2. Galáxia ocular



O

minúsculo feixe azulado causara problemas e minuciosos estragos. A princípio, todos pensaram se tratar de uma ilusão. Contudo, a batida iminente e os gritos do motorista evidenciaram o fato daquilo ter sido mais que real.

— Corre, Berg! — Jeno puxou Renjun para juntos darem no pé e deixarem aquela situação como estava.

— O que aconteceu? De onde veio aquilo? O que era aquilo? — eram as perguntas que não saíam da boca do motorista carrancudo, de olhar careta e raiva notória. Ele deixou o veículo e analisou os estragos.

— Eu não sei o que aconteceu, mas vamos de bicicleta! — Renjun empurrou grosseiramente o pedal e tratou de deixar o local, não importando-se com a demora de JaeNo em fazer Jaemin sentar sobre o veículo.

Logo os três estavam na ciclovia, como se fossem ladrões que fugiam. Mas, também, eles tinham feito algo muito de errado e não ficariam por lá para esperarem os dedos adultos apontarem para seus rostinhos jovens e inocentes. Ou talvez fosse assim que apresentaria todos: ingênuos que não sabiam o que raios tinham feito de mais. Embora conscientes dos seus atos, a arte de defender-se era a única salvação para os três. Renjun, por sua vez, com sua lábia inesgotável, provavelmente se safaria com um olhar ressentido sobre os demais garotos e, tristonho que só ele, alegaria que não queria ter de contar quem eram os culpados pelo incidente com o laser. "Fui uma vítima", era o que diria. Mas olha ali ele pedalando como se não houvesse amanhã e, caso chegasse a existir, ele estaria num num lugar tão longe que, mesmo se ali já fosse o amanhã, naquele lugar ainda seria o hoje.

— Renjun! Vamos para a biblioteca do outro lado da escola! — Jeno gritara displicente.

Jaemin, por sua vez, estava encantado com os arredores: as árvores, as casas, os carros, as lojas, as ruas, o chão, o céu, os objetos, as pessoas e seus gestos. Tudo era como num conto de fadas, e seus olhos brilhavam a medida que Jeno acelerava aquela coisinha estranha e exótica chamada bicicleta. Era divertido estar ali, mesmo que tivesse um tubo de ferro incomodando o seu bumbum. Mesmo assim. Porque, pela primeira vez, não havia monstros horrendos com armas brilhantes e grotescas apontando para a sua cabeça enquanto tentava escapar das suas garras medonhas. Não. Honestamente, Jaemin estava amando estar praticamente sendo abraçado por Jeno e sentir o vento cortar o seu rosto bonito.

— Jeno... eu posso gritar? — perguntara gritando.

— Hein? Faça o que quiser, importante que não nos derrube! — houve a resposta do Lee.

Felizmente, Jaemin estava à sua frente e seus gritos não seriam tão incômodos, como seria caso estivesse atrás do outro. Segurou-o firme, com os lábios secos por conta do gélido vento e o queixo próximo ao seu ombro. Jaemin abriu a boca e gritou de modo infantil e encantador, ainda maravilhado com todas as cores e objetos, ainda amando cada coisa dali. Pensando bem, a Terra não era tão ruim, como Jeno havia contado no dia anterior. A Terra era bonita, divertida, cheia de criatividade e sabores únicos. Ainda tinha muito o que ver, sabia disso, muito o que tocar e muito a sentir e provar. Por ora, apenas gritava pelo êxtase que era estar ali e vendo aquilo tudo.

— Nada de atirar, falar nem destruir — foram as instruções de JaeNo no momento em que puseram os pés na biblioteca municipal — Nada de dobrar as folhas, e isso se incluiu na destruição. Não pode comer também e nem roubar livro algum. Como você não tem cadastro, não pode levar para casa.

Obediente como era, Jaemin concordava com um gesto da cabeça. Seus pés deslizavam sobre o piso lustrado e os olhos corriam por cada prateleira mágica presente naquele lugar. Cada livro era especial em si, do mesmo jeito em que ele também era.

— Não pode peidar, nem arrotar e tampouco fazer barulhos incômodos — ainda falava o Lee.

— Por que estamos agindo como se ele fosse um idiota? — Renjun mostrou-se impaciente, como sempre fora.

— Porque ele não sabe de nada disso — NoNo virou-se para o chinês.

— Qual a prova? Ele é uma pessoa normal, Jeno. Quem é que não sabe como se comportar numa biblioteca? — indagara com um ar óbvio de indiferença. Era notória a insatisfação e o sarcasmo presente na voz.

Jaemin erguera a mão, desconhecendo ele que esta poderia ser considerada uma bela imitação de criancinhas na segunda série quando perguntadas sobre se sabiam ler.

— Se você não acredita, Renjun, eu não tenho culpa. Ah, vem, Jaemin, eu vou te levar para onde tem computadores. Aliás, não pode fazer pesquisas impróprias por aqui — alcançou o seu braço e puxou-o delicadamente, sabendo ele que Jaemin viria junto a si e seguiria os seus passos.

— O que seria impróprio? — quis saber.

Renjun revirou os olhos:

— Vídeos impróprios.

— O que seriam vídeos impróprios? — tornou a perguntar.

— São vídeos que...

— Shh — irritada, a bibliotecária, cuja estava a cair em pedaços de tamanha avançada idade, fez um gesto com indicador para que calassem a boca.

Renjun pôs as mãos dentro do bolso do casaco e dissera:

— Eu detesto a biblioteca.

— Não ouse ensinar esse tipo de coisa para o meu bebê — Jeno repreendeu-o pelo o que antes estava dizendo.

— Eu sou seu bebê? — sorriu esperançoso o Na, com um brilho quase sobrenatural nos olhos. Era óbvio que portava a tênue esperança de Jeno concordar com o dito. Sobretudo porque ele acreditava naquilo, mesmo que o olhar de Renjun fosse azedo e escuro.

— Aish, vocês são melosos! Há quanto tempo se conhecem? Doze horas? Seis? Oito? — sua comoção para com a relação afetiva entre o Na e o Lee era visivelmente fria. Não encontrava motivos para detestá-lo, mas era uma coisa a qual não podia acreditar nem que tentasse.

— Não estamos namorando, imbecil. Eu sou protetor dele, o paradeiro neste exato momento. Não quero devolvê-lo ao espaço traumatizado — apressado, explicou-se JaeNo. As mãos grandes ainda seguravam o braço de Jaemin, mas logo soltaram-no pelo desconfortável que tornara-se aquela situação.

