Parte 1
22:55, 11 de junho, depois dos strippers
Foi tudo uma grande bagunça.
Foi a pior ideia que já tive.
Sério, onde eu vou parar?!
23:10, depois de uma crise de choro e de talvez ter tacado um bolinho na parede
Eu precisava colocar as ideias em ordem. Olhando de uma perspectiva geral, as coisas não estavam tão ruins. Eu teria que explicar o cupcake na parede para a minha avó, claro, mas poderia justificar que finalmente ela tem um imóvel com cobertura. E dona Teresa riria, pois esse é seu sonho. Também tiraria toda a decoração e os cartazes que colei ao redor da Vaca Foi Pro Brechó, porém isso também não ia tomar meu tempo. A parte logística era o de menos: em duas horas seria como se nada disso tivesse realmente acontecido. O que realmente doía era meu orgulho ferido.
Eu planejei tudo meticulosamente. Coloquei mais esforços aqui do que em toda a minha vida escolar. Eu acreditei na causa, divulguei o evento para todas as garotas de minha idade e colei panfletos nos murais da escola. Como poderia não vir ninguém?! Tinha comida de graça - para quem não compareceu, digo. Porque todos os cupcakes infelizmente saíram do meu bolso. A minha fama na escola era mesmo assim tão ruim? Tão ruim a ponto de sabotarem algo que importava para mim e que poderia fazer a diferença na vida das outras pessoas?
E o pior foi os strippers! Eu mal conseguia pensar nisso sem sentir um misto de raiva com uma vergonha nauseante. Eles chegaram e bateram na porta meu coração se animou um pouco, pensando ser alguma colega minha. Quando vi um bando de caras musculosos com roupas coladas e quepes de policiais eu mal tive tempo de raciocinar o que estava acontecendo. Ainda consigo visualizar perfeitamente o cara de rosto quadrado falando que as solteironas também tinham que se divertir, em uma tentativa falha de soar sexy. Eles invadiram a loja da minha avó sem me pedir licença, rebolando ao som de uma música eletrônica. Quando um deles tentou me pegar pelo braço enquanto os outros começavam a tirar suas camisetas, gritei:
- Não encoste em mim, eu não quero! Eu sou menor de idade, NÃO encoste em mim, a não ser que queira ir para a cadeia! Eu vou chamar a polícia para todos vocês! Eu vou chamar a polícia! Eu não quero vocês aqui!
Eu estava tão aterrorizada com a ideia da vulnerabilidade que mal tive tempo de registrar os seus pedidos de desculpa enquanto saíam apressados. Minhas unhas compridas encontraram as palmas da minha mão e eu suspirei. Não poderia perder o controle novamente, isso só me machucaria e eu não queria desperdiçar outro bolinho na parede. No meio do meu ciclo de comiseração, ouvi batidas na porta. Fui mais esperta dessa vez e olhei pelo olho mágico, suspirando aliviada quando vi a silhueta alta de Dan. Abri a porta em um rompante para observar meu amigo de jaqueta de couro e camisa xadrez com uma sacolinha em mãos. Vê-lo era sempre tão reconfortante, a previsibilidade de como ele se vestia até seus gestos corporais era tudo que eu precisava.
- As garotas já foram? - ele perguntou, dando uma olhada para dentro. Balancei a cabeça veemente, vendo minhas mechas coloridas de relance.
- Elas nunca vieram - disse, com um aperto no peito. O olhar surpreso de Daniel e a forma como ele me analisava com cuidado, procurando alguma rachadura em mim me fez bufar - Entra, vai. Antes que o sorvete derreta e com ele minha vontade de te contar tudo.
***
Voltei da pequena copa com duas colheres de alumínio. Eu amava quando Daniel trazia sorvete de flocos da sorveteria de sua família, Senhor Gelado. Eu não me importava se estava frio ou se estava calor, a sobremesa deles era sempre bem-vinda no meu estômago. Lembro da primeira vez que ele surgiu com a sacolinha transparente e um pote de sorvete e eu quase morri de curiosidade para saber o que ele estava carregando. Poderia ser um peixe, poderia ser feijão, poderia ser uma coleção de conchas da praia. Aquilo se tornou minha Caixa de Pandora por alguns instantes, até ver que era o óbvio. A minha mente sempre percorre o caminho da possibilidade improvável, enquanto a mente de Dan segue uma linha lógica e confiável. Talvez fosse esse o motivo da nossa amizade estranha de três anos.
