurdo fazê-lo. Seu pai a mataria. Sua mãe a deserdaria. Afinal, a união das duas famílias traria oportunidades auspiciosas.
Acreditava fervorosamente estar apaixonada. Ao menos, era assim que Alice acreditava sentir-se. Nunca havia experimentado tal paixão antes, portanto, desconhecia as sutilezas dos sentimentos que a arrebatavam. Contudo, Eurico era um homem de rara beleza, com seus cabelos castanhos claros sempre impecavelmente penteados, olhos verdejantes que reluziam intensamente e um bigode longo, composto por pelos finos, conferindo-lhe uma aparência mais madura e inteligente, mas que, nos momentos de beijos, despertava-lhe cócegas. Além disso, ele era extremamente amável, educado, um verdadeiro cavalheiro, e provinha de uma abastada família de Porto Alegre, proprietária de uma joalheria elegante na Rua dos Andradas. Isso significava que o jovem era, sem dúvida alguma, a melhor opção de partido que Alice poderia encontrar, e seu pai o havia aprovado de olhos vendados. Mais do que isso, o pai incentivava seus encontros, convidando os pais do rapaz para visitas ou permitindo que o casal passeasse sem companhia. Desejava que o casamento ocorresse o quanto antes.
— Mas por quê? – Alice soluçou. – O que fiz de errado?
Eurico virou-se no assento, segurando com delicadeza suas mãos enluvadas na tentativa de acalmá-la. Tal gesto apenas fez com que as lágrimas escorressem ainda mais, carregadas de desespero mais do que tristeza. Que alívio seu pai não estar presente para testemunhar que ela não se casaria com Eurico e que estava prestes a se humilhar diante dele. Provavelmente, não receberia mais nenhuma proposta de casamento dali em diante. Permaneceria solteira eternamente, com a reputação manchada. Que homem, em sã consciência, se daria ao trabalho de cortejá-la após ter sido rejeitada pelo noivo? Que momento mais inoportuno para romper o relacionamento! Alice precisava de Eurico. O que faria agora?
— Tu não fizeste nada, querida. A culpa é inteiramente minha – ele tentou se desculpar, pelo menos se esforçando para ser gentil com sua ex-noiva. Sempre fora assim, e era nisso que Alice se apegava. – Meu pai acredita que será melhor para nossa família se eu me casar com uma moça de... melhores...
Eurico interrompeu-se por um instante, pesando cuidadosamente suas palavras.
— Melhores posses? – Alice o interrompeu, os olhos semicerrados, sentindo-se envergonhada pelo que estava prestes a ouvir. Ele não se atreveria, se atreveria?
— Bem, uma moça com mais... posses – Eurico admitiu, incapaz de encará-la.
Alice não podia acreditar no que estava ouvindo. Há um mês atrás, ele dizia que a amava, que ela era tudo o que sempre desejou e mal podia esperar para estarem casados. Foi completamente arrebatada pelos gestos românticos do rapaz. Como alguém poderia nutrir sentimentos tão profundos por ela? Tinha a mais absoluta certeza de que seriam imensamente felizes juntos. Vislumbrava, com clareza, os filhos que teriam, com seus belos olhos verdes. Depositara tamanha confiança nele que... Ah, quem sabe sua mãe não a mataria ao descobrir até onde havia chegado com seu noivo? Talvez a mandasse para um convento, como sempre ameaçava fazer quando Alice cometia algum deslize.
Antes, era a noiva perfeita, a quem Eurico afirmava amar e sentir falta! Contudo, após a morte repentina do pai, poucas semanas antes, vítima de um ataque cardíaco, seu status metamorfoseou-se de uma respeitável dama, educada e próspera, perfeitamente adequada para o matrimônio, para uma jovem infortunada e indesejável, pronta para ser descartada sem qualquer cerimônia. Tudo isso porque, naquele instante, sua situação financeira havia se alterado drasticamente.