— Senta lá, Cláudia — Huang brincara com desdém, sem saber o qual incompreensível estava sendo com aquela ladainha.

— Quem é Cláudia? — Jaemin sentou-se na cadeira giratória à frente o computador e passou a digitar incoerências na tela de espera para o uso.

— Regra número um: nada de explicar memes, piadas podres e tampouco acontecimentos dos anos noventa para cá — Jeno simbolizou o número um com o indicador erguido. A verdade é que ele estava desesperado e ansioso para que pudesse mostrar o pouco do mundo que podia e demonstrar a sua profunda admiração pelo castanho de galáxia ocular.

— Ah, só pelo simples fato do mangá se passar nos anos noventa? — Renjun recebeu uma meneada da cabeça como resposta — Que ridículo! Bem sabe que a tecnologia usada por ele nem existe ainda.

— Pois é tudo ficção — explicara Lee, calmamente. Abanou as mãos como quem quisesse pedir para deixar certos detalhes de lado, e pôs-se a prosseguir — Mas a questão é que devo mostrá-lo a Terra e a nossa época, Renjun. Você poderia me ajudar, se não fosse tão estúpido.

— Eu? Estúpido? — apontou para o próprio peito, cheio de si — Poupe-me, Jeno! Quem, em santo juízo, acreditaria numa barbaridade dessas da manhã para a tarde? Porque foi exatamente isso o que não aconteceu ontem.

— Deixa de ser teimoso e encare os fatos — as mãos do moreno Lee foram levantadas para a direção do Na, o qual fitava-os com a displicência habitual e um ar incômodo.

— Desculpem por estar sendo motivo de briga entre vocês dois — a voz de Jaemin apresentou-se embargada — Vocês poderiam parar com isso?

— Donde você veio? — Renjun aproximou-se dele — Não creio que de muito longe... Como não tenho paciência para ler aquela porcaria de mangá — e então ignorou o olhar zangado do Lee —, peço que me explique a sua mísera trajetória de vida e então decido se acredito ou não, se te ajudo ou não.

— Meus pais foram astronautas. — iniciara Jaemin — Minha mãe morreu ao me conceder. Meu pai, meses depois, mas somente para me proteger. Aprendi tudo o que pude com a tripulação da nave espacial, numa missão secreta de pesquisa sobre um possível povoamento em Marte. No entanto, um evento um tanto curioso matou grande parte dos cientistas com os quais cresci, sendo eu e uma migalha de gente evacuar de emergência e deixar o planeta vermelho. A partir daí, passei a viver por conta própria, já que tivemos de pousar em Júpiter e nem todos sobreviveram a falta de alimento e o excesso de sequelas. Enfim, fui nomeado Captain Na em respeito ao meu pai, então vivemos viajando e conhecendo novos planetas e seres. Sei que tudo isso pode ser ladainha científica, mas as coisas tornaram muito difíceis a partir daí.

"Eu não sabia que havia de ter monstros e seres alienígenas nessa galáxia, mas pude provar um pouco disso desde os meus dez anos. Sei falar vários idiomas, e apenas dois deles são terráqueos: inglês e coreano. Eu tive que me adaptar a diferentes climas, tempo e ambiente. Cheguei à beira da morte inúmeras vezes, a mesma quantidade de fome que passei e ferimentos graves. Sei usar uma arma laser como ninguém. Sempre andei com a adaga do meu pai dentro da bota e desenvolvi um sistema de defesa mais eficiente à minha nave, tornando-a invisível em qualquer lugar. Honestamente, eu nasci há mais ou menos cem anos, baseando-se no tempo da Terra. No entanto, a idade a qual realmente tenho é dezoito. Me chamo Na Jaemin, mais conhecido como Captain Na, e sou o demônio mais encantador que você merece conhecer.

— ... e eu sou o demônio mais encantador que você merece conhecer — Jeno recitara aquela famosa frase de efeito do outro, dita a cada indivíduo que viesse a inimizar por quaisquer que fosse motivo. Os olhos estavam fechados e o tom emocionado, alegando que estava sentindo-se honrado por ter escutado aquilo bem ao seu lado.

E, como sempre, Jaemin terminara com um sorriso angelical e um aegyo. Lee estava prestes a desmaiar.

— Autobiografia é tudo — Renjun aplaudiu-o ironicamente, rindo mais com o drama apaixonado de Jeno do que com o jeitinho meigo do outro Jae.

— Meu Deus, eu te amo! — Jeno pulou e sacudiu-o, apertando-lhe as bochechas e chacoalhando-lhe os ombros. — Se puder casar comigo, eu agradeço muito!

— Pode ser! — aceitou feliz, animado com toda aquela ideia inédita ao seu ver. Deixou-se ser tocado, abraçado e elogiado. Seu sorriso não sumia, pois era gratificante sentir-se daquela maneira.

— Ei, deixa disso! Vocês não vão se casar! — o chinês interpôs — Aliás, bonita história, Captain Na — riu com a nomeação —, mas não me convenceu nem um pouco.

— Ah, qual é, Renjun? Você é um velhote chato e sem graça — aborrecido, fizera beicinho e cruzara os braços — Não vamos chegar atrasados pra escola só porque você se rejeita a admitir que estava errado o tempo todo. Então vamos, vovô — para ter a certeza de que cutucaria-o de jeito, decidiu provocá-lo ao pronunciar o vovô em chinês.

— Céus! Eu te odeio, Lee Jae No! — bateu-lhe o braço — Eu te odeio no fundo do meu coração!

— Não diga isso! — Jaemin pedira — Jeno, não deixe seu amigo fazer isso com você.

— Eu me chamo Renjun, ok? Não sabia que também desenvolveu habilidades de surdez...

— Você não se apresentou para mim.

— E nem você.

— Então não nos conhecemos.

Renjun rosnou.

— E minha mãe disse que não posso falar com estranhos. — pela primeira vez, Renjun fora imaturo o suficiente para dar-lhe a língua e puxar Jeno pela manga de couro da jaqueta jeans — Adianta, Jeno, ou vamos nos atrasar.

