Capítulo 9

Era difícil dizer qual parte do meu corpo doía mais. O que havia acontecido comigo? Fui atropelada por uma manada de elefantes? Sentia meu corpo quente, mas parecia que minha alma estava enregelada. Minhas costelas doíam... pelo menos acho que eram as costelas. Minha cabeça latejava e podia ver, através das pálpebras fechadas, uma luz forte apontada bem na minha cara. Minhas pernas também doíam, mas acho que menos do que o resto do corpo. Meus braços pareciam ter carregado um peso extremo por horas e agora estavam trêmulos e inúteis. Meu pescoço latejava como a minha cabeça. Meu coração batia num ritmo regular, porém lento. Minha respiração estava suave e podia sentir meu peito subir e descer conforme inspirava e expirava o ar.

Minha mente estava bagunçada e trechos de conversas iam e vinham o tempo todo, cenas dançavam e se modificavam em minha mente e tudo parecia confuso. Só queria voltar a dormir novamente.... Estava deitada em algum lugar macio, então o que me impedia de dormir? Alguma coisa me incomodava, talvez a confusão. Ouvi alguém se aproximar, senti uma espécie de onda me atingir e perdi os sentidos novamente.

...

Quando despertei outra vez, algumas dores já haviam sido curadas, meus braços e pernas estavam normais, meu pescoço já não latejava como antes, minha cabeça não doía tanto, minha mente já não estava completamente confusa e era capaz de me mexer, mesmo com dificuldade, e de abrir os olhos.

Estava em um quarto que me parecia familiar. As paredes eram brancas, tinha uma janela grande à minha direita e a porta estava um pouco distante, à esquerda. Estava deitada em uma cama confortável, forrada com lençóis tão brancos que pareciam feitos com pétalas de copo de leite.

Ao lado da minha cama, sobre uma mesinha, havia uma série de potinhos cheios de líquidos das mais diversas cores. Havia também uma jarra transparente que parecia conter água, com um copo ao lado. Atrás da jarra estava um vaso prateado com flores coloridas. Flores de todos os tipos aninhadas em uma espécie de buquê.

Não sei porquê, mas sorri ao ver as flores e senti vontade de me sentar, porém quando tentei fazer força para sentar, a região das minhas costelas doeu e começou a latejar. Arfei com a dor inesperada e derrubei alguma coisa que estava do outro lado da cama. Uma luminária como as de hospitais.

A porta se abriu de repente e uma mulher que reconheci, mas não sabia dizer o nome, entrou no quarto com suas vestes brancas bruxuleando enquanto caminhava. Atrás dela entrou outra mulher, com vestes que pareciam ter sido feitas de margaridas e outras flores de coloração branca. Conforme a mulher se mexia, atrás dela apareciam focos de luz como pequenas estrelinhas piscando à luz do luar.

— Você acordou... — a primeira mulher tinha uma voz suave e calma, parecia distante como em um sonho, mas era real. Seus cabelos loiros estavam presos no alto da cabeça, em um emaranhado precário. Seus olhos azuis pareciam atentos, bondosos e espertos.

— Sim, Dahlie. Ela acordou. — A outra disse com impaciência. Essa possuía a voz como o barulhinho de sinos e estava com o cabelo cor de palha preso em coque atrás da cabeça. Seus olhos fechavam-se em fendas ao observar a outra. Não maldosos, mas preocupados. — Tome cuidado com as palavras.

— Sempre tomo cuidado com elas, Lisarin. — Dahlie disse calmamente. Esses nomes... me lembrava de ter ouvido esses nomes antes.

— Ei, querida, lembra-se de como se chama? — Dahlie me fitava com um olhar bondoso. Tive que buscar bem além em minhas memórias para responder essa pergunta simples, mas me lembrei.

— Sim. Eu me chamo Alessia.

— Ótimo. — Sorriu de maneira gentil. — E sabe onde está?

Com essa, tive que trabalhar por alguns minutos, mas Dahlie não me interrompeu ou apressou, apenas aguardou pacientemente, enquanto minha mente trabalhava para buscar as informações. Os meus pensamentos ainda não tinham voltado ao normal e algumas vezes, enquanto revirava as memórias escondidas, se tornavam apenas um vazio, como se estivessem se escondendo de mim. Mesmo assim, consegui lembrar onde estava a tempo de respondê-la, antes que pensasse que havia adormecido novamente e esquecera de fechar os olhos.

— Estou em Magic. A ilha da qual os fundadores de Fantasy fugiram há muito tempo por... algum motivo, não me lembro. Estou em algum lugar do palácio e fui coroada princesa desse lugar, após fugirmos de Fantasy, porque... fugimos de lá por algum motivo, mas não sei qual é. — Sentia-me frustrada por ter tantas lacunas em minha memória.

— Sim, sim. Está bem, agora chega. — Dahlie tocou de leve meu braço direito e sorriu de maneira compreensiva. — Não tardará para que sua memória volte ao normal. Está com fome?

Pela primeira vez lembrei que meu estômago existia e o senti como se fosse um buraco em meio aos outros órgãos. Sim, estava com fome. Muita fome. Assenti com a cabeça e as duas se despediram de mim para buscar comida.

Fiquei sozinha novamente e como não sentia sono, passei a observar as janelas. O sol se punha no horizonte e tingia o céu com vermelho, laranja, amarelo e o restante de azul. As primeiras estrelas começavam a despontar e podia ver as copas de várias árvores sendo tingidas pela luz do crepúsculo.

Logo a moça com os cabelos bagunçados retornou e me trouxe em uma bandeja uma variedade realmente grande de comida. Tentei não comer tão depressa, mas não me lembrava de ter sentido tanta fome assim nunca em minha vida. Ela ficou quieta enquanto eu comia e quando terminei, retirou a bandeja e colocou numa mesa mais distante, perto da porta.

Então, voltou e sentou-se em uma poltrona à esquerda da minha cama, tomou minha mão entre as suas e começou a dizer, bem baixinho, palavras que soavam bonitas em meus ouvidos. Comecei a me sentir mole e sonolenta e pensei se aquilo que falava não seria uma canção de ninar, mas percebi que não era porque não apenas meu corpo relaxava, mas minha mente também.