Alice estava atônita, seus olhos cheios de lágrimas enquanto ouvia as palavras de Eurico, que soavam como uma punhalada em seu coração. Ela jamais poderia ter imaginado que seu noivo, que alegava amá-la e fazia promessas de amor eterno, pudesse descartá-la tão friamente, simplesmente por causa da mudança em sua situação financeira após a morte de seu pai.
A sensação de traição era avassaladora, e o choque da revelação de Eurico deixou-a completamente desolada. Sua voz, normalmente doce e educada, tremia enquanto ela tentava compreender como tudo tinha mudado tão drasticamente. Eurico não apenas rompera o noivado, mas também a tratara com uma indiferença chocante.
Alice não conseguia evitar a torrente de lágrimas que escorria por seu rosto enquanto ele continuava a explicar sua decisão, como se aquilo fosse uma mera formalidade. Sentiu-se desamparada, traída e profundamente ferida.
A lembrança de Eurico fazendo coisas indecorosas com ela pouco antes da morte de seu pai tornava a situação ainda mais dolorosa. Ela se perguntava se ele a amara de verdade ou se tudo não passara de uma farsa.
Diante do choro de Alice, o rapaz teve a audácia de tocá-la como se fosse consolá-la, como se pudesse apagar a crueldade de suas palavras. No entanto, ela sentia a intrusão de seus dedos sobre o vestido de luto, como se ele estivesse profanando sua dignidade e sua memória. Estava determinada a não deixar que a humilhação a dominasse. Ela ergueu o olhar para o patife, os olhos agora misturando tristeza e fúria.
— Não precisa fingir que te importas agora, Eurico. Tuas palavras já deixaram claro o que tu realmente és. Estou certa de que encontrarás uma noiva com as "posses" adequadas à tua posição. Adeus. Que sejas feliz com tua herdeira.
Alice se levantou do banco, o vestido de luto rodando à sua volta enquanto ela se afastava dele e entrava na casa. Não deixaria que a visse desmoronar completamente. Ela era forte e determinada, e não permitiria que aquele rompimento a definisse. A dor estava lá, mas também a resolução de seguir em frente, apesar de tudo.
Estava prestes a subir as escadas quando ouviu o som da voz de sua mãe chamando-a de volta ao primeiro andar. Com um nó na garganta, Alice se virou para encontrar o olhar preocupado de sua mãe, que estava parada ao lado da porta.
Sem uma palavra, sua mãe a puxou pelo braço e a levou para cima, para dentro de seus aposentos, trancando a porta atrás delas para que sua irmã mais nova, com apenas dezesseis anos, não ouvisse nada.
Alice não conseguia mentir para a mãe. Ela a conhecia bem o suficiente para saber que algo estava errado, que sua filha não agiria daquela forma se não estivesse no limite. Então, contou tudo o que havia acontecido com Eurico e sobre o rompimento do noivado.
A mãe a ouviu atentamente, uma expressão de indignação e tristeza passando por seu rosto enquanto sua filha compartilhava os detalhes da humilhação que havia sofrido. Ela abraçou Alice com força, prometendo que tudo ficaria bem e que, juntas, encontrariam uma maneira de superar aquela terrível situação.
— Estamos arruinadas, Lili — choramingou a mãe, sentando-se na beira da cama com dossel ao lado de sua filha do meio. — O que faremos agora? Estamos falidas, tu foste corrompida e jogaste fora nossa única chance de guardar algum dinheiro até que Diogo possa conseguir um emprego.
— Mas eu não tive culpa, mutti — insistiu Alice, com desolação evidente em seu rosto vermelho de tanto chorar.
— E para piorar, como esperas conseguir outro noivo depois que Eurico espalhar para todos sobre nossa falência? — questionou, desesperada. Não tinha considerado consequências tão grandes.
— Como será que Eurico descobriu sobre nossos problemas financeiros, afinal? — indagou, curiosa.