Jaemin olhava-o com ternura, ainda que este demonstrava impaciência e falta de cordialidade. Aprendera a lidar com as pessoas, de algum modo, não sendo isso explicado pela sua gente séria e um tanto controladora. Seus olhos brilhavam a medida que vira-os afastarem-se. Não era uma questão total sobre sentimentos, já que a sua ida à Terra despertara algumas emoções antes congeladas e pouco usadas ao decorrer da sua vida. Sempre usara o lado racional da coisa, julgando através do seu senso de justiça e agindo após pensar duas ou três vezes. Nada era por impulso e tudo era calculado. Agora, porém, as coisas sentimentais começavam a desabrochar, feito uma flor após a desordem do inverno.

O tempo gastara para pensar, enquanto ocupara as suas mãos ao tentar dar um jeito no seu relógio para que pudesse rastrear a nave. Lembrara-se vagamente de Vênus, de uma saída súbita e de atirar numa nave frente à sua. Recordou-se de uma luz intensa e gradual, de um tombo e algo acertar a sua perna. No segundo seguinte, acordar num quarto extremamente desconhecido numa casa estranha e num planeta que, embora habitado pela sua espécie, não era e estava longe de ser o seu lar.

Horas e horas com o mesmo sistema: um monte de 1 e 0 sem parar. Os olhos estavam cansados, bêbados e imploravam para afastarem-se daquela tela prejudicial. Checou o horário e bocejou, com o corpo exausto da péssima noite de sono que tivera de enfrentar na casa de JaeNo. Ao passo que as horas avançavam, sua vontade de continuar aquilo ia por água baixo. Enfim, decidiu que não faria aquilo ali e naquele momento, pois ser um tonto idiota desesperado para voltar para lugar nenhum, não era exatamente uma das melhores coisas. Não tinha casa, não tinha família e nem um momento satisfatório o suficiente para que buscasse-o nas memórias e aludisse a recordá-lo para suprir a sua solidão.

Guiado por passos confiantes, chegou até as prateleiras e passou a agarrar cada livro como se fossem maçãs que estivessem a cair da macieira. Tinha fome e sede, mas prometeu não sair dali até que Jeno viesse. E quando o Lee veio, estava ele jogado de qualquer jeito sobre a poltrona marrom-claro da biblioteca e lendo uma fantasia que parecia real, comparada a tantas coisas que viera nos seus longos dezoito anos de vida — ou cem, dependendo do planeta.

— Comportou-se bem? — o seu protetor quisera saber, sentando-se ao seu lado.

— Sim, mas agora me sinto sufocado. Eu preciso comer, Jeno — cruzara os braços e piscou os olhos pesadamente.

— O que quer para comer? — sorriu-lhe.

Era óbvia a resposta, conhecendo que Jaemin sabia o nome de um único prato o qual pudesse esbaldar-se:

— Lámen!

E lá estava Jeno, sugando o seu lámen com pouca vontade de comê-lo e assistindo o Na atacá-lo com ardor e amor. Enquanto isso, ao seu lado, Renjun trocava mensagens com alguns amigos do clube o qual participava.

— Come, embuste — pediu Jeno, cobrindo a tela do celular do outro com a própria mão.

Renjun revirou os olhos e fez o que fora dito.

— Não podemos deixá-lo na biblioteca todos os dias, Jeno — ia dizendo Renjun — Vai ser cansativo para ele e não somos monstros.

— Então você está envolvido? — Jeno abriu um sorriso de lámen.

— Eca! — riu — Acho que sim. Alguém mais sabe, exceto nós dois?

Jeno negou com a cabeça.

— Então estou mais que envolvido nesta merda — Huang reclamou, tendo o cuidado de mastigar antes de falar, o que era o total oposto de Jeno — E se der ruim?

— Só se você abrir a boca — encolheu os ombros.

— Querido, eu já estou na porcaria da merda, se eu falar alguma coisa, eu vou afundar mais ainda! — bateu rudemente a palma da mão na mesa.

— Regra número dois: nada de xingamentos perto do meu bebê — levantara dois dedos simbolizando o dito — Ouviu direito, Renjun?

— Não! Eu sou que nem ele: surdo — Renjun amava ser sarcástico.

Atencioso, Jeno pegou o guardanapo e limpara os lábios melados do Na. Sorriu-lhe após o feitio, acariciando-o delicadamente e carinhosamente a nuca. Com o coração palpitando, Jaemin teve de largar o hashi ao perceber a proximidade do Lee. Sentia-se encurralado naquela cadeira, mas era uma sensação de desespero por nunca ter chegado a acontecer de uma maneira tão agradável como aquela. É fato de que todo o ser humano tem medo do desconhecido, e mesmo que não tenha nascido naquele corpo celeste, ele era um e carregava em seu ser as mesmas características humanas.

— Você vai mesmo beijá-lo na minha frente? — Renjun sabia que atrapalhara o que quer que fosse acontecer, mas seria um tanto incômodo e enjoativo ser ele a vela da situação atual. Vendo a tamanha proximidade e as tais expressões de ambos, estava mais óbvio que verde-cana néon o fato de ambos estarem prestes a terem um momento romântico entre os dois. Huang sentia que iria desmaiar: o calor subindo-lhe a face e as mãos trêmulas; aquela vindo a ser ruborizada, esta suando como se estivesse a fazer atividades físicas.

Aquilo surtiu efeito, pois, assustado, Jeno recuou e pigarreou para disfarçar.

— Por que eu beijaria ele? Deve ter gosto de mangá — encolhera os ombros e afastara-se do Na — Gosto de papel.

— É, deve ser — concordou Renjun.

Jaemin observou os dois atentamente, com um olhar perdido e as esperanças destroçadas. Um beijo. Talvez fosse ter um beijo ali, mas as palavras do seu novo amigo cortara e puxara a raiz das suas fantasias. Provavelmente Jeno não fosse beijá-lo, afinal, e sim ajeitar a franja que estivesse fora do lugar ou um cílio na bochecha. Beijar, não. Jeno não beijaria-o.

— Nada contra o gosto de papel — voltou a defender-se — E nem a Jaemin. Na verdade, eu gosto dele com enorme admiração, não atração.

— Ok — Renjun concordou com a cabeça.