Meu espírito, que estava tão perturbado por não conseguir se lembrar de várias coisas, agora estava diminuindo o ritmo e relaxando com o corpo. Logo adormeci, sem nem perceber que o estava fazendo.

Quando despertei novamente, alguma coisa voltou a me incomodar. Sentia a dor nas costelas um pouco mais forte, mas minha cabeça tinha parado de doer. Não havia ninguém no quarto e tentei fazer silêncio para que não entrassem de supetão como antes, assim poderia pensar sozinha e em paz.

Comecei a procurar os pensamentos que haviam deixado lacunas, mas ao fazê-lo, desejei que não tivesse feito. Os pensamentos eram terríveis, coisas que qualquer pessoa adoraria esquecer. Também havia aqueles que eram sobre pessoas... e as preocupações que acarretavam.

Ethan, Lewis, Ária... foram os primeiros que voltaram à minha mente, depois outros nomes foram surgindo como se tivessem sido jogados ali novamente, por uma espécie de redemoinho. Fechei os olhos com força por causa do peso das lembranças e minha cabeça começou a girar. De repente, o quarto todo parecia estar dentro de um liquidificador, mas isso ocorreu apenas por poucos segundos, logo voltou ao normal e abri os olhos outra vez.

Ainda havia alguma coisa faltando, mas não conseguia me lembrar o que era e achei melhor tentar fazer isso uma outra hora, já que tinha sentido um peso muito grande com essas lembranças que chegaram todas de uma vez.

Alguém entrou no quarto e mal percebi que sorria para essa pessoa até ela correr até mim e parar em frente à cama, sem saber o que fazer. Seus olhos estavam marejados e seus lábios tremiam, no mesmo instante, soube que nunca vi essa pessoa fazer alguma coisa assim antes.

— Tudo bem, Ethan. Estou bem. — Ofereci-lhe um sorriso doce e calmo.

— Você demorou tanto.... Achei que.... Ah! Não importa o que achei. Estou realmente feliz por você ter voltado. — E segurou uma de minhas mãos, apertando-a de leve entre as suas.

— Estava desmaiada, ou em coma, ou dormindo.... Por quanto tempo fiquei assim? — Mordeu os lábios antes de falar e me encarou, provavelmente refletindo se seria bom me contar.

— Você ficou em coma por uma semana, na semana seguinte conseguiram te despertar, mas tiveram que deixá-la em sono profundo para que pudesse melhorar. — E beijou minha mão devagar.

— E quanto tempo se passou?

— Três semanas. E não me deixavam entrar de maneira nenhuma! Tive que ficar perguntando a Dahlie, Luzia, Cristian e Lisarin como você estava todos os dias.

— Por que tinha que melhorar? O que aconteceu?

— Nós... lutamos com aquelas feras que estavam amedrontando os moradores da vila e fazendo vítimas. Nós vencemos, mas... você ficou bem mais ferida do que eu e o Fantasma. Teve que usar muito poder e... enfrentou as criaturas de frente antes de nós. — Parecia escolher as palavras com cuidado antes de dizê-las. — Você foi muito corajosa.

— Gostaria de me lembrar de meus atos heroicos. — Soltei um suspiro cansado.

— Não se preocupe. Todos ficaram sabendo de sua coragem e estão ansiosos para parabenizá-la na cerimônia que Ivan providenciou para quando você melhorar. Outro baile no castelo, mas em sua homenagem. — E sorriu de leve.

— Então conseguimos derrotar aquelas criaturas?

— Sim. Elas não apareceram nenhuma vez desde a nossa batalha. As pessoas estão mais tranquilas e felizes.

— E a loucura de Ária? Encontraram a cura?

— Não... ainda não encontramos nada, Alessia. Agora preciso ir, tem um verdadeiro exército ali fora esperando para te ver.

Ethan se despediu de mim como se não quisesse me deixar e saiu. Logo após, Lewis entrou, mas sua expressão não era nem um pouco similar à de Ethan. Parecia calmo, embora também estivesse aliviado e feliz.

— Sabia que você voltaria. — Falou sem rodeios, sorriu e sentou-se na poltrona ao meu lado.

— Como sabia disso? — Sorri de leve.

— Posso sentir você, Alessia. Sou um fantasma, lembra? Cristian, eu e meu amigo Jim, que tivemos contato direto com você, podemos sentir como você está.

— E isso não serviu para acalmar os outros, não é? — Já sabia qual seria a resposta, mas tive que perguntar.

— Não. — Riu um pouco, mas logo sua expressão tornou a ficar séria. — Alessia... sei que está machucada fisicamente e... gostaria de ajudá-la.

— Me ajudar? E como faria isso?

— Um dos poderes dos fantasmas é a cura. Se me deixar entrar em seu corpo novamente, poderei curá-la desse ferimento que está mantendo você na cama.

— E a que preço? Você vai simplesmente fazer isso e pronto? Não vai sofrer nem nada?

— Bem... — pareceu sem graça, e continuou a frase depressa — vou tomar o ferimento para mim, mas meu corpo não sente dor, lembra?

— Não vou permitir isso!

— Alessia, por favor, deixe-me ajudar. Não vou sentir dor e me curo bem mais rápido que você.

— Não posso deixar você tomar isso para si! Além do mais, você e Ethan lutaram comigo contra as feras. Ainda devem estar fracos.

— Ethan tomou o sangue de Daniel e também de outras pessoas que ofereceram. Bebeu direto do corpo dessas pessoas e por isso se recuperou rápido. Daniel é meio humano e seu sangue também é poderoso.

— E você?

— Me curei com a ajuda da Água. Meu Poder finalmente decidiu me ajudar. — E lançou um sorriso de desdém no final. — Não queria me ver tão machucado.

— Mesmo assim, não posso deixar....