— Bem, imagino que tenha saído uma notícia no jornal sobre a venda da fábrica — sugeriu a mãe. — Ele apenas juntou as peças.
Um silêncio se instalou no aposento enquanto mãe e filha ponderavam sobre o que fazer. Alice brincou com um fio imaginário de seu vestido, recordando com nostalgia a Lufft Tecidos e Cia LTDA, fundada por seu pai quase quinze anos antes e que agora pertenceria a outra pessoa. Seu pai, descendente de um importador alemão de São Leopoldo, havia erguido um elegante edifício em estilo eclético no quarto distrito de Porto Alegre, onde se estabeleceram. A cidade estava em rápido crescimento, assim como a demanda por todos os tipos de mercadorias, incluindo roupas, e o negócio prosperava. Cresceu tanto que seu pai teve que expandir a produção e contratar mais funcionários.
No entanto, anos mais tarde, se arriscou ao construir um novo pavilhão ao lado do antigo e abrir uma fábrica de roupas de cama. Todos acreditavam que as coisas iam muito bem. Era o que a família aparentava. Frequentavam os melhores clubes, salões, confeitarias e ateliês da cidade. Eram convidados para as casas dos mais proeminentes aristocratas, como o Visconde da Cruz Alta. Até mesmo enviaram o filho mais velho, Diogo, para São Paulo, a fim de estudar Direito, já que não havia faculdades no estado. No entanto, ninguém poderia imaginar que o pai estava cada vez mais endividado devido a investimentos malsucedidos e jogos de azar.
— Eu não queria que isso acontecesse, Lili. Estava contando com teu casamento. Agora precisamos encontrar uma alternativa rápida — disse a mãe, fazendo uma pausa para respirar fundo. Alice prendeu a respiração, esperando ouvir a proposta. — Teremos que vender o casarão e nos mudar para uma casa menor. Reduzir o número de criados. Talvez eu precise costurar para fora, não sei.
Alice engoliu em seco, percebendo a gravidade da situação. A sugestão da mãe de vender o casarão e fazer mudanças drásticas na vida da família era uma ideia que pesava no coração de todos. Sabia o quanto aquele casarão significara para seu pai e o orgulho que sentia em mantê-lo.
— Suponho que eu precise procurar um emprego também... — disse, resignada.
A mãe de Alice olhou para ela com um olhar misto de tristeza e preocupação.
— Não criei minhas filhas para isso, Lili! — exclamou, deixando claro o quanto aquela ideia a entristecia. Ela havia se esforçado para proporcionar uma vida melhor para suas filhas, e agora tudo parecia estar desmoronando.
Alice segurou a mão da mãe com carinho.
— Eu sei, mutti. Mas estamos juntas nisso, como sempre estivemos. Nós vamos superar essa adversidade. E quem sabe, talvez essa mudança nos traga novas oportunidades e um recomeço.
A mãe de Alice assentiu, compreendendo que não havia outra opção a não ser enfrentar o que o destino lhes reservara. Então sugeriu com esperança:
— Talvez tua madrinha possa encontrar uma posição como tutora para ti em uma família abastada. Pelo menos teu diploma do curso Normal será útil.
Alice considerou a ideia com seriedade. Ela sabia que precisava ser prática e encontrar uma maneira de ajudar sua família a se recuperar financeiramente. Mesmo que isso significasse abandonar suas próprias expectativas e ambições, estava disposta a fazer o que fosse necessário.
— Sim, mutti, é uma ideia a considerar.
A mãe sorriu com gratidão pela determinação de sua filha.
— Obrigada, Lili. Sabia que podia contar contigo.
Depois que a mãe saiu do quarto, deixando-a sozinha, Alice chorou por horas, mais de raiva de Eurico do que de tristeza pelo rompimento. Não queria partir, não queria ficar distante da família. Também não desejava passar o resto da vida como uma solteirona. Talvez a mãe estivesse certa, quem sabe encontrar um posto no interior, onde as regras sociais não eram tão rígidas, pudesse ajudá-la.