Captain Na alcançou o hashi e retomou à refeição de lámen que tanto amava. As mãos eram rápidas ao manejar e as mastigadas eram precisas e intensas. Apesar de estar sentindo-se decepcionado pela opinião de JaeNo sobre o seu beijo — este o qual ainda não tivera a honra de experimentar —, era otimista e fixou a ideia de que apenas tentaria conhecer o lugar e as pessoas. Ao fim da refeição, balançou as pernas a esmo, tentando distrair-se da sensação de vazio no peito. Eram os hormônios, afinal de conta, por estar próximo de Jeno e sendo ele quem segurava-o e levava-o carinhosamente para cada canto daquela cidade. Seria feição, então, o culpado por aquele sentimento estranho.

— Vou para casa — decidira Huang, levantando-se da cadeira e pondo o dinheiro referente a sua parte da conta.

— Vai pelas sombras — acenou-lhe Jeno — É sério, o sol está violento ultimamente.

— Olha que fofo, ele atencioso! — brincou Renjun, acariciando dramaticamente o queixo nu do melhor amigo — Tchau, Pedaço de Papel!

Jaemin acenou e respirou fundo. Ao passo que o amigo de Jeno deixava o restaurante, ele sentia os ombros ficarem mais leves e, embora o moreno não tivesse encarado-o desde o possível beijo, decidiu tocar seu braço para chamar a sua atenção.

— NoNo — assim apelidara-o, adocicando mais a voz, como o ato de jogar açúcar no mel — Eu queria ver o mar.

— O mar?

— O mar.

— Por quê?

— Eu li num livro — estalou os dedos — Foi legal de ler, então eu queria estar lá.

O chamado NoNo concordou com a cabeça, não tardando a terminar o seu lámen. Pagou tudo e hesitou em segurar a mão do Na, mesmo que soubesse que sua curiosidade faria-o perder de vista e seria provável que nunca mais se encontrassem, concluindo pela enorme Seul e tão cheia de pessoas. Portanto, alcançou a mão quente do Min e levara-o para o ponto de ônibus mais próximo. Tentara ao máximo explicar como funcionava as linhas de ônibus e as suas rotas, mas estas ficaram vagas na cabecinha do outro. Apontara estabelecimentos, outdoors e até cachorrinhos de rua — lamentara Captain Na pelos pobrezinhos famintos e solitários. Afagara-lhe o dorso da mão, o joelho à vista e o calcanhar; este ao dispor-se a amarrar o tênis.

Roupas, calçados e acessórios: todos vindos do guarda-roupa farto do Lee. Felizmente, não havia grande diferença entre a numeração usada entre os dois, por isso podiam vestir as mesmas roupas sem preocupações alguma.

— Falta quanto? — inquietou-se o Na, batendo freneticamente os pés no chão do coletivo.

— Um pouco, apenas seja paciente! — Jeno imitou o que seu pai tanto dizia quando viajavam.

— Já fui até demais.

— Mas já estamos perto. Falta só um tantinho. É longe mesmo.

E, realmente, era um pouco longe de onde estavam. Mesmo assim, Jaemin fora paciente, ainda que movido pela curiosidade. Ainda precisava experimentar a chuva, a grama, as árvores e roupas em liquidação. Tinha tudo aquilo nas palmas das mãos, mas não podia estar em lugares diferentes ao mesmo tempo. Tragou o ar e levou-o ao pulmão, certificando-se de manter na memória o cheirinho da poluição. Essa era uma característica marcante, realmente, o fato de não precisar usar um capacete e ter oxigênio em fartura para inspirar e expirar.

— Nada de espiar — Jeno cobria seus olhos e instruía-o com comandos sobre se deveria andar e quando virar. Estavam na calçada, prestes a pisar na areia.

Na deleitou-se no cheiro do mar, os olhos marejados de ânsia e emoção, os pés irrequietos para correr. A extrema confiança que desenvolvera por Jeno era o que fazia-o ainda estar estático naquele lugar. As ondas eram como músicas, a brisa fresca e o cheiro único inundava-o pelo gozo da vibe positiva daquele lugar, a qual avolumou a lástima do tempo perdido que passara no espaço; quis culpar os pais pela irresponsabilidade de conceber-lhe longe da Terra. Daria tudo para ter crescido ali, para ter sido um bom filho; correr pela areia da praia, andar de bicicleta com o pai e esconder o boletim quando viesse — pois fora isso o que escutara de JaeNo ao vê-lo enfiar um pedaço de papel debaixo do colchão, na tarde anterior. E, recordando-se disso, uma linha de pensamento puxara-o para aquele mesmo ponto crítico e agonizante: gosto de mangá, gosto de papel.

Sorriu, porém, determinado a não aborrecer-se com palavras equívocas ao seu respeito. Contudo, analisou aquela indagação: será que eu nunca fui beijado, não pela falta de um par romântico, mas por ser sem gosto e horrível como papel? Pena que não podia beijar a si próprio, apenas para constatar que seria verdade.

— Agora! — Jeno afastou a mão dos seus olhos e permitiu-o dar a primeira olhada real numa praia de verdade.

A cor da areia era tão bonita! E o mar? E as ondas? Tudo era belo e perfeito! Aquele azul intenso, o cheiro que clamava pela sua vinda. O mar gritava o seu nome, atraía-o. Ele queria ir, como pescador em canto de sereia. A eloquente vontade de tocar a areia, de rolar, jogar para todos os cantos... Tudo isso era mágico e surreal. Seria esse o tal delírio que escutara falar? A loucura? Uma miragem?

— Eu posso ir? — sua voz falhou pela contingência.

— Tira o tênis, antes — Lee agachou-se para o próprio ajudá-lo naquela missão — É mais gostoso.

Livrou-se do tênis e das meias: a correria era intensa e ligeira. Seu sorriso era brilhante e as mãos abanavam enquanto a boca deixava escapar gritos de surpresa. Parecia uma criança, o tal do Na, de tamanha desordem a qual postara-se no ambiente marinho. Dizia que a areia era estranha de se sentir, mas era boa e gostosa. Implorou para que Jeno viesse a sentí-la também, para que corresse com ele e brincassem.

— Não, eu não gosto muito da areia. — negou-lhe o pedido — Da última vez que brinquei com ela, voltei pra casa com areia até na bunda.

— Woah! Como se faz isso? Eu quero! — pulou alegremente, chutando aquele granulado e implorando para que o Lee viesse.

Enfim, Lee JaeNo decidiu que iria, mas somente porque era o dia do Na e ele deveria ser tratado de forma especial. Desamarrou o tênis e deixou-o ali perto, juntamente com o outro. Jeno sorria com os olhos, não só com os lábios. Hesitante, caminhara vagarosamente sobre a areia da praia.