— Vou ter que esperar mais um pouco até que você esteja forte o suficiente para aguentar duas almas no corpo, mas até lá te darei a chance de mudar de ideia. — E se dirigiu para a porta, após se despedir.

Daniel, Julie, Cameron, Camilla e Noah vieram em seguida, um por um, conversar e perguntar como estava me sentindo. Até Stella, Havena e Ônix, os antigos professores de Fantasy, vieram me visitar. Explicaram que aquelas flores no vaso eram apenas algumas das flores que os habitantes da vila vinham mandando para mim, como votos de melhoras. Estavam todos preocupados e ansiosos para que me curasse. Fiquei muito feliz e agradecida pelo carinho deles.

Mais alguns dias se passaram e meus amigos vinham me visitar sempre que conseguiam. A loucura de Ária ainda não passara, mas não teve nenhum outro surto. Estava ansiosa para falar com Ethan e Lewis novamente, mas Lewis não vinha me visitar. Acho que estava me dando tempo para pensar na sua proposta.

Ethan vinha todos os dias e eu sempre fazia a mesma pergunta. E ele sempre dava a mesma resposta: Não, Ária não mandou castigar a mim e ao fantasma. Tinha certas dúvidas se Ária sequer sabia sobre o que aconteceu conosco, mais especificamente comigo, já que não viera me visitar nenhuma vez.

Lewis voltou a me visitar, após uma semana, novamente com a proposta de que iria me curar. Estava cansada de ficar ali o tempo todo e depois de uma longa discussão, finalmente me convenceu a deixá-lo ajudar.

Não foi tão diferente das outras vezes: colocou o medalhão na mesinha ao lado da cama, me ajeitei com cuidado para não acabar caindo ao desmaiar, entrou em mim como um fantasma e quando saiu, já não sentia mais nada no local do antigo ferimento.

— Você está bem?

— Estou. Não sinto dor.

— Então é melhor não me tocar até isso melhorar.

— Ah. Certamente, não quero sentir nada dessa vez. — E sorriu.

Lewis ficou ali comigo até o horário do almoço e por mais que insistisse, não me deixou ver como estava o machucado que tomou para si. Notei que tinha sido alguma coisa grave, pois quando se materializou novamente, a camiseta branca que usava ficou tingida de um tom róseo, que lembrava o sangue. Acho que era o sangue de um fantasma quando se materializava. Não era igual ao sangue normal.

No fim da tarde, Cameron veio me visitar novamente e trouxe uma caixa de chocolates deliciosos, que comemos juntos. Atualizou-me sobre o estado de Ária e sobre como estava a segurança do reino. Disse também que amanhã receberia alta e poderia sair da enfermaria. Não tinha mais a necessidade de um guarda ficar me acompanhando e estava livre para ir aonde quisesse.

— Só não se meta mais em confusões, por favor.

— Não tenho culpa. São as confusões que vêm atrás de mim.

— Sei, mas se obedecesse às regras e os horários, nenhuma dessas coisas teria acontecido.

— E as feras não estariam extintas.

Não sei o motivo, mas quando mencionei as feras, sua expressão pareceu ficar tensa. Deve ter sido só impressão minha, porque logo depois abriu um sorriso e perguntou como foi que me curei tão rápido em poucas horas. Contei que Lewis havia tomado a ferida para si e que logo estaria curado.

Cameron jantou comigo e só saiu do quarto quando a enfermeira o expulsou, mas antes me informou que dali a duas semanas Ivan realizaria o baile de comemoração pela minha recuperação e pelo ato de heroísmo que Lewis, Ethan e eu desempenhamos.

Fiquei realmente aliviada por poder sair daquele quarto, no dia seguinte. Fui diretamente tomar um bom banho de banheira no meu quarto e me vesti com um dos vestidos que Ária mandou fazer para mim (tentei encontrar o mais simples deles).

Era um vestido de pano leve e azul escuro, mangas longas e decote em U. Era bonito e, como não planejava sair do castelo hoje, não passaria calor com o sol extremamente quente que raiava lá fora. Calcei nos pés sapatilhas que pareciam ter sido feitas por fadas de tanto que brilhavam (talvez tenha sido um presente de Lisarin).

Encontrei novamente o colar que ganhei no dia em que Ária misturou seu sangue ao meu e percebi que a pedra estava mudando lentamente de cor: de um tom de preto bem escuro para um tom mais acinzentado e com fios roxos se enrolando mais ao centro. Nas beiradas da pedra, começava a despontar uma cor esbranquiçada com fios dourados. O que isso queria dizer? Não era importante agora, precisava ir à biblioteca tentar descobrir o que Ária tinha.

Cheguei à biblioteca e encontrei Camilla e Cameron. Alguma coisa em minha mente dizia que tinha algo realmente importante para lhes falar, mas não sabia exatamente o que era. Sentei-me com eles em uma das mesinhas e comecei a folhear um dos grossos livros, porém meus pensamentos vagavam sobre o assunto que deveria falar com os dois. O que poderia querer dizer a eles? Eram inteligentes e poderosos, sabiam muito sobre feitiçaria e bruxaria, mas o que teria para falar, então?

— Conseguiram algum progresso? — E fechei o terceiro livro em que não encontrei nada.

— Na verdade, não. Camilla fez algumas anotações, mas nenhuma parece ser de fato o problema ou a solução. — Cameron também fechou seu livro e dirigiu a mim um olhar cansado e sonolento.

— Estão aqui há quanto tempo?

— Saímos quando nos expulsaram da biblioteca ontem à noite e levantamos bem cedo hoje, para continuar as buscas. — Camilla terminou uma anotação.

— Acho que precisamos trabalhar em turnos. Vocês estão muito cansados. Como acham que vão conseguir pesquisar qualquer coisa se seus olhos não se aguentam abertos?

— Ela está certa. — Camilla lançou a Cameron um olhar de advertência, quando abriu a boca para discordar.

— Mas é minha madrinha! Não posso simplesmente descansar, Milla! Você sabe que Ária foi uma mãe para mim!

— Eu sei, mas você não ajudará em nada se ficar evitando dormir para fazer a pesquisa. — E tocou o ombro dele com delicadeza.