Antes, imaginava que, depois de casada, usaria seus talentos apenas para educar seus próprios filhos. Agora, teria que fazê-lo com os filhos de outras pessoas.
Algumas semanas depois, por destino ou acaso, sua madrinha, uma mulher refinada e abastada que havia se tornado amiga de sua mãe muitos anos antes, apareceu no casarão para uma visita. Ela trazia grandes novidades e uma oportunidade única. Alice ensinaria as letras e as boas maneiras aos dois filhos de um estancieiro no interior do estado, que, por coincidência, também era seu sobrinho. Era para esse lugar que a moça se dirigia, embarcando naquele trem, rumo a seu novo destino.
***
Absorta em pensamentos, Alice acabou adormecendo. Quatro horas se passaram até que ela despertasse com um leve alvoroço. Ao seu lado, uma senhora havia se sentado. Vestia trajes de viagem, um marrom alaranjado, de um tecido mais rústico e simples do que o que a jovem trajava em suas roupas de luto. Não aparentava ser da alta sociedade, mas também não era uma mulher pobre.
— Peço desculpas se a acordei – disse a senhora, já instalada no assento ao lado de Alice. Um sorriso doce enfeitava seu rosto.
Cansada e sonolenta, Alice respondeu que não havia problema, afinal, já era dia e precisava acordar de qualquer maneira.
— Bernadete Pereira, ao seu dispor – a mulher se apresentou.
— Alice Lufft – respondeu a jovem, voltando-se para a janela para contemplar a paisagem. O dia já clareava e o céu se apresentava em tons acinzentados. A semana havia sido chuvosa, mas parecia que o tempo começaria a melhorar.
— Estou retornando para casa – disse a senhora, como se alguém tivesse indagado algo. Alice se voltou novamente para ela. – Passei duas semanas em Rio Pardo. Fui visitar minha filha. Ela teve um bebê recentemente.
A moça calculou que estavam já quase em seu destino final.
— Meus parabéns – sorriu Alice, aproveitando o assunto como uma distração bem-vinda de seus pensamentos sombrios.
Se tivesse se casado com Eurico na data estabelecida, estaria agora esperando um bebê? Ela não compreendia muito bem os meandros da gravidez. Talvez nem pudesse conceber uma criança. Afinal, seu erro com o ex-noivo não havia deixado marcas tão profundas.
— Agradeço. É o primeiro filho de minha filha. Ela se casou há um ano e foi morar com o marido em Rio Pardo. Ele é um advogado de renome.
Alice percebeu certo orgulho na voz da mulher. Quisera que sua mãe pudesse expressar o mesmo orgulho por ela, mas agora isso jamais aconteceria. Ela sempre afirmara que Alice só lhe trazia preocupação. Quem sabe se sua irmã, Elisa, pudesse conquistar um bom marido e não fosse objeto de fofocas como ela!
— Que maravilha! – exclamou Alice. – Fico feliz pela sua filha. Ela deve estar radiante.
— Sim, ela está – concordou a outra mulher. – Porém, agora é hora de voltar para casa e reencontrar meu amado esposo. Possuímos uma sapataria em Cachoeira, bastante famosa, então ele não pode se ausentar por muito tempo.
— Imagino que sim.
— A moça também está se dirigindo para Cachoeira?
— Estou, sim.
— Mas você não é natural de lá – afirmou a senhora. – Possui um sotaque diferente.
Ela estava certa. Alice nunca havia percebido que falava de forma distinta, mas a mulher pronunciava os erres com mais ênfase, de forma retroflexa, diferente dos seus, mais suaves. Ela também pronunciara seu nome com o "e" bem acentuado, não como Bernadetchi. Além disso, Alice tinha alguns lapsos em alemão, a língua materna de seus pais.
