capítulo único.
30 de outubro de 2023
Um vento forte soprava na mata no dia em que morri. Dobrava as copas das árvores com a mesma facilidade com que as mãos de minha mãe costumavam trançar meus cabelos. Nada disso vai além de memórias distantes de uma mente perdida: hoje, todos os meus membros ora gélidos já se foram há muito, soterrados primeiro pela terra que um dia pareceu minha salvação, decompostos por centenas, milhares de microrganismos, e, enfim, cobertos pelos pavimentos e por todo o cinza da civilização.
Posso estar morta, meus olhos já inúteis há tempo demais, mas minha alma não se cansa de olhar ao redor, de registrar cada fragmento de informação. Tudo se movimenta. Este mundo que desconheço é todo feito de borrões e ruídos. Eu diria que sinto falta do vento que soprava em torno das árvores, mas minha pele carcomida não poderia senti-lo, de qualquer maneira.
Ao menos, não hoje.
Os corpos suados se acumulam nas ruas, acotovelando-se para chegar a lugar nenhum. Todos eles sempre contando as horas, sempre correndo atrás de mais, nunca satisfeitos. Em alguns dias, me sinto pessimista, um pouco melancólica. Em outros, só fervo de ódio. Vivi dezesseis anos de uma vida inóspita e algumas centenas de anos a mais como uma sombra, apenas um fragmento de algo que já esteve inteiro, condenada a uma eternidade observando milhões de imbecis condenando a si mesmos diariamente.
Porém, com uma pitada amarga de hipocrisia, eu também conto as horas. Cada pôr do sol me aproxima mais do raro momento em que liberto-me das algemas da morte. Uma vez por ano, tenho 24 horas para replicar fragmentos daquilo que perdi para sempre. 24 horas para sentir o gosto de uma casquinha de sorvete de morango sobre a língua, para caminhar por aí com as mesmas pernas que exploravam essas terras séculos atrás. E, acima de tudo, tenho 24 horas para me vingar. A cada 365 dias, tenho uma mísera chance de recuperar um pedaço daquilo que me foi tomado. Uma reparação dos deuses antigos por tudo aquilo que perdi, mas, ao mesmo tempo, um castigo.
O sol está se pondo no horizonte. Os trabalhadores começam a voltar para as suas famílias, para suas casas, e algo em minha vaga consciência se agita, talvez porque eu nunca tive nada que me pertencesse para voltar. Em alguns momentos, muito me surpreende que um espírito possa sentir inveja, mas o fato é que não me sinto como um espírito. Acho que sou como uma prisioneira, incapaz de viver, mas impedida de visitar o mundo dos mortos. Sempre presa entre as bordas dos mundos, uma consciência que vaga pelo vazio.
Mas não amanhã.
Daqui a exatas cinco horas e quarenta e dois minutos será 31 de outubro, aquilo que eles conhecem como Halloween. As imagens de abóboras, morcegos, bruxas, aranhas e fantasmas correm por toda a parte. Algumas crianças aproveitam o dia para acumular mais doces do que são capazes de comer, embrulhadas em fantasias apavorantemente fofas. Alguns se benzem, outros colocam em prática antigas superstições, e certas pessoas apenas seguem suas vidas alheios à celebração. Mas, para mim, 31 de outubro tornou-se o dia mais importante do ano já há algum tempo.
Amanhã minha morte completará seu aniversário de 234 anos.
31 de outubro de 1789
Por um breve momento, imaginei que a noite duraria para sempre. Acordada muito antes do primeiro raio de sol, sendo embalada como uma criança pela densa camada de escuridão, não consegui impedir minha mente de viajar para lugares obscuros.
O grande problema da minha vida inteira foi ter me agarrado ao meio termo. Covarde demais para ir embora antes, porém incapaz de me submeter completamente. E agora, abraçando meu próprio corpo em uma cama que nunca me pertenceu, fico me perguntando como foi que deixei as coisas chegarem a esse ponto.
Observo a respiração inconstante do homem deitado ao meu lado, o cheiro de álcool do seu corpo impregnando todo o quarto. Estamos casados há dois anos e eu ainda não sei o seu nome do meio.