— Além do mais, Cameron, você não está absorvendo direito as informações com seus olhos e seu cérebro fatigados desse jeito. — Lancei lhe um olhar compreensivo.

— Tudo bem. Vou dormir um pouco, então. — E levantou de repente, sua expressão estava uma mescla de frustração, cansaço e raiva.

— Ele....

— Não, Alessia, não está bravo conosco. — Camilla falou antes que pudesse completar.

Demos continuidade às pesquisas até a hora do almoço, quando tivemos que parar porque nossos estômagos não paravam de nos lembrar de que também sentíamos fome. Camilla me deixou dar uma olhada nas anotações dela, mas Cameron tinha razão. Nada daquilo parecia ser realmente uma solução.

Havia muitos feitiços estranhos que poderiam fazer a pessoa enlouquecer, mas Ária não estava exatamente louca, só muito confusa. Não queria discordar de Ivan, mas acho que deixá-la presa numa torre não era a medida certa para fazê-la recordar em que tempo estava e as mudanças que ocorreram. Gostaria de saber porque Ária odeia tanto vampiros.... Pareceu-me, desde o primeiro dia em que a vi, uma pessoa bondosa e sem preconceitos, mas ao que parece, me enganei.

Depois do almoço, decidi que não queria ficar trancafiada na biblioteca, por isso peguei alguns livros, os joguei em uma bolsa e saí do castelo para dar uma volta na vila, na praia ou na floresta. Ler ao ar livre parecia uma ótima ideia e pela primeira vez estava andando sozinha por Magic, sem que ninguém estivesse atrás de mim como um guarda-costas.

Decidi não passar pela vila para aproveitar minha liberdade, afinal, se passasse por lá com certeza alguém iria querer me acompanhar e não que não quisesse a companhia das pessoas, mas precisava de um momento a sós.

Contornei a vila pela floresta e demorei bem mais para chegar à praia do que desejava. Não poderia ficar por muito tempo ali, senão quando voltasse já estaria escuro e não queria andar pela floresta sozinha à noite. Não sabia de onde vinha esse pânico sobre a floresta durante a noite, mas não me importava, contanto que não estivesse lá após o pôr do sol.

Caminhei pela praia por um bom tempo, adiando a cada passo o momento de parar e voltar a ler aqueles livros antigos e mofados. Geralmente adoraria ler esse tipo de livro, mas o peso deles em minhas costas estava me incomodando e as preocupações que trariam de volta à minha mente também.

Era tão maravilhoso caminhar na areia da praia, ouvir o marulhar das ondas e sentir o sol em minha pele, embora o sol estivesse fazendo minha pele arder mais que o normal. Comecei a andar pelas sombras das árvores que estavam próximas da areia e passei a observar a paisagem. Não muito longe de onde estava, tinha uma espécie de porto com um navio ancorado, ambos pareciam velhos e caindo aos pedaços, mas era o tipo de local em que adoraria parar e explorar.

Segui depressa até o pequeno porto, observei o navio sem entrar nele, pois alguma coisa me dizia que não era seguro, segui até a ponta da plataforma de madeira e sentei ali. O que restara das velas do navio fazia uma sombra considerável e era um bom lugar para ler. Tirei a bolsa e espalhei os livros pelo chão, escolhi um deles e passei a ler o índice.

— Você voltou! Onde está o seu amigo fantasma? — Uma voz falou de repente e meu coração deu um salto de susto.

— Quem está aí? — Olhei para a praia e para a floresta.

— Na água. — Baixei meu olhar em direção aos meus pés, balançando acima da superfície do mar.

— Eu... conheço você... — me sentia um pouco insegura, mas tentei recordar.

— É claro que conhece! Sou Undine. Há quanto tempo. — A criatura na água disse com um sorriso, revelando em cada dente uma presa como as de tubarões. Nadava de uma maneira estranha e me ocorreu que talvez fosse uma sereia ou algo do tipo. Sabia que a conhecia, mas as lembranças estavam vagas demais para afirmar com certeza.

— Sinto muito por não me lembrar de você. Minhas memórias estão um pouco bagunçadas desde a última luta em que estive.

— Ah, sim. Ouvi falar dela. Fico contente que tenha se recuperado, mas o que te traz aqui? Veio mesmo me visitar?

— Ah... na verdade, estava procurando um local para ler, sabe? Não aguentava mais ficar trancafiada no castelo e não queria outras criaturas me rodeando.

— Quer que vá embora, então?

— Ah! Não, tudo bem. Pode ficar. Eu quis dizer que....

— Eu sei, não se preocupe. — E sorriu ainda mais.

— Undine, você sabe sobre o problema de Ária?

— A Rainha daqui? Fiquei sabendo... já descobriram o que ela tem?

— Na verdade, não. Por isso trouxe todos esses livros até aqui. Estamos procurando qualquer informação que ajude.

— Desejo-lhes sorte. Se ficar sabendo de alguma coisa te direi. Agora... conseguiu encontrar aquelas criaturas de que te falei?

— As feras? Sim, eu... as matei. — Disse um pouco devagar, pois toda vez que pensava nisso um calafrio percorria meu corpo.

— Oh, não. Não as feras de Trevas, os humanos transformados.

— Os que eram híbridos como eu? Ah! Eu lembro agora. Não, não os encontramos ainda.

— Talvez, se você conseguir falar com eles, saibam o que aconteceu com Ária.

— Acha mesmo que poderiam saber?

— São tão antigos quanto a Rainha Antonieta e têm pleno conhecimento sobre os feitiços que envolvem a parte perigosa da magia. Aprenderam com o gênio... — ao falar do gênio a voz da criatura mudou para um tom sonhador e repleto de pesar.

— Mas... onde posso encontrá-los? A ilha não é maior que Fantasy, mas é grande também!

— Há um lugar em que gostam de se esconder. Talvez tenha sorte e consiga que apareçam sem querer te matar.

— E como vou encontrar esse lugar? Você pode me levar até lá?

