Revolta

VINCENT CAMERON

O clima está tão bom que eu ouso dizer que hoje é um dia gostoso. Mesmo que, para minha depressão, seja o último dia de férias. Último ano, lá vamos nós.

Ninguém merece.

Tiro o vape dos lábios e sopro a fumaça para o lado, deixando-a para trás conforme caminho pela calçada há tanto conhecida. Olho ao redor com pouco interesse, admirando as casas chiques  que compõe a zona sul. Um dia eu compro uma dessas, penso. Mas que inferno, sei que terei que trabalhar duro para isso.

Me deparando com um rosto familiar à minha esquerda, sorrio e aceno para senhora O'Brien, a vizinha de minha melhor amiga que estou indo visitar, a senhora de cabelos grisalhos que vive sentada em sua cadeira de balanço na varanda com um gato no colo ou algumas lãs para fazer tricô. Ela me nota e sorri, acenando de volta. Duvido que ela tenha me reconhecido sem seus óculos de fundo de garrafa, mas ela é simplesmente gentil demais para ignorar qualquer estranho.

— Tudo certo, senhora O'Brien?— grito para ela continuando minha caminhada.

— Tudo certo por aqui!— ela grita numa voz fina e esganada e eu não seguro a risada. Ela é uma figura e tanto!

Prendo novamente o vape entre os lábios e passo por cima do cercadinho branco dos Saltzman com a mais pura preguiça de ir até o portãozinho e entrar como qualquer outro convidado se daria o respeito de fazer. Mal piso em seu gramado, logo Kisha vem me receber aos latidos, a pastor sacode o rabo e vem pular em cima de mim sem se dar conta de que seu peso pode me derrubar facilmente. Dou risada e cambaleio enquanto ela coloca as patas no meu peito e tenta lamber minha cara a todo custo como se eu fosse um delicioso pedaço de bacon.

— Oi, Kisha! E aí, meu amor— afino a voz e seguro seu rosto peludo a sacudindo com carinho.— Quem é a cachorra mais linda desse mundo?! Quem é!?— ela late e me arranha e essa é a única cadela no mundo que gosta de mim. Eu a adoro também. Eu não estava com pressa para entrar, então comecei a brincar com a pastor no gramado da frente, atiçando-a e rindo, correndo de um lado para o outro a fazendo latir mais alto ainda.

— VINCENT!— a voz imponente de Oliver Saltzman me pega desprevenido e eu quase dou um pulo de susto. Arregalo os olhos para o homem e tento não tropeçar nos meus próprios pés ao parar abruptamente minha corrida com uma cachorra esbaforida que me dá uma voadora e começa a correr atrás do próprio rabo como se o mundo fosse acabar. Oliver Saltzman, no auge dos quarenta, não parece ter mais do que trinta e seis anos. Ele e sua cara de zangado assustariam qualquer um que não soubesse que na verdade ele é um cara bem legal e engraçado. Ele passa a mão nos seus cabelos castanho-claros curtos e desce rapidamente os degraus da varanda.

Mesmo sendo um cirurgião renomado, ele se veste como um daqueles policiais descolados dos filmes de ação, jaqueta, calça jeans e uns sapatos gastos que ele parece nuncas tirar do pé. Eu sou um fã desse cara desde os quatro anos que foi quando sua filha me adotou como amigo, mas nem fodendo que eu admito isso para ele.

Dou uma última tragada antes de guardar o vape no bolso da calça.

— Ollie, oi!— cumprimento sorrindo amplamente fico inclinado de lado para afagar a cabeça de Kisha— Nem te vi aí, pensei que hoje o senhor trabalhava!

— Que bom que você veio, moleque.— o grandalhão se aproximou de mim e agarrou minha nuca. Ele não fica feliz em me ver normalmente, muito pelo contrário, ele vive reclamando que eu pareço não ter outro lugar para ir, mas não é minha culpa se a filha dele é minha única amiga— Ali está surtando e eu não sei o que fazer, preciso que você a acalme.— ele diz, preocupado, me arrasta para casa e ordena para que sua cachorra se aquiete na varanda, ordem esta que ela acata na mesma hora. Ele está tão atordoado que deixa a porta da frente aberta.

— Ai, calma lá, olha a força, meu senhor!— sacudo os ombros e afasto sua mão da minha nuca, desconfortável, ele não resiste mesmo que esteja nervoso demais— O que houve com Ali?