O dia do meu noivado foi o terceiro momento mais feliz da vida do meu pai, perdendo apenas para o dia do nascimento de seu único filho homem, e para o dia em que o governador da província apertou a sua mão. Esse mesmo dia foi o terceiro pior da minha vida, perdendo apenas para o momento em que apanhei com um cabo de enxada por ter roubado uma laranja da cozinha - não consegui me levantar da cama por uma semana depois disso -, e para o dia em que meu marido me bateu pela primeira vez.
Sou uma mulher de posses, casada com um homem influente, mas me sinto como um pássaro em uma gaiola de ouro. Às vezes nem mesmo me sinto como uma mulher. Ainda sou só uma garota, ora tão fantasiosa e sedenta por aventuras, mas que teve uma grande falta de sorte e acabou em uma cama desarrumada com as roupas amarrotadas, o inimigo ao lado.
Não posso fugir. Não enquanto ele ainda puder me encontrar.
Cativada pelo suave brilho do luar, sou incapaz de me esquecer do momento em que decidi seguir os passos de minha mãe.
13 de janeiro de 1789
A náusea atravessa meu peito em ondas conforme percebo que não tenho medo de morrer. Na verdade, acho que busco qualquer tipo de salvação. Nesse momento, não tenho o luxo de recusar qualquer tipo de fuga.
Ele me chamou de cadela inútil segundos antes da chaleira atingir meu rosto.
Não sei se estou chorando, não consigo pensar, o cômodo flutua em meu campo de visão. Tudo está se movendo ao meu redor, sou a única coisa que permanece imóvel no centro da cozinha. Sua voz ecoa em meus ouvidos como um ruído distante. Ouço com mais intensidade o rugido do sangue que se lança contra as paredes do meu cérebro.
Minha mente se recusa a me dizer que sou culpada.
Fui comprada, roubada de uma vida ruim para terminar em outra ainda pior. Nunca tive escolha alguma, meu futuro foi selado por um acordo entre dois homens, um contrato comercial. Minhas únicas funções eram permanecer em silêncio e servir ao meu marido. Nunca fui excepcional em nenhuma delas, mas o que finalmente trouxe a situação ao limite foi o fato de que falhei no quesito principal.
Meu casamento já completou mais de um ano, e eu simplesmente pareço ser incapaz de gerar herdeiros. Sem carregar uma criança na barriga, sou completamente inútil para ele. Dezessete meses, e durante uma semana em cada um deles permaneci sujando panos brancos com o carmim de meu sangue. A gravidez parecia algo tão distante, talvez porque se tratasse de algo que eu nunca desejei. Mas pássaros aprisionados não tem escolha. Se não satisfaço suas vontades, para que sirvo?
Vivíamos em uma aldeia pequena, cercada em um dos lados por uma floresta densa. Vários sobrados se acotovelam nas ruas em declive, formando um estranho aglomerado de marrons, cinzas e verdes. Todos se conhecem mas, ao mesmo tempo, somos solitários. Vivendo de aparências até o momento em que colocamos os pés para dentro de casa e trancamos as portas.
Ele abraçava minha cintura enquanto caminhávamos pela rua e uma das vizinhas acenou, segurando seu filho no colo, um pequeno embrulho humano. Fui arremessada contra a parede da cozinha alguns minutos depois.
Sempre a mesma discussão. Sempre apontando aquilo que todos parecem ter, mas eu sou incapaz de proporcionar. Sempre os mesmos gritos, as mesmas agressões, o mesmo choro entalado em minha garganta apertada.
Quando seu punho me atinge e a consciência começa a deixar meu corpo, decido que preciso começar a reagir.
31 de outubro de 1789
Precisei de alguns meses até que todas as peças se encaixassem. Em teoria, não é difícil cometer um assassinato, mas eu queria que tudo fosse perfeito. Acima de tirar uma vida, eu buscava a oportunidade de assumir o controle da minha, e não poderia fazer isso caso fosse descoberta. Eu tinha apenas uma chance, e precisava fazer direito. Cada agressão, ao invés de me matar, me incendiava um pouco mais, até o momento em que explodiria.