— Não posso me afastar da água por tanto tempo, minha querida, mas se voltar aqui amanhã, te fornecerei um mapa que te levará exatamente aonde você pretende ir.

— Obrigada. Obrigada mesmo, de verdade. — Sentia-me completamente agradecida e renovada de esperança.

— Disponha. Mas me prometa duas coisas.

— O que?

— A primeira: que você não irá sozinha. E a segunda: você seguirá exatamente as instruções que te der, do contrário, estará em perigo mortal.

— Eu prometo. — E assenti com a cabeça, enquanto recolhia meus livros e os recolocava na bolsa.

— Aliás... prometa-me mais uma coisa.

— Diga.

— Se encontrar pela caverna deles e conseguir fazer com que devolvam, um colar de pérolas negras com apenas uma pérola rosa no centro, por favor, traga-o até mim.

— Certo, eu prometo. — E me levantei. — Mas... por que o quer?

— Foi o gênio da lâmpada quem me deu. Aquele por quem era apaixonada. — E soltou um suspiro triste.

— Eu prometo. — E me despedi da criatura, mas antes que fosse embora, mergulhou nas águas e ao retornar me presenteou com uma pulseira de pérolas brancas. Explicou que aquela pulseira era mágica e que me ajudaria a encontrá-la ou chamar ajuda marinha caso precisasse. Não achei que precisaria de ajuda marinha, mas pelo menos conseguiria falar com Undine onde quer que estivesse.

De volta ao castelo, subi para meu quarto tomar um banho rápido e logo em seguida tive que descer para o jantar. Ethan estava na mesa conosco hoje, mas isso porque Ária não estava presente. Ivan e Leon também não estavam por perto.

— Luzia? Onde estão Ária, Ivan e Leon? — Lancei lhe um olhar preocupado.

— Ária está na torre e Ivan foi acompanhá-la no jantar. Não sei onde Leon está, mas deve estar cuidando do treinamento de alguns novos guerreiros que se candidataram.

Durante o jantar, fiquei pensando nas palavras de Undine e sabia que precisaria de companhia para ir atrás dos animais. No entanto, todos tinham dito a mesma coisa: não se meta mais em nenhuma confusão. Com certeza iriam pensar que essa empreitada em busca dos híbridos seria uma tremenda confusão. Fora que seria perigoso e talvez mortal. Em quem poderia confiar? Quem me deixaria ir e ainda iria comigo?

Cameron e Camilla eram cuidadosos demais e estavam muito ocupados para me acompanhar. Lewis ainda estava ferido com meu machucado. Nenhum dos fundadores deixaria me arriscar dessa maneira. Stella, Havena e Ônix estavam trabalhando na vila e estavam ocupados demais. Daniel, Julie e Noah também estavam trabalhando na vila, mas talvez conseguisse pedir sua ajuda.... Depois do risco de vida que corri, Ethan jamais me deixaria sair em uma aventura como essa e provavelmente se ofereceria para ir no meu lugar. Não. Não posso deixar ninguém fazer isso por mim.

Undine não disse exatamente que teria que ser eu a falar com as criaturas, mas sentia que apenas eu conseguiria realizar essa tarefa. Talvez estivesse sendo orgulhosa. Talvez estivesse sendo metida, mas minha intuição nunca me falhava.

Enquanto voltava para o quarto e pensava ainda em quem mais poderia me ajudar, voltei a sentir aquele vazio, como se alguma coisa ou alguém estivesse sendo esquecido. Como se houvesse lacunas no meu cérebro, me impedindo de saber de algo. Era terrível me sentir assim, mas sabia que meus amigos não esconderiam nada de mim e provavelmente a confusão da minha mente era que estava me pregando peças sobre essa pequena falta de algumas lembranças.

Já deitada em minha cama há algum tempo, comecei a pensar se demoraria muito para encontrar os híbridos. O baile que Ivan faria para nos homenagear seria dali a três dias e seria uma falta de respeito se não aparecesse. Além do mais, Noah, Julie e Daniel não poderiam desaparecer por muito tempo, logo perceberiam que não estavam por ali e que eu também não estava. Então relacionariam uma coisa coma outra e quando voltássemos iriam castigá-los por ter permitido que me arriscasse dessa maneira.

Tive que tomar uma decisão nesse momento: iria até Undine sozinha para pegar o mapa, me daria as instruções e uma estimativa do tempo que levaria e com isso decidiria se levaria alguém comigo. É claro que havia prometido não ir sozinha, mas não era questão de escolha nesse momento. Não poderia arriscar meus amigos numa aventura dessas se ainda por cima, quando voltássemos, seriam castigados.

No dia seguinte, vesti roupas mais confortáveis, calças, botas de caça e uma camiseta regata. Cobri tudo com um manto longo de coloração escura, que possuía um capuz e estava pendurado na beirada de uma das cadeiras do meu quarto.

Segui pelo castelo, tentando disfarçar a minha ansiedade e cumprimentei o maior número de pessoas possível, assim ninguém perceberia que estava tentando sair escondida. Ignorei o café da manhã e segui correndo para a vila.

Ao chegar, cobri o rosto com o capuz e andei o mais rápido que podia, tentando atravessar logo sem ser reconhecida. Meu caminho seria bem mais rápido se atravessasse a vila do que se a contornasse, portanto, cheguei rapidamente na floresta e a atravessei.

Caminhei rapidamente pela praia até chegar ao porto onde encontrara Undine duas vezes e não tardou para que aparecesse. Dessa vez, veio caminhando até mim pela plataforma de madeira e me entregou uma bolsinha de coloração esverdeada e um pouco úmida, parecia feita de algas marinhas. Explicou que ali dentro tinha o mapa e algumas outras coisas que poderiam me ajudar, também colocou um livro junto, que explicaria como usar alguns objetos mágicos que acrescentara na bolsa.

— Já decidiu quem irá com você?

— Sim. Minha amiga Julie e meus amigos Daniel e Noah.

— Já lhes contou tudo que precisam saber?

— Sim. — Forcei um sorriso. — Undine, sabe quanto tempo levará para que encontremos esse lugar?

