Aquela culpa
Eu me lembro de dias como esse. Pensei que... não sei exatamente o que pensei. Por um momento, sonhei que poderia ter acabado e que não tínhamos que encarar essa parte da vida. E aqui estamos nós, no pior dia de nossas vidas.
Mesmo que a dor não fosse minha, era como se eu pudesse senti-la em cada parte do meu ser, mas quando eu não a via, era como se nunca tivesse existido. Como pude ser tão egoísta?
A minha luta contra o choro era inútil. Eu sinto um aperto na garganta e não consigo respirar, meu rosto está molhado e não consigo enxergar nada através de minhas lágrimas. Não quero aceitar que aconteceu de novo, mas tenho que encarar porque Vince não pode passar por isso sozinho.
Lembro da primeira vez que aconteceu, a primeira vez que meu pai notou a mancha no braço do meu melhor amigo quando eu era nova demais para ligar uma coisa a outra. Foi a primeira noite em que Vincent dormiu na minha casa e acabou arregaçando a manga da blusa para pegar a fatia de pizza. Quando meu pai viu e começou a fazer perguntas, ficou bem óbvio que Vince não queria que ele visse. Não tinha sido de propósito, eu que o disse para fazer isso para que não sujasse o pijama. Foi a primeira vez que eu vi meu pai explodindo, a raiva dele era tanta que ele foi atrás do senhor Cameron e partiu para cima dele no meio de uma delegacia cheia de policiais que o detiveram com cacetetes. Nós tínhamos seis anos e as próximas semanas foram muito sensíveis, porque meus pais não podiam simplesmente tirar Vincent da casa dele, por mais que quisessem. Paul Cameron possuía uma ficha impecável, a raiva de minha família não era nada contra a sua — ele só a sentia porque perdera o controle do filho por um tempo curto.
Então Vincent tinha essas mudanças pequenas depois disso. Ora passava dias na minha casa, ora era tomado de volta para aquela porra de hospício.
Seu pai é um maldito bêbado descontrolado que provavelmente já fodeu tanto a cabeça de sua esposa que ela começou a se medicar para amenizar a própria dor ao invés de reunir forças para lutar pelo bem estar do seu único filho.
Eu sabia que a casa de Vincent era um inferno, mas a informação só foi fincada na minha cabeça com uma faca flamejante quando ele chegou na minha casa no meu aniversário de dez anos com um olho roxo. Apesar da péssima aparência, ele colocou um sorriso forçado no rosto e levantou duas pulseiras de pano até a altura dos meus olhos com uma mão trêmula. Elas eram azuis e tinham uma linha branca no meio, estavam sujas.
— Uma pra mim, uma pra você, Lili. São pulseiras da amizade! Eu... não tive tempo para comprar nada melhor.— ele me disse e eu comecei a chorar porque ele estava atrasado, minha festinha já tinha acabado e ele estava sujo de terra. Eu já estava muito preocupada com ele desde cedo e mesmo que fosse um dos dias ruins, Vincent veio até minha casa para me dar meu presente de aniversário. Eu chorei e o abracei, porque não queria que ele voltasse nunca para aquele lugar. Vince merece um pai como o meu, eu sempre pensei nisso, mas nunca antes daquela noite quis tanto dividir minha família perfeita com ele, para que ele não tivesse que passar por tal coisa outra vez.
Mas isso aconteceu de novo. De novo. De novo. De novo. De novo. DE NOVO.
Não falávamos sobre isso com os meus pais depois dos treze anos. Vincent chegava até mim, não justificava nem inventava nada sobre seus machucados — isso quando eu podia vê-los. Ele vinha até minha casa de noite, e eu preparava alguma coisa para nós comermos. Nos sentávamos no quintal dos fundos completamente calados, brincávamos com Kisha e ela lambia as feridas no rosto dele, nas suas mãos e as vezes o machucava quando corria contra ele e batia em suas costelas. Vincent nunca brigou com ela em nenhum desses momentos.
Dois dias depois do meu aniversário de quinze passávamos por essa mesma rotina. Eu sabia que ele estava machucado porque atravessou minha casa mancando. Eu não perguntei nada, pensei se poderíamos assistir algum filme ao invés de sair de novo porque eu estava gripada e ventava muito. Ele assentiu e se sentou no sofá.
Não falamos nada até metade do filme de terror quando eu tomei um susto e Vince virou o rosto para mim. O breu nos engolia, mas a fraca luz da TV me permitia enxergar seu semblante rígido. Pelo menos parte dele.