Em uma madrugada de inverno no meio de julho, enquanto meu marido dormia após um dia especialmente repleto de bebedeira, coloquei meus pés de garota medrosa para fora de nossa cama e caminhei silenciosamente até o parapeito da janela. Vivendo como um fardo em sua casa, aperfeiçoei minhas habilidades de jamais fazer barulho algum. Jamais ser notada. Quando saltei até o jardim, o único ruído a ser ouvido era a leve brisa da noite.
Minhas pernas sabiam exatamente para onde deveriam me levar. Após meses de pesquisa, muitas perguntas pela metade e olhares atentos, finalmente juntei as peças e encontrei meu caminho. Naquele dia fazia frio, minha camisola mal me protegendo do ar cortante, mas nada disso importava. Escondendo-me nas sombras, meus pés descalços não tardaram a pisotear as folhas secas da floresta.
O Homem vivia em uma cabana escondida pela noite densa, difícil de encontrar. Toda a aldeia pensava se tratar de um eremita, apenas um velho bobo que havia se apegado demais à natureza, mas eu sabia da verdade. Desde que minha mãe começara a visitar a floresta casualmente, pouco mais de um ano atrás, a força de meu pai se esvaía dia após dia. Eu o via definhar mais a cada uma das raras vezes em que tínhamos a oportunidade de nos encontrar, enquanto o sorriso de minha mãe apenas ficava mais aparente. Ela batia à porta de minha casa uma vez por semana, trazendo frutas recém colhidas e palavras aparentemente sem sentido. Demorei para juntar as peças daquilo que ela via em mim e daquilo que queria me dizer discretamente. Mas agora estou finalmente batendo à porta do Homem.
A madeira da casa está podre, e, quando ele enfim abre a porta, fico com um pouco de medo de tudo desmoronar. Sua imagem é especialmente enigmática. As linhas de expressão demarcam seu rosto rachado, os cabelos brancos e escassos brilham sob a luz das estrelas e os dentes amarelados abrem um meio sorriso em minha direção, formando uma imagem soturna, um pouco apavorante.
-Olá, Elisa. Eu está esperando pelo dia em que viria.
Meus pés congelam com essa frase. Faz muito tempo que não ouço meu nome. Minha mãe me chama de Pequenina e meu marido me chama de Vagabunda. Não tenho permissão para conversar com mais ninguém. Parece inacreditável que este homem à minha frente saiba meu nome, mas no fim das contas é muito provável que ele saiba de tudo. Minha mãe disse algumas vezes que eu seria bem recebida na cabana, mas jamais imaginei que ela o havia preparado para esse encontro.
Quando crio coragem o suficiente para adentrar a pequena casa, apenas a luz frágil de uma vela pela metade me impede de me perder na escuridão. Há papéis jogados para todos os cantos e consigo ver a silhueta de uma cama em uma das pontas do local, mas não atravessei metade da floresta para reparar nesse tipo de coisa. Quando pergunto se ele pode me ajudar, o velho senta-se na beirada da cama e faz com que eu explique meus motivos.
Lágrimas escapam pelos meus olhos cansados enquanto uso minha voz por mais tempo do que em qualquer momento nesses quase dois anos.
Engasgo nas frases ao contar sobre como ele se diverte com as garotas do bordel. Sobre como chega em casa depois de suas noitadas e me diz que qualquer uma delas seria menos inútil como esposa do que eu. Conto sobre como tudo começou com os gritos. Conto sobre o primeiro tapa, minha primeira roupa rasgada, até chegar no momento em que desmaiei no meio de nossa cozinha depois de tanto apanhar e acordei sozinha na casa. Descrevo cada humilhação, enquanto as lágrimas despencam em fluxos incontroláveis. Estou tão cansada de ser forte e aguentar firme. Digo a ele que, se eu não fizer alguma coisa, vou continuar morrendo mais a cada dia.
O Homem respira fundo. A ponta de sua língua umedece os lábios secos enquanto ele parece refletir. No fim das contas, ele assente.
-Volte depois, menina.
E, com simples quatro palavras, meu destino foi selado para sempre.