- Deu tudo errado - disse, lhe estendendo uma colher - Eu não esperava que viessem muitas pessoas. Mas eu também não esperava que não viesse ninguém.
Dan abriu o pote e eu observei seus dedos esguios. Ele me estendeu o pote e eu dei uma colherada generosa. Fechei os olhos enquanto saboreava a textura aerada, os pequenos pedaços de chocolate se derretendo em minha língua.
- Acho que as pessoas tiveram a ideia errada sobre o que você pretendia - Dan disse, de repente. Bufei.
Era sempre essa mesma história que teimava em recair sobre o jeito como me vestia e os movimentos que apoiava. Era como se tudo isso me definisse em um verbete minúsculo de um dicionário estático. Nunca foi novidade que eu era feminista, mas as coisas realmente pioraram quando contei à diretora que Carlos estava assediando a garota tímida, Anne, de nossa classe. Eu não pensei nas consequências do meu ato enquanto dizia tudo para a mulher mais velha. Eu só pensava em como Anne deveria se sentir. Nem passou pela minha cabeça a retaliação que sofreria. Finalmente acharam um motivo para ter o cabelo colorido e usar coturno. E o motivo era: morte aos machos, loucura, falta de valores.
- As pessoas sempre têm a ideia errada sobre o que pretendo, a não ser que planeje a castração de machos. Aí é plausível, aí é a Joana-raiz - dei um sorriso irônico - E sabe? Tudo isso tinha um propósito. Eu estou cansada de ver garotas procurando amor em relacionamentos enquanto não acharam nelas próprias. As coisas finalmente estão mudando nas produções da Disney e nas brincadeiras de infância. Mas sinto que ainda faço parte de uma geração de mulheres que foi educada para cuidar do próximo antes dela mesma. Já dizia Mama Ru: if you can't love yourself, how in the hell you gonna love somebody else?
- Can I get an amen up in here? - meu amigo disse e me ofereceu um sorriso genuíno. Sempre o arrastava para maratonas de RuPaul's Drag Race, meu reality show preferido - Sabe, Jô, tem que ter coragem para ir contra o sistema. Você faz isso com uma facilidade assustadora, porque está dentro de ti essa sede por mudança. Não deve ser tão fácil para outras pessoas escolherem apoiar o que você faz e se ver na mira do Carlos. Não acredito que o que fez foi em vão.
Senti meu celular vibrar no meu bolso esquerdo e li a mensagem: "Espero que vc tenha curtido a minha surpresa. Sua primeira e única chance de chegar tão perto do sexo masculino". O contato não estava salvo no meu celular, mas vi a foto do cara ruivo de sorriso debochado.
- Não foi em vão, foi só outra oportunidade de ele me humilhar. Eu não pensei que aquele moleque pudesse ser tão baixo! - murmurei com raiva.
- O que ele fez? - Dan indagou, unindo as sobrancelhas loiras.
- Mandou um bando de male-strippers para cá. Um deles disse que as solteironas também poderiam se divertir, ou algo do tipo. E acabou de me mandar uma mensagem admitindo a culpa, contando vantagem. Foi repugnante - lembrei, com nojo de Carlos. Vi que Dan parecia uma estátua do meu lado, com o punho cerrado e o olhar de fúria.
- Ele é um babaca. Parece que tem hora que implora para meu punho encontrar aquela cara sardenta - murmurou, o maxilar travado e o rosto vermelho - Mas você está bem? Eles não fizeram nada com você, certo?!
- Se tivessem feito, eu estaria na delegacia agora - peguei em seu antebraço e abri sua mão, desfazendo o formato de quem esmurraria algo - Está tudo bem. Eu gritei com eles, dei um chilique básico e eles saíram. E o idiota do Carlos se entregou de bandeja para mim: eu tenho a filmagem do brechó como prova e a mensagem. Dessa vez vou falar com a mãe dele - dei um sorrisinho vitorioso e fitei meu amigo - Obrigada, Dan. Por se preocupar.
- Eu sempre me preocupo com você - ele soprou as palavras e me encarou com tamanha vulnerabilidade que eu tive que desviar meu olhar. Soltei sua mão. Senti uma sensação gelada na boca do estômago, como se uma brisa marítima tivesse passado por ali.