— O que foi?— perguntei baixinho.
Vincent ficou calado me encarando por um segundo. Dois. Três. Quatro.
— Eu quero que ele morra. E que sofra muito até tudo acabar.
Não o perguntei de quem estava falando porque sabia. Não o censurei porque entendia. Não falei que ele não deveria desejar uma coisa dessas porque ele podia.
— Eu também.— admiti e voltamos a assistir o filme sem realmente prestar atenção. Sua mão se entrelaçou a minha e eu a apertei com força.
Sempre soube do que Vincent tinha medo e o ajudei sem falar nada a respeito. Eu também sentia esse medo quando ele voltava para casa. Mas eu superei o medo. Que grande amiga.
Pouco mais de um ano atrás, nós estranhávamos o clima. Por meses, Paul Cameron não fez absolutamente nada contra Vincent. Não tocou nele, não o atacou com palavras cruéis. Não fez nada. Ele ficou sóbrio porque finalmente se concentrou em algo diferente de destruir a própria família: uma promoção. Paul andou na linha e fingiu que Vincent não existia quando se esbarravam pela manhã — ou era o que Vince me fazia acreditar.
Queria que significasse que o fim, ou melhor, que a paz havia chegado. Vincent parou de me acordar no meio da noite por causa dele. Eu parei de procurar por machucados em seu corpo porque achava que estava tudo bem.
E aqui estamos nós outra vez. Fico curvada como se tivesse alguém forçando meus ombros para baixo e fico encarando a nossa pulseira da amizade totalmente desgastada no meu pulso. Estou sentada porque minhas pernas não me aguentam. Dói. Dói tanto que eu não consigo olhá-lo. Talvez se eu o tivesse mandado ficar em casa comigo, talvez se eu tivesse falado o que meu coração estava desejando e o fizesse passar a noite, isso não acontecesse.
Sei que não foi minha culpa, sei que eu não provoquei nada. Mas se eu simplesmente falasse...
— Alice!— olho para o lado e vejo Lorenzo Smith caminhando em minha direção com um adesivo de visitante no peito. Por que eu o chamei? Eu não sei. Vince odiaria vê-lo aqui. Odiaria vê-lo comigo, mas meu pai não me atendeu e eu precisava de alguém.
Me levantei da cadeira de plástico e fui de encontro ao moreno que me recebeu prontamente com um abraço firme e seguro que fez com que eu me desmanchasse em lágrimas de vez.
— Ele está mal, ele está muito mal.— minha voz só consegue transmitir uma pequena porcentagem da minha dor. Eu quero gritar, quero quebrar alguma coisa ou matar alguém.
— O que aconteceu?— Lorenzo se inclina para trás e segura meu rosto com um olhar amedrontado que eu nunca vi antes no seu rosto. Já desabafei com ele uma vez sobre os pais problemáticos de Vincent, mas não foi um assunto no qual queria me aprofundar então não o repetimos.
— A-a mãe de Vince...— não estava conseguindo respirar, de alguma forma, ter Lorenzo aqui só piorou meu estado e não era esse o resultado que eu esperava. Eu estava segurando a onda até que bem.— E-ela disse que... que quando Vince voltou para casa ontem, P-Paul estava muito bêbado...— a cada palavra, mais minha voz ficava embargada— o novo sargento humilhou ele por não conseguir o cargo e-e aí e-ele surtou... ele estava sóbrio, Lorenzo, era para ter acabado, Lorenzo! Meu Deus, o Vince não acorda!
— Alice!— Lorenzo agarra meus ombros e me sacode, me interrompendo. Tento me lembrar de como se respira e arregalo os olhos para ele— Você precisa se controlar!— seu tom é duro e rígido. Ele me olha com seriedade e eu cerro os dentes, lutando contra o pânico. Está tudo bem. Vai ficar tudo bem.— Respira.— Lorenzo sussurra e eu o imito conforme ele tenta me acalmar.— Ele vai acordar? Você falou com algum médico?
Comecei a balançar a cabeça.
— E-ele vai acordar... mas o rosto dele, eu não consigo olhar para o rosto dele...— afundei o rosto nas mãos e Lorenzo tornou a me abraçar, acolhendo-me naqueles braços que já foram meu porto seguro incontáveis vezes.