— Não é longe, só é muito bem escondido com magia negra. Levará dois dias, mais ou menos. Um para ir e outro para voltar.

— Ah, sim. Obrigada, é melhor me apressar. — E me despedi.

Dois dias.

Voltaríamos a tempo do baile, já que seria apenas de noite. Dois dias não seriam suficientes para fazer alarde sobre o nosso sumiço, principalmente agora que as feras estavam extintas e a população estava mais calma.

Voltei correndo para a vila, usando o feitiço de velocidade que Lewis havia me ensinado e isso me ajudou a economizar muito tempo. Ao chegar, encobri meu rosto com o capuz e comecei a perguntar onde poderia encontrar Julie. Falaria com ela primeiro. Julie estava ajudando as fadas donas da estalagem/lanchonete que havia sido construída no lugar de uma casa grande abandonada, mas que serviu direito para o propósito delas.

Encontrei-a e nos sentamos no fundo do estabelecimento para podermos conversar em particular. Expliquei rapidamente o que teríamos que fazer, o que eram esses tais humanos híbridos e porque não poderia contar para ninguém. Como imaginei, seu espírito aventureiro falou mais alto que a preocupação com a nossa segurança e aceitou sem rodeios, dizendo que não me deixaria ir sozinha.

Combinamos de nos encontrar em uma hora na fronteira da vila com a floresta e fui atrás de Daniel. Durante nossa conversa, percebi que Julie estava me observando de uma maneira estranha, parecia estar com pena ou preocupada com alguma outra coisa e não com o que estava dizendo. Talvez não tenha gostado do manto que estava usando, preferia peças com cores mais vibrantes, apesar de gostar de cores escuras.

Daniel estava tomando café da manhã na casa de um casal que me apresentou logo que chegamos a Magic, aquele que tinha um filho chamado Julian. Ao entrar na casa senti novamente a sensação de que estava faltando um pedaço da minha memória. Ignorei essa sensação, pois tinha coisas mais importantes para fazer no momento.

Ao encontrar Daniel na cozinha, desviei meus pensamentos um pouco. Ele contou que estava vivendo com aquela família agora e aprendendo muito sobre magia com eles, apesar de que Leon, que agora era seu novo treinador, pegava pesado nos treinos de luta e de construção de armas élficas. Quando disse que precisava falar em particular, a nova família saiu da cozinha por um momento e contei resumidamente o mesmo que falei a Julie.

Daniel tinha a mesma expressão de Julie quando me observava e parecia querer dizer algo a mais, mas sempre se calava quando fazia menção de falar. Por fim, aceitou me ajudar. Combinei o mesmo que com Julie e agora tinha que falar com Noah.

Encontrei-o ajudando alguns elfos a consertar a fonte que ficava no centro da praça, onde era o coração da vila. Deu um tempo no trabalho quando me viu chegar e nos sentamos em um dos banquinhos que rodeavam a praça, com o chão de pedrinhas cinzentas. Novamente repeti as informações que já havia dito aos outros dois e também concordou em me ajudar.

Já começava a me irritar a maneira como estava me observando, exatamente como Julie e Daniel, quando lembrei de avisá-lo para se preparar e me encontrar em meia hora nos arredores da vila, perto da floresta.

É claro que fui a primeira a chegar e apesar de ter tido mais tempo para me preparar que os outros, nem pensei em preparar uma mochila para a viagem. Tudo de que dispunha era a bolsinha que Undine me dera e as roupas que estava usando. Enquanto esperava sozinha nas sombras de uma árvore, uma coisa aconteceu.

"Não achou que a deixaríamos sozinha, não é?" Uma voz sussurrou em minha mente e foi como se uma rajada de vento frio tivesse soprado dentro da minha cabeça. Uma parte da enorme lacuna mental foi preenchida e me lembrei de que tinha poderes com as Sombras.

"Vocês voltaram.... Por que não falaram comigo antes?"

"Estávamos ocupadas, Alessia. Precisamos fazer um grande esforço para ajudar a curá-la e para nos alimentar depois." Por algum motivo, o fato de terem tido dificuldade para se alimentar estava fazendo minha mente ficar confusa.

"Obrigada por terem me ajudado". Foi tudo que consegui falar com a confusão em minha mente.

— Alessia? — Era a voz de Julie, que havia chegado primeiro.

— Estou aqui. — Levantei-me para que pudesse me ver.

Julie havia se preparado melhor do que eu. Havia arrumado uma mochila pequena com comida e algumas outras coisas que poderíamos precisar. Trouxe uma espécie de flauta, acho que era uma gaita, que quando tocada por uma ninfa poderia fazer os animais ficarem encantados e paralisados por causa da música.

Quando terminou de apresentar o que trouxe, Daniel chegou e foi sua vez de nos mostrar o que tinha trazido consigo. Fiquei feliz que estivesse aprendendo a lutar, havia trazido um arco e uma aljava com flechas que ele mesmo produziu.

Noah chegou logo em seguida e apostou em seus próprios poderes para nos ajudar, embora também tenha trazido uma mochila com algumas coisas. Noah conseguia controlar a Natureza, ou parte dela, já que seu Poder era um pouco temperamental. Mesmo assim seria capaz de nos ajudar bastante e resolveu que essa seria sua melhor defesa e ataque.

Mostrei o conteúdo de minha bolsa e o mapa. Alguns dos objetos mágicos meus amigos conheciam e os que não conhecíamos provavelmente estavam identificados no livro que Undine me deu junto. Não havia tempo para ficar consultando isso agora, por isso começamos a analisar o mapa e Noah se ofereceu para nos guiar, já que seu Poder lhe dava um bom sentido de direção e conseguia decifrar o mapa melhor do que nós.

A floresta ia se tornando mais densa conforme prosseguíamos, mas Noah parecia saber exatamente para onde tínhamos que ir. No mapa de Undine havia três pontos de referência para que pudéssemos saber se íamos na direção certa e no fim do dia já estávamos ao lado do terceiro.