— Ei! — Jaemin correra na sua direção e subira nas suas costas — Me leva para o mar, NoNo? Eu tenho medo de ser puxado pelas ondas...

— Jesus, Maria, José! — fez um esforço para ajeitar Jaemin sobre a parte posterior do seu corpo — Você é meio pesadinho...

— Como é que é?

— Nada...

— Mas, por favor, entra no mar comigo! — sacudira-se infantilmente, puxando-lhe as bochechas e gritando ao pé do ouvido: — Por favor, NoNo, por favor!

Para o fim sucinto daquele berrante em sua cabeça, segurou-o firme e caminhara até o mar. Pouco importou-se com a calça molhada, apenas avançou mais e mais. Nem por isso Jaemin cessava os gritos, infelizmente. Onda vinha, onda ia e os gritinhos infantis estavam presentes. A medida que Jeno avançava, o Na ficava com mais medo e uma onda de arrependimento cobria-lhe a mente. Olhava para o lado: mar. Para o outro: mar. À frente: mar. Para trás: mar. Sentia-se em pânico.

Ele estava assustado, pois não havia como evitar o sentimento de terror ao ver que estava praticamente no meio do nada. Agarrou-se ao No e cravou o rosto em seu pescoço, negando-se a olhar mais uma vez sequer para aquela imensidão azul.

— Me tira daqui — pediu — Vai, Jeno, me tira daqui!

— Não, não — abanou a cabeça — Agora você vai descer e conhecer realmente o mar.

Jaemin podia jurar que o outro fosse largá-lo sós com o mar, daria no pé e esqueceria-o rapidamente, mais pela sua expressão do que pelas mãos no seu calcanhar, puxando-o lentamente para baixo. Todavia, não fora exatamente como o Na imaginara. Ponderava demais, admitia, e 99% disso dava-se apenas por ilusões púberes, sem braço, pé e nem cabeça. Não culpava ninguém, obviamente, pois estava em terras encantadas, pelo seu ver: ele era a Alice e aquilo era o País das Maravilhas. As coisas eram diferentes, entretanto, principalmente por não haver coelho algum e nem bebidas e bolinhos estranhos. Desconhecendo essas histórias, sua analogia mais próxima fora de um astronauta perdido em si que, por esmero, viajara entre dimensões e viera a estar numa terra completamente oposta do seu corriqueiro. Ele sentia-se assim.

— Jeno, eu vou te matar! — gritara quando estava a poucos centímetros da água. Isso não persuadiu-o e nem amedrontou-o. Fez o contrário, pois Jeno estava inspirado a jogá-lo de bunda na água marinha.

O berro que Jaemin deu fora escutado por até quem estivesse do outro lado da calçada e, além disso, provavelmente nos apartamentos dos ricos desocupados. Jeno não sabia quanto custava o seu rim, mas sabia que teria de vender no mínimo um apenas para ter um apartamentinho minúsculo na praia.

— Meu Deus, é muito salgada! — exclamara Jaemin, após voltar para a superfície com todo o corpo molhado e uma expressão de surpresa — Experimenta, Jeno! — ingênuo, pegara um punhado de água e erguera próximo ao rosto do outro rapaz.

— Eu sei como é — rira, principalmente da carinha de dó vinda do Na, após assistir a água escapar-lhe dos dedos. — Eu estou me perguntando como vamos voltar para casa...

— Pensa nisso depois! — abraçou-o rapidamente — Por que não comemos um pouco?

JaeNo concordou, pensando em que raios de lugar iriam aceitar cédulas ensopadas como pagamento. Por sorte não despedaçaram-se em seu bolso, o que era um total alívio, levando em conta que era o único dinheiro vivo que tinha no momento. Ele compraria algo de gostoso para o Na, os dois comeriam felizes e, após aquilo, voltariam para o cais; sua casa.

Dessa vez, Jaemim voltara com seus passos exagerados e berros desnecessários, embora fossem a sua única forma de se expressar. As ondas empurravam-no, e sendo frágil quanto a isso, jogava-se nos braços de Jeno e não permitia soltar-se até ver a onda quebrar-se por completo.

Ao chegar na areia, Jeno teve o desprazer ao constatar que ambos tênis haviam sumido da areia. Procurou, procurou e nada de encontrá-los.

— Ah, eu não acredito num negócio desse! — bagunçou o cabelo, preocupado e agoniado com a situação — Jaemin, a gente mora na casa do carambola, como é que vamos sem nossos tênis?

— O que aconteceu, NoNo? — apertou os olhos encantadoramente, devido ao sal que irritara-os.

— Que tipo de doente mental rouba tênis? Aish, eu vou dar na cara de alguém! — virara-se para os lados, tentando achar alguém a espreita e gritou: — Olha, seu filhote de dragão, você devolve a merda do meu tênis senão vou sentar minha mão na tua cara!

— Senti cheiro de vergonha alheia — Jaemin sussurrou.

— Se tu quer um sapato, eu vou dar uma sapatada na tua cara! — caminhava pela areia, ignorando olhares tortos sobre si — Eu 'tô sem acreditar que roubaram meu sapato! Meu sapato não, cria do ruim! Eu comprei essa porcaria mês passado, minha mãe vai me chicotear todo se eu não aparecer com meu pisante em casa! Acha que foi quanto?

— Jeno... — Jaemin chamara-o, tentando informá-lo da presença de dois garotinhos com ambos tênis em mãos.

— Espera aí, Jaemin! Você tem aprender comigo as técnicas de guerra: primeiro você provoca e depois cai pra cima. E eu estou esperando esse homão todo que roubou a porcaria do meu sapato e se escondeu por aqui. Roubava meu dinheiro, seu estrume de vaca! — fincou os pés na areia e cerrou os dentes — Bota a base aí, parceiro!

— Moço, o senhor está olhando para a direção errada — um dos meninos chamou-lhe a atenção.

Enfurecido, Lee virara-se para trás e encarou ambos capetinhas.

— Ah, então foram vocês? — aproximou-se dos meninos — Devolvam! — levantou a mão, pacientemente esperando que os garotos devolvessem o roubado.

— Vem pegar, seu estrume de vaca! — chutou-lhe areia no rosto e deu o pinote, afastando-se rapidamente do Lee.