— Venho de Porto Alegre – explicou.
Durante as próximas quatro horas de viagem, Alice testemunhou o sol ascender no céu e o dia clarear aos poucos, enquanto escutava as histórias de dona Bernadete sobre a cidade, sua família e amigos, sem poder interrompê-la, por questões de etiqueta. Conhecer a história do lugar para onde se dirigia era apropriado, especialmente para poder transmitir conhecimento às crianças sobre sua terra natal. A madrinha havia dito muito pouco sobre a cidade, deixando-a apenas com sua imaginação.
Depois de tantas palavras, quando já havia se passado mais de uma hora de discurso incessante, porém em tom suave e discreto, para que apenas sua companheira de banco pudesse ouvir, a senhora finalmente questionou os motivos que levavam Alice a Cachoeira. Ela explicou que havia conseguido um cargo como preceptora na Estância Paraíso, embora não soubesse exatamente onde ficava, apenas que estava dentro do distrito, em direção à Colônia de Santo Ângelo.
— Estância Paraíso? – repetiu a mulher. – Não me soa como um nome estranho. Mas com tantas estâncias, fazendas e chácaras por essa região, seria difícil lembrar. Sabe o nome do proprietário? Talvez pelo sobrenome eu possa identificar.
— Miguel José Fortes Duarte, se minha memória não falha.
— A família Duarte? – A senhora fez o sinal da cruz. – Coitados! Essa família é amaldiçoada!
— Amaldiçoada? – murmurou Alice, contendo o riso.
— Sim. É o que dizem.
E então ela começou a contar a lenda. O avô de seu futuro patrão, o falecido Gumercindo Duarte, era um homem extremamente rico, possuía vastas terras e inúmeros empregados e escravos. Temendo ser saqueado pelos castelhanos, que naquela época vagavam sem rumo, invadindo terras alheias, decidiu enterrar a maior parte de seu ouro em um local escondido. Certa noite, chamou um escravo para acompanhá-lo até uma floresta de araucárias, distante da sede da estância. Chegando lá, ordenou ao homem que cavasse um buraco e depositou um saco cheio de moedas. No entanto, para que não houvesse testemunhas sobre o local, imediatamente após, cortou a garganta do outro e o enterrou junto com o tesouro. Os mais antigos diziam que a alma do escravizado protegeria o tesouro.
No entanto, o negro era recém-casado, e sua jovem esposa logo sentiu sua falta. O estancieiro inventou uma história de fuga, alegando desconhecer seu paradeiro. Chegou até a enviar alguns homens em busca dele. A mulher, porém, não acreditou nessas mentiras, conhecia a maldade do patrão. Foi então que lançou uma maldição sobre a estância, decretando que nenhum dos homens Duarte encontraria o amor nem a felicidade por muito tempo, assim como ela mesma perdera seu amor e sua felicidade.
Dias depois, a esposa do estancieiro adoeceu de uma doença misteriosa. Não demorou muito para que viesse a falecer. O filho mais velho, que na época era apenas uma criança, cresceu e se casou com uma mulher de grande beleza, por quem se apaixonou perdidamente. No entanto, ela morreu ao dar à luz seu segundo filho.
Anos depois, o neto dele, o senhor Miguel Duarte, viveu uma situação semelhante. Após poucos anos de casado, viu sua esposa definhar até que não havia mais esperança de mantê-la viva. Alguns diziam que ela havia sido envenenada, outros atribuíam a culpa à maldição, já que o homem estava perdidamente apaixonado por sua esposa. Por causa disso, Miguel tornou-se um homem misterioso e amargurado, pouco se importando com os filhos por lembrarem constantemente sua amada. Eram tão mal-educados que nenhuma das preceptoras conseguia permanecer por mais de um mês na estância, conforme diziam pelas redondezas.
E agora, Alice estava prestes a adentrar nesse lugar sombrio.
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