Reviro em pensamentos qualquer coisa que possa ter desencadeado uma crise em Alice, mas não lembro de nada importante acontecendo. As férias de verão foram ótimas, o saco é que elas acabaram, mas Alice não surta por voltar a estudar, ela é estranha, ela gosta de estudar.

— Vem ver.— ele fala me guiando escadas acima. Fico relutante, porém o sigo. Muitas coisas que envolvem Ali são a base do ver para crer. O quarto dela é o último do corredor, próximo à entrada do sótão, à direita.— Espera aí.— Oliver coloca a mão no meu peito antes que cheguemos na porta, me obrigando a parar. Um segundo mais tarde, um frasco de perfume atravessa a porta e se espatifa contra a parede fazendo com que eu me encolha.

HURENSOHN!— Alice grita de dentro do quarto em sua língua mãe e eu sei que coisa boa não está por vir. Alice só fala alemão quando está prestes a matar alguém. Eu e Oliver nos olhamos e eu comprimo os lábios.

(Filho da puta)

— Valeu.— franzo a testa, um pouco com medo. Será que eu fiz alguma coisa sem querer? Não... eu quase nunca vacilo com ela e devo dizer que presto muita atenção nas minhas atitudes. Sei quando faço algo errado e eu realmente não fiz nada dessa vez. Apenas porque tenho certeza que o problema não sou eu, não resisto quando o senhor Saltzman me empurra para frente e praticamente me usa de escudo para entrar no quarto.

— Querida?— o senhor Saltzman chama com cautela, usa um tom de voz manso que só dirige a filha.

O quarto roxo de Alice parece uma zona de guerra, há coisas espalhadas no chão e sua cama está revirada, CDs quebrados, roupas rasgadas, um monte de papeis amassados e confesso que não sei como segurei a risada ao ver o seu estado. Ela usava um pijama rosa bebê com alguns cupidos estampados e pantufas com a cara do monstro azul — Sullivan, se não me engano — de Monstros S.A. Seus cabelos loiros normalmente perfeitamente arrumados agora apontavam todas as direções como se ela tivesse acabado de ser atacada por um esquilo raivoso. Seu rosto estava inchado como se estivesse tendo uma reação alérgica e seus olhos azuis transbordavam lágrimas. Ela pegou em sua cama um ursinho de pelúcia que usa um tapa olho com uma caveira desenhada, que eu sei que Lorenzo a deu e pegou seu canivete borboleta da mesa de cabeceira.

— Sabe esse urso, papai?— ela fungou com a voz embargada e apontou a lâmina colorida do canivete para nós e para urso— Você sabe desse urso, Vince!?— ela finalmente olha para mim, revoltada. Eu não sei se dou risada de nervoso ou a respondo. Levanto os ombros e fico calado, por fim— Lorenzo me deu no nosso primeiro encontro!— sem piedade, Alice enfia a faca na nuca da pelúcia e a puxa para o lado bruscamente, arrancando a cabeça do brinquedo— Foi o melhor encontro da minha vida, papai, ele foi um perfeito cavalheiro e o beijo de boa noite que ele me deu foi na bochecha!— ela grita, coloca o urso sem cabeça na sua mesa de cabeceira e crava a faca nas costas do mesmo. Me surpreende que ele não tenha caído para o lado. Uma vez eu tentei cravar o canivete dela na mesa e não deu nada certo, o máximo que eu tirei foi uma lasquinha. Os filmes mentem...

Ou eu que não estava tendo um ataque de pelanca? Questionável.

— Eu me lembro, querida, você me contou.— Oliver coloca as mãos nos meus ombros ainda me usando de escudo.— Olha quem veio te ver! Vince, cuida dela rapidinho, eu tenho que chamar alguma faxineira para limpar isso daqui...— então Oliver me solta e se afasta correndo como se acabasse de jogar sua oferenda no vulcão. Temendo pela minha vida, eu arregalo os olhos para minha amável e histérica melhor amiga. Esfrego as mãos na calça.

— Oi, Ali...— cumprimento em voz baixa, um pouco desconfiado do que pode ser o motivo por trás do surto. Alice chora e soluça. Ela leva os punhos para os olhos e se senta na beirada da cama, abalada. Eu não estou acostumado com isso. Só vi ela chorar desse jeito umas três vezes na vida. E Alice é o tipo de garota que chora fácil, então minha preocupação não é extraordinária. Cautelosamente me aproximo dela pisando em vários CDs e quase tropeçando no martelo que ela usou para destruí-los. Sento-me do seu lado sem saber o que dizer, se elogiava seus cabelos desgrenhados ou a bagunça que ela fez só para quebrar o clima. Alice recolheu as pernas e as abraçou, encostando nossos ombros, eu a deixei chorar até que ela pudesse se recompor pelo menos um pouco para me dizer o que está acontecendo.