Jeno fora acertado em cheio pela areia molhada e até recuou meio aturdido. Convocado pela raiva, jogou uma das pernas para frente e, quando deu-se conta, estava fazendo um cosplay de Usain Bolt descalço na praia, atrás dos filhotinhos do capiroto, e correndo o risco de cortar-se com alguma concha quebrada que estivesse voltada para cima. Não obstante, estava claro que os meninos conheciam bem a região, pois saíram da área da praia e foram orgulhosamente para a calçada. Mas era fresco, o JaeNo, e apenas uma ínfima menção sobre tocar os pés descalços no chão da rua era absurdamente equivalente a uma morte lenta e dolorosa, muito capaz de fazê-lo desmaiar repleto de terror.

Jaemin, por sua vez, apenas cruzou os braços e se divertiu com a hesitação do outro em caminhar sobre o asfalto. NaNa não sabia que não era um simples drama, pois ali estava realmente quente para um final de tarde. Viera perceber só depois, quando Jeno voltara exausto e cansado, com os pés vermelhos e um olhar perplexo.

— Eles fugiram — falou o perceptível — Filhos da mãe!

— Você está bem? — perguntou.

Jeno respondeu com uma balançada da cabeça, depois respirou fundo, sentando-se na areia e agarrando a mochila da escola, agradecendo por ela ainda estar ali e com medo de ela ser a próxima sequestrada.

Jaemin sentara também e os dois ficaram a assistir o crepúsculo. O sol timidamente sumia, deixando os últimos e alaranjados raios como lembrança na memória de quem fosse encontrar a noite. As mãos grudadas na areia e ombro grudado ao outro era como estavam ambos Jae. Descalços, cansados, jovens, meigos e quentes. Eram apenas duas máquinas de hormônios sendo iluminadas pelo poente astro-rei.

— Se você me escapar, Jaemin — falara Jeno, baixinho, segredando até para si mesmo — Promete seguir o sol e se encontrar comigo onde quer que estiver?

— Seguir o sol para te encontrar? — seu rosto voltou-se para o Lee — Como voltar para casa?

— Como voltar para casa — sorriu, fazendo o sol um mero novato na arte de brilhar.

E mais tarde, quando comiam um punhado de caldos, legumes e carnes, Jeno ia pensando sobre a velocidade com que as coisas se desenvolveram. Seu peito ardia de sentimentos pelo Na, e este era tão amável que era comum pensar na possibilidade de ser alguém fictício. Não, não queria voltar a pensar sobre em como o irreal viera a ser real, apenas prometeu a si mesmo que protegeria e daria o melhor de si para o Captain Na, independente de ser fruto ou não da sua imaginação, independente do local e tempo em que encontrava-se.

Andava na pontinha do pé, com medo de expor todo o seu pezinho no asfalto sujo da rua. Jaemin estava despreocupado, caminhando ao seu lado com uma casquinha de sorvete, lambendo os dedos por conta da sua lerdeza em tomar o alimento e por conseguinte este derreter-se e escorrer pelas mãos. Não se importava com olhares tortos e insignificantes, apenas lia os letreiros dos ônibus e, com a outra mão, segurava a de Jeno.

— Ei, NoNo, aquele não é o ônibus para o nosso bairro? — apontou para o coletivo que estava parado no ponto de ônibus o qual eles se dirigiam.

— Ai, merda! Corre, Jaemin! — frescurento, soltara gritos agudos a cada passo dado na sua corrida. Se já não bastasse estar sem sapato, ainda tinha de correr para pegar o ônibus? Ele detestava ser dramático, mas não sentia que a situação pudesse piorar.

NaNa fora mais rápido, pois alcançou a porta segundos antes do Lee. Virou-se para trás, a fim de ter a certeza de que o amigo estivesse atrás de si. Entretanto, a imagem vista fora de um moreno bonito jazido no chão, vítima de olhares divertidos e ao mesmo tempo preocupados.

— Que teve, Jeno? — voltou para acudi-lo.

— Eu caí — contou o outro — Sobe logo, eu estou morrendo de vergonha!

Pagou apressado, enfiou-se no último banco e cruzou as pernas sobre a coxa para não encostar o pezinho delicado em objeto algum daquele lugar sujo. Ele via germes em tudo, então era angustiante tocar os pés no chão. Se não bastasse as mãos...

— Hoje vamos fazer um tratamento para limpar as porcarias dos nossos pés — explicava ele durante o caminho.

Aconteceu o narrado por ele, com todas as letras e as sílabas. Um tratamento elaborado pelo próprio, é claro, feito e planejado ao momento. Os materiais não passaram de duas bacias, água quente, sal, limão e uma pitada de álcool. Seria uma boa mistura, caso ele tivesse consciência do que estava fazendo. Banhara-se demoradamente e sentou-se no sofá, assistindo TV com Jaemin e os dois pares de pés dentro das bacias com o tratamento inovador de autoria Lee.

— E se eu ficar sem pé? — Jaemin interrogava-o, ainda hesitante com aquela ideia excêntrica do mais velho.

— Relaxa, NaNa! Cola comigo que eu te levo pro lugar certo, colega! Se me tem como companhia, não precisa de mais nada! — bateu no próprio peito, cheio de si.

— E se eu desenvolver algum tipo de infecção ou doença?

— Sem esse tratamento, sabia que você poderia ter lepistospirose?

— É leptospirose — Jaemin corrigiu-o — Passa toda hora na TV, como não consegue falar certo?

— Aish, vai dar uma de Renjun agora? — cruzou os braços — Apenas confie em mim e tudo irá ficar bem.

Uma hora e meia fora o suficiente para os pés ficarem enrugados de tanta água. Jaemin praticamente dormia sobre o ombro do amigo, o qual fingia estar um tanto incomodado com aquilo. Seu bebê estava um amor naquele conjuntinho listrado de pijama que JaeNo viera a ganhar dois anos atrás, de Natal do seu tio turista que mais andava no exterior do que na própria Coréia.

— NaNa, deixa eu enxugar seu pezinho de bebê — candidatou-se para ajudá-lo, tirando o par de pés do Jaemin da bacia e puxando-os para cima da sua perna — Você pode estar bêbado de sono, mas sei que está me escutando.

Como uma boa mamãe, Jeno enxugou os pés do garoto e checou se havia algum ferimento que talvez não tivesse advertido. Mas ele não se ferira, felizmente, então Jeno continuou sussurrando coisas e carregou-o nos braços.