— Vai ficar tudo bem, Alice.— ele passa a mão nos meus cabelos me oferecendo exatamente o que eu estava querendo. Apertei seu poliéster e o molhei com minhas lágrimas.— Shh, tudo bem. Vai ficar tudo bem.
— Eu não sei onde meu pai está.— balanço a cabeça quando recupero o mínimo de autocontrole.— Eu não sei onde Oliver está, e eu juro que nunca vou perdoá-lo por não estar aqui agora.
— Como assim?
Quando a cortina do manto em que Vincent está se abre, eu me afasto de Lorenzo rapidamente. Encarando enfurecida a senhora Cameron, a mulher está mais pálida do que nunca, parece não dormir há dias. Não consegui ficar perto dela quando ela terminou de me contar o que acontecera na noite anterior porque não consegui me impedir de começar a chorar. Tive que me afastar.
Agora, aqui estamos nós.
— Alguma coisa?— pergunto, querendo que ela me notifique pelo menos caso Vincent se mova. Ele ficou com o crânio fraturado e não responde a nada o que me parece ser uma vida toda. Não consigo ficar perto dele neste estado vegetativo, não sou fisicamente capaz.
Com os olhos fundos e a boca ressecada, a mulher balança a cabeça negativamente sem me olhar nos olhos. Já deve estar no sexto copo de café, isso pelo menos desde que eu cheguei. Ela se vira e começa a arrastar as pantufas em busca da próxima dose. Meu sangue ferve em minhas veias como nunca havia feito antes, eu sinto tanta, tanta raiva dessa mulher. Como seu marido deve estar coçando o saco na frente da TV agora, ela é a única que pode me ouvir.
— Sabe que isso também é sua culpa!— ladro, cuspo as palavras num lapso impulsivo dando as costas para Lorenzo.
— Ali.— o moreno segura meu braço e a senhora Cameron para de andar. Ela parece a porra de uma morta viva.
— Por que?— eu sacudo o braço para que meu ex-namorado me solte— Por que você não o tirou daquela maldita casa!?— eu gritei. Hospital não é lugar para essas coisas. Não me importei.— Talvez você não tenha colocado a bebida no copo daquele desgraçado, mas seu único filho estar onde está é culpa sua, sua vadia fraca e egoísta!
Eu esperei — até ansiei — que ela se virasse e me batesse. Queria que ela me olhasse e gritasse volta. Mas eu não vi seu rosto, não vi o peso que minha acusação lhe causava. Ela voltou a andar, talvez ao determinar que eu havia acabado.
Ela não me respondeu. Só voltou para a cantina e eu nunca soube o que ela pensou naquele momento, só soube que morreria sem conhecer a senhora Cameron, porque ela com certeza se perdeu há muito tempo.
[...]
Nota da autora:
Eu sei que não é muito legal contrariar minha própria protagonista, mas neste quesito, me vi na obrigação de vir dizer que Alice não foi nem um pouco decente ao atacar a mãe de Vince dessa forma e vou explicar pra vocês bem previamente já que este é meu campo de estudo:
Meus amores, o relacionamento entre os pais de Vince é abusivo obviamente, mas pra quem não sabe — olha o spoiler — nenhuma relação abusiva começa abusiva. Eu não vou contar para vocês o lado dos pais dele, se é que houve algum momento digno entre eles antes de Vince nascer e nós não iremos nos aprofundar neste lado da fic porque não é o propósito para o qual eu estou a escrevendo. MAS, ENTRETANTO, PORÉM, CONTUDO gostaria de dar uma visão dos bastidores bem supérflua pra vocês.
A Alice, por mais que ame o Vincent e tudo mais, não sabe como é na casa dele porque ela nunca viveu no mundo dele, apenas o abrigou no mundo dela. Ela não conhece a senhora Cameron, não sabe como é ser uma vítima e em nenhum momento eu vou diminuir a dor das mulheres que passam por tais coisas na vida real, porque não há nada de simples quando se está preso em um relacionamento abusivo. Não é só "ah, termina" ou "por que você não se afastou antes?". Se você não sabe nada sobre o que o outro está passando, não atire pedras, tente ajudá-lo porque dificilmente ele conseguirá sair da pior sozinho.
Sabe de alguém que está passando por um relacionamento abusivo? Essa pessoa tem filhos? Só há mais motivos ainda para socorrer. Denuncie. Jamais, nunca, nunquinha fique calado/a/e.
Vadias gostosas tem empatia.
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