Desse dia gélido de julho até hoje, escapei durante a madrugada mais duas vezes, sempre cuidadosa para não ser vista por entre as sombras na corrida até a cabana na floresta. Na última delas, nessa madrugada, voltei para casa com um frasco cheio até a boca com um líquido transparente e um plano se formando na cabeça.
Quando o primeiro raio de sol cruza a janela e meu marido se vira na cama, ainda respirando de forma inconstante e fedendo à álcool, decido me colocar de pé e preparar sua última refeição.
Misturar o arsênio em seu café me trouxe uma sensação triunfante. O sentimento de que algo estava finalmente prestes a mudar era inebriante, a primeira vez em anos que eu conseguia chegar perto de esboçar um sorriso.
Nesse momento, pude me permitir sonhar. Imaginar-me colocando os pés para fora de casa sozinha e encantando-me com a brisa libertadora atingindo meus cabelos. Pude me ver caminhando, colhendo flores na beira da floresta, cozinhando bolachas doces sem me preocupar com a aversão de meu marido à tudo que possa me render alguns quilos a mais. Nesses breves segundos em que o líquido transparente se mistura ao preto, pude me imaginar sendo feliz. A eletricidade que percorria meu corpo era quase suficiente para me fazer dançar por toda a casa.
Senti, como algo físico, o momento em que ele acordou. Seus passos pesados ecoaram pelo corredor, até cada vez mais perto de mim. Nunca fui adepta à religiões, mas nesse momento comecei a implorar favores para todos os deuses das histórias que minha vó costumava contar, tempos antes de ser queimada.
Meu "bom dia" soou fraco, indefeso, como de costume. Ele se sentou à minha frente na mesa sem responder. Ergueu a xícara de café até perto dos lábios. Meu coração errava as batidas com a expectativa. Alguns segundos até eu me tornar dona da minha própria vida.
Mas.
Ele apenas segurou a xícara próxima do rosto, os olhos fixos nos meus, sem encostar os lábios na porcelana clara. Contei os segundos enquanto fazia o meu melhor para manter a expressão suave e a respiração sob controle.
Os traços do meu rosto não puderam conter o choque quando ele arremessou a xícara na parede mais próxima. O barulho da pequena explosão se repetia eternamente em meus ouvidos enquanto eu encarava a mistura de cacos e líquido escuro que o chão havia se tornado. Minha cabeça girava. Fui submersa em um torpor tão inumano que só consegui desviar os olhos do ponto em que a xícara atingiu a parede quando senti a mão de meu marido de fechando ao redor dos meus cabelos.
-Você achou mesmo que ia ser tão fácil assim?
Seu sussurro grave em meu ouvido foi o que me despertou. Foi assim que eu soube que estava verdadeiramente acabada. Um pouco abobada, com os lábios separados e os olhos vidrados, não consegui reagir enquanto ele me arrastava até a porta pelos cabelos. Tudo que eu enxergava era embaçado pelas lágrimas que se acumulavam nos cílios, sem escorrer.
Senti dor quando ele me arremessou e acabei caída na rua, deitada de forma humilhante, mas apenas uma parte do meu cérebro registrou a sensação. A outra dava voltas e voltas pensando no que eu fiz de errado. Tudo desapareceu, como uma névoa se dissipando sob o sol, quando ele começou a gritar à plenos pulmões.
-Bruxa! A maldita de uma bruxa tentou me matar! Bruxa!
As portas começaram a ser abertas, os rostos curiosos observando-me enquanto ele me agarrava como podia e me arrastava no chão até a floresta. Soluços começaram a chacoalhar meu corpo frágil, sem produzir som algum. O fato é que minha aldeia sempre adorou grandes cenas e grandes condenações. Num mundo hostil como esse, todos aqui tornaram-se sedentos por sangue. Não pude me surpreender quando um coro de vozes se juntou à dele.
-Bruxa! Bruxa! Matem a bruxa!
Gritei quando a primeira pedra voou. Olhei em volta, apavorada e ainda sendo arrastada na direção das árvores, tentando ao máximo proteger meu corpo com os braços, mesmo já sabendo qual seria o meu fim. Porém, em meio à multidão que começava a se juntar na procissão até a floresta, dois rostos conhecidos prenderam minha atenção. Meu pai, segurando uma pedra, se apoiava com dificuldade no velho eremita. Os dentes amarelos sorriam, ainda terríveis, me lembrando de algumas horas atrás, quando ele colocara o frasco de veneno em minhas mãos.