— Você é meio pesadinho, NaNa. Vou deixar você sem lámen, ok? — brincou. — Você me parece tão frágil agora... Sinto que devo te proteger sempre, quaisquer que seja o perigo. Não me importa se você é o herói e eu normalmente seja quem está em perigo. Mas eu posso ser seu super-herói. Você me deixa?

Não houve resposta, mas Jeno sempre acreditou que quem cala, consente. Delicadamente, pousou-o na sua cama e acariciou o seu rostinho angelical. Zelou teu bem-estar. Zelou, pois era ele quem fazia-o sentir tão bem. Velou teu sono também. Cobriu-o com o próprio edredom e grudou-o com o próprio ursinho de pelúcia. Admirou os lábios juntinhos, os quais conhecera com um filete de avelã. Teria eles gosto de papel, ou era somente da boca pra fora? Tocou-os com amor, sentiu a maciez e pegou-se em recordações passadas de quando lia o mangá e imaginava como seria tê-lo pra si. Beijava a capa, incitava pensamentos lunáticos e falava-lhe sobre juras de amor que nunca aconteceria. E agora ele estava bem ali, deitado na sua cama, com a cabeça sobre o braço e a respiração leve.

Nem que tentasse pensar assim, sabia que não era um sonho. Não era um sonho, pois o alvorecer viera e junto o sol mostrou-se para aquele ladinho da Terra. Ele estava lá quando Jeno acordou, com a maldita dor na coluna por ter dormido naquele colchão careta. Estava lá no café, após os pais do Lee avisarem que estariam na loja abaixo do apartamento. Jaemin estava ali, com ele, tentando aprender quais os comandos para aquele jogo que NoNo tanto insistia para que jogasse. Não, não era um sonho, e Jeno já estava sentindo raiva de si mesmo por estar constantemente a pensar assim.

— ... e com o W, você pula — instruía, JaeNo, apontando para cada tecla necessária para os comandos específicos do game.

— Compreendi — NaNa sacudira insistentemente a cabeça.

O jogo era em pixel, claro, o bom e velho amadinho de Jeno. Caso Jaemin tivesse nascido e crescido na Terra, qualquer plataforma 8bit encheria o seu coração de alegria, apenas pelo fato dos anos 90 resumir-se em fliperamas para os desocupados e viciados. Embora não tivesse alcançado essa época, Jeno havia aproveitado vários jogos nos celulares antigos em 8bit. Não sentia falta de Snake — em outras palavras, Cobrinha —, mas era um tanto nostálgico encontrar aqueles toscos jogos de corrida que tanto esbaldava-se quando menor.

— Woah! Como você fez isso? Agora eu estou realmente surpreso! — indagara sobre a velocidade e a precisão com que Jaemin exercia os comandos e se livrava de obstáculos e monstros espaciais.

Mesmo que não fosse inteiramente o seu universo, ele tinha uma enorme facilidade em armas lasers, sabres de luz, evitar armadilhas, pilotar naves — sua atividade mais que favorita — e coletar prêmios os quais Jeno nunca sonharia em conseguir. Transparecia experiência com jogos, contudo sua única explicação resumia-se ao fato de que aquilo era somente uma versão mais acessível e fácil de manipular da sua aventureira vida.

— Jesus, Maria, José! — espantou-se ele todo. A mão ao queixo e os olhos vidrados no monitor evidenciavam a perplexidade. — Ah, não creio nisso, Jaemin! Não estamos nem dez minutos aqui e você já está enfrentando o boss?

Era surpreendente o modo como o personagem movia-se rapidamente e realizava uma sequência espetacular de golpes bem elaborados. Jeno sentia-se ressentido por não ter posto a devida fé no seu aprendiz que mais parecia um mestre. Jaemin sorriu e erguera-se da cadeira, pronto para reiniciar o jogo e propor algo para o Lee.

— Senta aqui e eu te ensino — sua voz estava carregada de doçura, e não aquela malícia seca que Renjun tanto utilizava ao pronunciar coisas do tipo. Às vezes Jeno odiava ambiguidades.

Hesitante, sentou no lugar onde antes Jaemin estava sentado e manteve a postura ereta. Os dedos deslizaram sobre as teclas e seu peito erguia e descia profundamente. Seu coração passou a bater rápido, porém, ao sentir Jaemin inclinar-se na sua direção. A proximidade era absurda e o quente da respiração do Na percorrendo o seu pescoço desfocava-o da missão principal de tornar-se tão bom quanto o outro no jogo. As mãos quentinhas e macias do marciano alcançaram as suas, os dedos pressionaram os seus e o jogo deu-se por início. Ele estava assustado por estar gostando daquilo, pois sentia que devia estar incomodado. Devia estar, certo? Devia afastar aquelas mãos gostosas de serem acariciadas de cima das suas. Devia pedir para que se afastasse mais, pois sua respiração rastejava pelo seu pescoço e aquilo estava impedindo-o de respirar. Devia pedir que não tivesse o rosto tão próximo do seu, pois seria possível que perdesse a cabeça e fizesse algo o qual pudesse se arrepender.

Ou não.

Ele passou de nível graças aos dedos ágeis do leonino do que pelos seus, pois estes ficaram parados o tempo inteiro e nem um segundo sequer moveram-se. Não conseguia se concentrar, a tensão era grande dentro de si, seu corpo chegara a enrijecer diante daquilo tudo. E então, após ativar o pause, a inclinação tornara-se mais que absurda, trazendo o pânico para o corpo Lee. Recuou, mais que assustado. Piscou os olhos várias vezes, com medo de estar imaginando aquilo. Em parte, sim, pois Jaemin não pretendia beijá-lo naquele momento, apenas agarrar a garrafa de água a qual repousava na mesa do computador. Estaria JaeNo aliviado com aquilo?

— Que houve? — preocupou-se o Na, interpretando a expressão alheia como um total desconhecimento do que poderia ser.

— Nada — apressou-se em responder.

Jaemin segurou-o no queixo e decaiu a distância entre ambos rostos. Analisou as sobrancelhas erguidas, os olhos desesperados e os lábios entreabertos. Ao abrir a boca para responder algo, Jaemin fora interrompido com a batida na porta de entrada da casa.

— Jesus, Maria, José! — era seu segundo pedido só naquela manhã — Se esconde, Jaemin, e fique calado!

A correria durou apenas alguns segundos, quando um Jaemin, apressado, enfiara-se dentro do guarda-roupa de Jeno e o mais velho saíra do quarto para encontrar a mãe afobada.