— Vejamos... já passamos pelo Lago Verde, pela Pedra da Coroa e agora estamos parados bem ao lado da Árvore Toca. — Noah dizia, enquanto observava o mapa mais uma última vez antes de pararmos um pouco para descansar.

O Lago Verde era um pequeno lago que com o passar dos anos havia ficado coberto por uma vegetação verde e agora era chamado assim. Li sobre ele enquanto descansava, no livro que Undine nos deu. A Pedra da Coroa era uma imensa pedra, que no topo era dividida quase que igualmente em três pontas e isso a fazia parecer uma coroa. Por fim, a Árvore Toca, que era uma imensa árvore cuja copa havia formado a sua volta uma espécie de cabana e cobria completamente seu tronco, já que os ramos chegavam ao chão.

Era uma formação realmente bonita, pois de acordo com o livro, ficava com o mesmo tom de laranja vivo o ano todo. Ficamos abrigados debaixo da árvore, descansaríamos por duas horas e depois seguiríamos viagem. Noah, por ser metade vampiro, se ofereceu para manter a guarda, já que não precisava dormir todos os dias. Daniel, Julie e eu nos deitamos no chão de terra e usamos as mochilas como travesseiros. Ao final de duas horas Noah nos acordou e nos arrumamos para continuar. Meu sono havia sido agitado por pesadelos, os quais não conseguia me lembrar de jeito nenhum. Agora já havia escurecido e comecei a lembrar do medo de estar na floresta à noite.

"Nós estamos com você, Alessia. Não precisa temer a noite." Uma voz familiar sussurrou em minha mente e percebi que as sombras ao nosso redor estavam nos acompanhando enquanto andávamos.

Essa visão e a confirmação de que as Sombras me protegeriam serviu para me acalmar um pouco e consegui manter o foco na missão. A Lua, que havia nos ajudado a enxergar até esse momento, nos abandonou quando Noah nos informou que deveríamos estar chegando perto. Era possível sentir no ar o poder que irradiava daquele lugar sombrio e assustador.

Era uma caverna.

— Então... esse lugar não deveria estar escondido? — Daniel se aproximou da entrada da caverna rochosa.

— Não se aproxime! — Noah rapidamente puxou Daniel pelo ombro.

— O que foi? Notou alguma coisa? — Julie observava tudo com um olhar apreensivo.

— Não deve ser tão simples assim.... Alessia, use aquela pedra redonda e achatada que estava na bolsa que a criatura te deu.

— Essa aqui? — Tirei da bolsa uma pedra transparente que pareceria uma lente de óculos, se não fosse tão grossa.

— Sim. Essa mesmo. Pode me emprestar?

Entreguei a pedra e ele a girou na mão. Fiquei pensando se estaria tentando descobrir qual o melhor lado para jogá-la lá dentro, mas quando estendeu o braço e a colocou na frente de um dos olhos como uma lente, entendi que não pretendia atirá-la longe. Ficou um tempo observando a entrada da caverna com a pedra e depois que baixou o objeto, explicou para nós que havia muita magia ali e que era forte e densa. Era quase como uma porta invisível.

— O que faremos, então? — Daniel cruzou os braços em frente ao corpo.

— Alessia, pode me emprestar o livro? — Noah dirigiu o olhar para mim.

Entreguei-o a ele, que folheou algumas páginas e pareceu encontrar o que estava procurando, nos mostrando um desenho da caverna e... alguma coisa estava escrita embaixo do desenho, mas estava em uma língua diferente que não compreendia. Daniel também pareceu não compreender, mas Julie e Noah entenderam perfeitamente.

— Apenas pessoas que controlam a magia negra podem entrar. A magia da qual aquelas feras eram feitas. — Noah me observava fixamente.

— Alessia, você controla as Sombras! São uma parte das Trevas, talvez você consiga entrar. — Julie tocou meu ombro suavemente e sorriu.

— Oh. Bem, sim, mas....

— Alessia controla o quê? — Daniel olhava para nós com uma expressão de incredulidade.

— Como você não sabia? Quase todos sabem que Alessia controla as Sombras e por isso conseguiu derrotar aquelas feras terríveis. — Retrucou indignada.

— Não saíram espalhando isso pela vila, Julie. — Noah tentou acalmá-la.

— Tudo bem, então eu entro e vocês esperam aqui. — Disse decididamente antes que perdesse a coragem. As sombras que nos rodeavam começaram a se aproximar de mim na forma de névoa e se enroscaram nas minhas pernas até a cintura, trazendo uma sensação gélida.

— Não! — Exclamaram os três juntos, encerrando a discussão que estavam tendo.

— Então o que querem que eu faça?

— Bem... só você poderá entrar, mas não precisa enfrentar essas coisas sozinha. — Disse Noah. — Faça o seguinte: entre se escondendo com as Sombras e arrume uma maneira de atrair os bichos para fora; quando saírem, Julie irá hipnotizá-los com a gaita que trouxe e então poderemos extrair as informações que precisamos.

— Certo. Fiquem em suas posições, vou entrar.

Com as Sombras me encobrindo foi fácil entrar sem ser vista, mas quando passei pela entrada da caverna foi como se estivessem passando um scanner em todo o meu corpo para ver se poderia ou não passar.

Lá dentro era escuro, mas as Sombras estavam me ajudando a enxergar o que fosse necessário para que não tropeçasse e fizesse barulho. Chegamos ao fim da caverna e lá havia muitas coisas jogadas por todos os cantos, meu estômago se revirou quando vi em um dos cantos uma pilha de animais mortos, que pareciam ter sido atacados por leões ferozes e famintos.

"Simplesmente não olhe". E não precisaram repetir a ordem.

Localizei o que parecia ser uma quimera estranha e assustadora, era exatamente como Undine havia descrito: uma mistura de olhos humanos, rosto e dentes de lobo, corpo de leão, asas de cavalos alados e rabo de dragão. Não era uma visão amigável e o animal era só um pouco menor que um elefante. As Sombras me ajudaram a vasculhar a caverna enquanto aquela coisa ainda dormia e então me lembrei do colar que Undine me pediu para levar, caso encontrasse.