A olhei de perfil, ela encarava o chão, todas aquelas coisas no carpete com o rosto vermelho e transbordando mágoa. Franzi a testa, por mais que adore brincar e este seja meu primeiro reflexo, eu me senti muito mal por ela e nem consegui pensar em nada que eu pudesse fazer para fazê-la rir. Hesitante, coloquei a mão no seu braço atraindo seu olhar marejado.

— O que foi que aconteceu, Ali?— pergunto calmamente. O queixo dela treme e ela olha para minha mão.

— Lorenzo me traiu.— ela admite baixinho e eu respiro fundo, perdendo a paciência.

Como alguém poderia trair alguém como Alice!? Esse cara deve ter um problema sério da cabeça.

— Aquele... verflucht!— ela praticamente rosna. Ela funga e se vira para o outro lado, enfia a mão tremula debaixo do travesseiro, puxando de lá seu celular e o desbloqueando com a digital. Sem falar nada, ela me entrega o celular e se abraça, escondendo o rosto.

(Maldito)

Nós dois sabíamos que iria ter uma festa ontem a noite para que ninguém ficasse de ressaca no primeiro dia de volta às aulas e tirassem esse domingo para dormir até tarde, mas como nós dois não adoramos festas, deixamos para uma próxima.

O celular já está aberto em um SMS de Annelise, nossa colega de turma que por acaso é a garota mais fofoqueira do colégio. Ela mandou um vídeo e pediu para Alice dar uma olhada. De cara era possível reconhecer Lorenzo encostado em uma parede oferecendo um sorriso malicioso para uma morena que está de costas para a câmera.

Dou play no vídeo, é barulhento, e pela distância que a nossa repórter está do casal, duvido muito que tenha saído o mínimo ruído do que os dois poderiam estar conversando, por isso abaixo o volume. Mal se passam segundos, Lorenzo puxa a morena pela cintura e os dois começam a se atracar. A pegação é intensa.

— Ah...— é a única coisa que eu solto. Baixo o celular e o desligo, porém, logo ele acende novamente começando a vibrar. Alice levanta a cabeça e encara a tela. É Trent, o amigo de Lorenzo. Nós nos olhamos— Vai atender?— pergunto erguendo o celular em sua direção.

Carrancuda, Alice pega o celular da minha mão e atende levando-o ao ouvido. Ela mal fica na ligação por dez segundos, desliga e bloqueia o número.

— Eu bloqueei Lorenzo em tudo, esqueci de bloquear os amigos dele também.— ela diz, um pouco rouca.— Eu só falei que tudo acabou entre nós.— Começa a mexer no celular e eu vejo que ela está segurando o choro como pode. Solto um suspiro me corroendo de raiva daquele idiota que eu nunca fui fã.

Balanço a cabeça.

— Ali...

— Hm?— ela levanta as sobrancelhas loiras, querendo agir como se seus olhos não parassem de pingar. Pego o celular de sua mão, o colocando no colchão do nosso lado e a puxo para um abraço. Lentamente, ela retribui enfiando o rosto na curva do meu pescoço e me arrancando um arrepio involuntário.

— Está tudo bem, pode chorar.— murmuro contra seus cabelos e ela não demora em ceder.

— Tem algo de errado comigo?— ela me pergunta, fechando fortemente os braços na minha cintura e aproximando nossos corpos— O que eu deixei de fazer? Eu não sou gostosa o suficiente? O sexo ficou sem graça? Por que ele deixou de me amar?

— Não, ei, claro que não tem nada de errado com você, Ali. Ele que é um idiota sem caráter. Ele é um merda, não merece alguém como você.— falo, com toda certeza do mundo. O celular dela volta a vibrar, no entanto, ela finge que não. Lorenzo tem muitos amigos, e todos eles tem o número de Alice. Vai dar trabalho bloquear cada um deles em todas as redes sociais.

— O que foi que eu fiz de errado, Vince?— ela chora e eu apenas a consolo como posso.

Que ótimo jeito de começar o último ano.

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