— Oi, mamãe — abriu o seu melhor sorriso angelical e esfregou as mãos umas nas outras, nervoso demais com o que poderia ter acontecido.

— Fique lá embaixo no caixa, Jeno — avisara a mulher, percorrendo toda a casa atrás de algum objeto em específico — E não sai de lá até eu e seu pai voltarmos do banco. Vê se faz o que estou mandando, pedaço de javali! Ah, sai da minha frente, garoto! — empurrou-o para o lado, pois estava na frente do cômodo onde encontrava-se o seu óculos escuro.

Mãe e filho logo desceram o pequeno lance de escadas e chegaram à lojinha de conveniência administrada pelo papai. Suas figuras maternal e paternal acenaram-lhe e empurraram-lhe atividade para que pudesse fazer, alegando que estava muito preguiçoso ultimamente e que videogames não davam emprego algum, mesmo que existisse aqueles idiotas na internet e seus vídeos bestas. Foi o que disseram e, claro, chamaram-no de imprestável e inútil. Jeno pensava que, se até seus pais referiam-se a ele com apelidos diabéticos de tão doces, como haveria alguém que viesse a assim não fazê-lo? Era abutre, embuste, animal, Pateta, Pé de Pano, idiota, inútil, besta, imbecil, criatura, estrume de vaca — mesmo que não tenha sido proferido por membros próximos —, pedaço de javali... Aliás, ele sempre surpreendeu-se com a capacidade da sua mãezinha em inventar insultos mais criativos que os anteriores.

— Que cara é essa de quem foi mastigado e cagado? — foi o que a senhora sua mãe indagara na volta, ao vê-lo com uma expressão tão azeda — Morreu, foi?

— Aish... Vocês demoraram demais! — cruzou os braços e sacudira-se dramaticamente — Eu estou morrendo de tédio.

— Então fique mais um pouquinho pra morrer de vez e eu ter menos boca pra alimentar — seu pai caminhava pesadamente sobre o piso xadrez do estabelecimento.

— Eu vou fugir de casa... — concluiu Jeno, fazendo cara de quem estava prestes a chorar. Ele não ia, claro que não. Mas seus pais estavam provocando-o na sua antiga ferida chamada razão da sua existência.

— Vai tarde — respondera outra vez o seu pai, tendo o cuidado de manter o mesmo tom brincalhão na voz. Ele não estava falando sério.

— ... e vocês vão sentir falta da minha companhia e de quando me escravizam — deu língua para os adultos e saiu detrás do balcão, insinuando deixar o local para subir à residência.

— Vamos não, Nariz de Porco! — por que sua mãe tinha que inventar cada nome pior que o outro? — Temos o Haechan aqui!

O rapaz de cabelos vermelhos e olhar brilhante erguera os olhos da tela do seu celular de última geração e gesticulou um tisc com os lábios, revirando os olhos enquanto fazia tudo, menos operar no caixa, como deveria estar fazendo.

— Eu sei que sou gostoso, mas não significa que sou o chocolatinho do bolo de vocês, não — retrucou com desdém — Então me tirem do bolo.

Trabalhava ali apenas porque seus pais obrigavam-no, pois sua real vontade era de nunca mais pôr os pés ali. Era o mesmo azedume de sempre, a mesma expressão fechada e a mesma série a assistir todos os dias, ao invés de estar trabalhando. Todavia, ao ser chamado para fazer algo, levantava-se de bom grado e livrava-se da atividade. Por mais que detestasse o que fazia, ele fazia bem feito, o que era o oposto de Jeno.

— Mamãe, não vamos comer lámen, né? — parou na frente do portão que levava às escadas para o apartamento. Jeno estreitou os olhos por conta da intensidade solar e pôs as mãos na cintura, aguardando a resposta da mãe.

— Vou ver o que posso fazer — fora indiferente ao responder, o que significava que cozinharia ovo e faria-o comer com arroz.

— E depois diz que delivery não faz bem — Jeno resmungou com raiva, batendo os pés infantilmente forte para que irritasse a mulher. Não sabendo ele que mamãe estava atrás de si, apenas continuou com a idiotice — Porque comida de rua é isso e aquilo... Porque esses restaurantes aí não são nada higiênicos... Porque comida pronta não é confiável... Porque blá blá blá... — ele a imitava.

— 'Tá falando o quê aí, JaeNo? — aquela voz alta e confiante soava como se pudesse arrancar a sua alma naquele momento e fazê-la de picadinho.

Jeno estremeceu e virou-se para trás, para enfim ter a visão perfeita da sua mãe com um dos sapatos na mão e mirando em qual parte do corpo doeria mais — claro, sem destruir a sua capacidade reprodutora.

— Jesus, Maria, José! — porque só intervenção divina ajudaria-o naquele momento.

Não sabia se sairia com rosto, com pernas ou braços. Não parou para pensar em mais nada, apenas jogou-se para frente e correra escada acima. Mesmo que sua mãe fosse rápida, era óbvio que não superaria a velocidade de um púbere como aquele, na flor da idade e com uma vida esportiva dez vezes mais ativa que a sua — futebol, vôlei e o esporte mais jogado por ele, chamado "Fugir da surra de mamãe." Recomendava o último, pois treinava reflexo, velocidade, gritaria e persuasão. Além disso, era muito bom para suas habilidades na atuação, pois podia poli-la facilmente ao jogar-se no chão e chorar feito bebê, para que assim a mãe desse por encerrada a surra e não batesse-o mais.

Mas Jeno estava na escada e não podia cair, não tinha como se esquivar e mal dava para persuadir. O único jeito seria correr e alcançar a maçaneta da porta antes que o sapato chocasse com o seu corpo. O que — felizmente e infelizmente —, viera a acontecer no exato momento em que girara a maçaneta e empurrara a porta. Derrotado, exausto e exasperado era como Jeno encontrava-se naquele momento, jogado no tapete da sala e tentando alcançar a região onde fora acertado pela mãe.

Quando já estava prestes a reclamar da força com qual foi arremessado o objeto, suas narinas foram inundadas por um odor agradável e saboroso, uma mistura de temperos e caldos capazes de atrair até quem estivesse do outro lado da Terra.

Dessa vez, fora sua mãe que, ao olhar para a mesa de jantar, pôs a mão no peito e:

— Jesus, Maria, José!

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