Aquilo estava estranho demais. Nunca fomos os tipos de amigos afetuosos e nem de declarações em murais online. Éramos amigos pela companhia, pela camaradagem e eu realmente não precisava de mais um motivo para condenar o dia que tanto ansiei. Procurei por um assunto na minha mente:
- Vou ter que desmontar tudo isso. Você me ajuda? - perguntei, já me levantando.
Daniel assentiu com o que pareceu pesar e arrumou o topete loiro com a mão que antes eu segurava.
- Sempre uma honra, Joana. Só espera eu levar essas colheres e o pote para a copa.
Enquanto Daniel estava na cozinha, dei uma olhada ao meu redor. As frases de motivação preenchiam as paredes e a grande cartolina branca, o "Portal das Qualidades", permanecia intocada. Hesitei antes de começar a descolar aquilo da parede a tempo de Dan me perguntar do que se tratava.
- Essa era uma das atividades que tinha planejado. As pessoas teriam que escrever uma qualidade que enxergavam em si mesmas e uma que enxergava nas outras meninas. Era só para estimular o amor próprio e é até meio bobo, mas sei lá. Me pareceu uma coisa legal.
Daniel pegou a caneta permanente que tinha deixado ali do lado e me indagou com o olhar se poderia escrever. O negócio já ia para o lixo mesmo, então não neguei, apenas lhe dei espaço para que ele escrevesse o que quisesse.
- Se é para escrever com essa letra, é melhor voltarmos para os hieróglifos de uma vez - provoquei, enquanto ele escrevia seu nome em um lado da cartolina. Logo abaixo, ele escreveu: centrado. Revirei os olhos. Isso era tão a cara dele, mas Daniel era tão mais do que uma pessoa centrada.
Do outro lado ele escreveu "Joana" e abaixo escreveu: criativa, bondosa, forte. Ele me entregou a caneta.
- Sua vez - declarou e percebi, em sua voz, que estava um pouco nervoso.
Peguei a caneta de sua mão e mordi a tampinha (péssimo hábito que tenho). Do meu lado, escrevi: gata pra caralho. Ouvi a risada rouca de Dan e ri junto. Eu gostava de minha aparência, afinal de contas. Do lado dele decidi escrever: confiável, divertido e amigo para todas as horas. Dei licença para que ele lesse e vi um sorriso tomar conta de sua face.
- Posso guardar comigo? - ele indicou a cartolina e eu confirmei. Tirei com mais cuidado o papel colado na parede e entreguei para ele. Dan arregalou os olhos quando viu rastros de cupcake na parede.
- Você tentou atacar os strippers? - ele perguntou, segurando uma risada.
- Não. Eu tive um surto de estresse - comentei, encabulada - E foi meu primeiro e último. Nas novelas parece mágico quando alguém taca algo na parede. Na vida real a bagunça sempre nos espera.
Peguei alguns panos para limpar a bagunça e terminei rapidamente. Dan permanecia lendo as frases motivacionais que colei na parede, mas era pelo tapete vermelho feito de EVA que ele nutria mais curiosidade.
- Teria um desfile com as roupas do brechó - declarei - É que a pressão estética ainda é forte, principalmente no meio feminino. Eu queria que as pessoas tivessem a oportunidade de se sentirem bonitas, experimentarem coisas novas, desfilarem - dei de ombros. Esse seria o fechamento do Dia da Autossuficiência. Me imaginava anunciando os nomes de cada modelo, e pedindo silêncio para a plateia quando os assovios não me deixassem falar. Teria sido bom.
- Ainda dá para fazer - Dan falou, olhando algumas araras com as mais diversas roupas.
- Eu não ia desfilar, iria ser a apresentadora - justifiquei - Mas você pode, se quiser - desafiei, as sobrancelhas arqueadas. Um fato que talvez não tenha mencionado é que a Vaca Foi Pro Brechó era uma loja de roupas femininas. Só de roupas femininas.
- Eu vou se você for - Dan disse, analisando um vestido florido. Eu ri, imaginando meu amigo retraído fazendo isso. Nos trotes de oitava série ele se recusou a participar de qualquer trote que o fizesse tirar o moletom cinza que tanto usava. Com o passar do tempo, ele o trocou pela jaqueta de couro sintético e não o vi sem desde o começo do outono.
- É um trato.
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