Mal senti o impacto das próximas pedras, entorpecida pelo turbilhão em minha mente. Não consegui afastar o fato de que não conseguia encontrar minha mãe em meio à multidão, e eu jamais teria a chance de descobrir se algo havia acontecido com ela. Sabia apenas de duas coisas: havia sido traída pelo Homem, e agora estava condenada à morte.
Um vento forte dobrava as copas das árvores ao longe. Parecia um presságio, e, no fim das contas, realmente era. Eu sabia qual seria meu destino. Não podia negar que a morte seria uma saída melhor do que o desastre que eu sempre chamei de vida, mas a expectativa quebrada me embrulhava o estômago. Ou talvez fosse a dor, eu não saberia dizer. O fato é que cheguei tão perto de agarrar a liberdade com os dedos nus, que ter que me preparar para perde-la completamente é doloroso demais até para mim.
-Bruxa maldita!
-Bruxa maldita!
-Bruxa maldita!
Forcei-me a ignorar todas as vozes e apenas respirar fundo. Enquanto o sangue brotava de uma dor imensurável, o ódio inundava meu corpo e eu fazia preces aos deuses em meio às lágrimas.
Por favor, não deixem que isso acabe assim.
porfavorporfavorporfavorporfavorporfavorporfavorporfavorporfavorporfavorporfavorporfavorporfavorporfavorporfavorporfavorporfavorporfavorporfavorporfavorporfavor
Porém, enquanto a consciência deixava meu corpo, eu jamais poderia ter imaginado que eles realmente me atenderiam.
31 de outubro de 2023
Risco o décimo quinto nome escrito às pressas no bloco de notas, bem no segundo em que seu corpo tomba aos meus pés. Puxo o cabo da lâmina, retirando-o do meio das costelas do homem. Algumas gotas de sangue pingam, misturando-se, irrelevantes, à poça de líquido vermelho no chão de madeira.
Pedro Morettti.
Não me preocupo com câmeras de segurança ou observadores inesperados ao dar as costas para a sala de estar bem mobiliada, que agora ostenta um cadáver em seu centro. Amanhã estarei morta novamente. Sempre procurada, jamais encontrada. A bruxa maldita. É assim que os jornais costumam me chamar, inspirados na primeira e única carta assinada que deixei, ao lado do cadáver do homem mais importante que matei. Não posso dizer que não gosto disso. É bom poder escolher como sou chamada, já que meu nome de batismo se perdeu há dois séculos atrás.
Franzindo a testa para uma mancha de sangue em meu braço, permito que minha mente viaje até a esposa de Pedro, finalmente me tranquilizando um pouco após todos os horrores que a vi sofrer. Fico mais feliz sabendo que agora ela finalmente poderá ter um pouco de paz.
É para isso que estou aqui.
Durante os 364 dias do ano em que permaneço apenas como uma alma silenciosa, absorvendo tudo e todos nesse território caótico onde minha pequena aldeia costumava existir, eu as acompanho. Todas as almas indefesas e solitárias que não tiveram a chance de se defender. E então, uma vez por ano, no dia de Halloween, eu as vingo.
Assim que o relógio marca a meia noite do dia 31 de outubro e minha morte completa mais um ano, a promessa dos deuses se cumpre. Minha alma é encapsulada por seu antigo rótulo e, quando percebo, aparento ter 16 anos novamente. Os policiais que vivem à minha procura jamais acreditariam que, na verdade, tenho 250.
De repente, tenho mãos, pernas, braços, barriga e cabeça. Tenho olhos e cabelos castanhos, pele bronzeada, estatura mediana. Passo tanto tempo como um espírito vagante que demoro algum tempo para reaprender a coordenar meus membros. E, então, meu dia preferido começa.
Muito tempo atrás, os deuses permitiram que eu me transformasse numa arma. Me abençoaram com a possibilidade de mudar uma fração do mundo, fazendo por outras o que não consegui fazer por mim mesma. Assim que morri e enxerguei as luzes, assim que minha alma se separou do meu corpo e o assistiu ser enterrado na porção mais escura da floresta, eu acreditei que os mil dias seriam um presente imensurável. E, realmente, eles são. Eu só não contava que, para cada um dos mil dias de vida que recebi, haveriam outros 364 nos quais permaneceria invisível, mal existindo. Precisei ser criativa e encontrar algo para fazer com todo esse tempo. No fim das contas, modéstia à parte, sou excelente em tudo isso.
Enquanto limpo o excesso de sangue na faca, utilizando um pano já manchado de carmim, percebo que não lamento.
Meus passos largos me encaminham até a próxima vítima. Rafael Monteiro, responsável por abuso de menores. Eu o observei por tempo demais, seu nome gravado no fundo de minha mente, e agora chegou a sua hora.
Não é fácil selecionar meus alvos. Todos os dias observo inúmeros casos desumanos, coisas que me embrulhariam o estômago se eu tivesse um. Então, monto minha rota com os mais poderosos e os que se escondem melhor. Aqueles que teriam menos chances de sofrerem as consequências de seus atos sem a minha ajudinha. Um esboço de sorriso ilumina meu rosto.
Escondo a faca dentro do casaco enquanto caminho tranquilamente pela rua. Faço uma parada em uma sorveteria e acabo com uma casquinha de morango, minha recompensa anual por um dia de trabalho árduo. O doce gelado se espalha sobre a minha língua. Estar viva é uma sensação indescritível.
Incontáveis passos depois, estou sentada à frente da porta da casa de Rafael. O sol já se pôs há algum tempo, e restam alguns minutos até às 20:00, quando ele costuma chegar em casa todos os dias segundo minha longa pesquisa.
Não posso deixar de me sentir um pouco melancólica. Faltam algumas horas até que eu me torne um espírito novamente, sem nada que me pertença a não ser um projeto de vingança. Mais 364 dias até que eu sinta o vento em meu rosto novamente. Mais 766 anos até finalmente passar para a esfera dos mortos e abandonar essa vida de morta-viva-mais-morta-do-que-viva.
Abandono esses pensamentos frágeis quando vejo o carro de Rafael virar a rua e seguir em minha direção. Terei tempo o suficiente para eles amanhã, mas no momento tenho mais um criminoso com o qual lidar.
Ele mal tem tempo de processar o fato de que há uma adolescente parada em frente à sua casa: minha faca sempre será mais rápida. Torço a lâmina alojada entre suas costelas ao mesmo tempo em que as sirenes se aproximam de meus ouvidos. Cacete. Eles finalmente me encontraram. Mal tenho tempo de riscar o nome de Rafael da lista em meu bloco de notas quando três viaturas rasgam a rua e me cercam.
Quando o corpo do homem à minha frente para de se mover e tomba, sujando a grama de seu jardim imaculado, consigo apenas remover a faca antes de uma infinidade de armas ser apontada para a minha cabeça. Apenas respiro fundo e reviro os olhos. Não reajo, jamais revido. Tenho uma promessa comigo mesma, de jamais ferir as pessoas erradas.
Ao me algemar, um dos policiais ostenta um brilho nos olhos.
-Olá, Maldita. Parece que a sua sorte enfim acabou.
O que ele não entende é que sou uma força da natureza. Apenas faço o que for preciso para que algumas pessoas possam viver sem medo, ter a liberdade que nunca tive. O que ele não sabe é que, assim que sou jogada na cela, faltam apenas algumas horas até que eu desapareça. Não sou boa em fugas, como todos costumam dizer. Apenas não sou nada.
Estou sorrindo frente às tentativas dos policiais de me assustar. Eles dizem que vou passar o resto da vida na cadeia. Isso poderia ser assustador caso eu não estivesse morta.
Nunca repararam em meus traços, sempre iguais, não importa o tempo que passe. Jamais conseguiram enxergar o suficiente por trás do sangue que o cobre, e ainda confiam que são capazes de me derrubar.
Podem tentar me impedir novamente no ano que vem, mas jamais terão sucesso. Minha nova lista já estará sendo confeccionada na manhã do próximo dia.
Afinal, ninguém consegue conter uma bruxa maldita.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top