"Esse bicho está de fato sozinho?"

"Sim, está vigiando a toca. Talvez esteja ferido."

"Preciso encontrar uma coisa..."

"Não precisa dizer, nós sabemos o que procura e sabemos onde está."

"Podem me dizer? Preciso pegar esse objeto para a criatura que me deu o mapa."

"Você não conseguirá pegar, mas nós sim. Teremos que deixá-la por alguns segundos, mas é só ficar parada e não se mexer, que o animal não sentirá sua presença."

"Tem certeza?" Senti-me completamente insegura.

"Temos. Por favor, não se mexa."

"Certo."

Pude sentir quando a névoa me deixou e começou a se afastar, embora não me movesse e mal respirasse. Meu coração estava acelerado em um ritmo anormalmente rápido. Uma parte de mim estava temendo que o bicho ouvisse os batimentos e me atacasse.

Quando estava começando a considerar que estava com medo por nada, o bicho abriu os olhos e parecia que meu coração havia parado. O animal se levantou e embora estivesse escuro e não tivesse a ajuda das Sombras, consegui ver que estava olhando fixamente para algum lugar e não estava muito contente.

No mesmo instante em que o animal investiu numa direção diferente da minha, senti as Sombras me engolfando com seu toque frio e me impelindo para correr dali o mais rápido que conseguisse. Colocaram o colar na minha mão assim que me encontraram e enquanto corríamos de volta pelo caminho que havíamos feito, o animal rugia feroz e corria desajeitadamente pelo corredor de pedra da caverna, atrás de nós.

Quando emergimos da caverna, a criatura não pensou duas vezes em nos seguir e as Sombras me instruíram a me jogar no chão. Ao fazer isso, ouvi Julie tocar a flauta e senti o ar se agitar sobre mim quando a fera passou por cima e errou o alvo.

— Não está funcionando! Alessia, corra! — Daniel pegou o arco, encaixando uma flecha nele. Tentei me levantar o mais rápido que podia, mas minhas costelas doíam pelo contato brusco com o chão de terra.

— Não atire, Dan! — Ainda tentava me levantar. — Não o queremos morto ou ferido! Queremos sua ajuda!

— Tudo bem! Deixem comigo! — Noah concentrou seu olhar na criatura e no instante seguinte vários cipós se enrolaram no animal e o imobilizaram. A coisa rugia com raiva e tentava se debater, mas era inútil.

— Por que minha flauta não funcionou? — Julie se aproximou devagar de onde estava.

— Acho que é porque sua flauta só tem efeito em animais. — Disse sem pensar.

— E isso é o que, Alessia? — Parecia realmente incomodada pela falha.

— Tem um coração humano, embora tenha sido corrompido.

— Como sabe disso?

— Undine me contou.

— Muito bem, vou tentar me comunicar. — Noah se aproximou do bicho, ainda mantendo as mãos fechadas como se estivesse pronto para socar alguém. Acho que era assim que mantinha a quimera presa com os cipós. — Nós não queremos machucá-lo, amigo. Só queremos que nos diga umas coisas.

— Acho que não quer falar com a pessoa que o está mantendo amarrado, Noah. — Julie falou depois de um tempo. — Deixe-me tentar. — E se aproximou também. — Olá, sou Julie, uma ninfa. Gostaria que pudesse colaborar conosco para que possamos te deixar em paz.

— Parece que não quer falar com você também. — Comentou Noah, quando percebeu que tudo que o bicho fazia era desviar o olhar do de Julie.

— Algum de vocês dois quer tentar? — Julie se dirigiu a mim e Daniel.

— Não. Acho que não vai querer falar com alguém que lhe apontou uma flecha. — Daniel parecia estar sem graça.

— Tudo bem, eu tento. — E me aproximei da criatura, queria encará-la de frente por mais horrenda que fosse sua aparência. — Sou Alessia e.... Bem, sou quase como você. Também fui transformada em alguma outra coisa... — o animal parou de virar o rosto e me encarou nos olhos. Nesse instante foi como se tudo ao meu redor desaparecesse e só conseguisse olhar os intensos olhos azuis humanos do animal.

"Olá, Alessia. Meu nome humano é Ruy. O que você e seus amigos querem comigo"? O animal tinha uma voz cavernosa e grave, mas não estava de fato falando, pois estava na minha mente.

"Olá, Ruy, nós queremos.... Bem, uma amiga nossa está enfeitiçada e não consegue voltar a si. Está parecendo louca e uma criatura me disse que talvez um de vocês soubessem o que tem e como curá-la".

"Se fizer isso vão nos deixar em paz? E vão prometer não nos incomodar mais nem falar nossa localização para outras criaturas"?

"Sim. Nós prometemos".

"Está bem. Deixe-me acessar suas lembranças para poder entender o que sua amiga tem".

"Como faço isso"?

"Não precisa fazer nada, só não me impeça".

"Tudo bem".

"As respostas para o que procura estão no seu próprio quarto no castelo". Respondeu o animal depois de um tempo. "É tudo que posso dizer".

Então finalmente voltei a perceber as coisas que estavam a minha volta e senti minhas pálpebras se fechando para fazer meus olhos piscarem. Senti minha cabeça girar e cambaleei um pouco para trás quando a conexão foi cortada. Noah estava gritando meu nome e Julie e Daniel me seguravam pelos braços. Não percebi que estava com as pernas bambas.

— Alessia! Alessia, o que houve? — Julie me observava preocupada.

— Consegue nos ouvir? O que aconteceu? — Daniel também me encarava.

— Soltem-no. — Tentei me sustentar com minhas próprias pernas. — Disse que as respostas que estamos procurando estão no meu quarto no castelo.

— Isso não faz sentido nenhum! — Daniel observou a criatura, indignado.

— Está mentindo! Está nos enganando! — Julie lançou um olhar irado ao animal.

— Não, não está mentindo. — Tentei acalmá-los. — Sei que está falando a verdade. Vamos logo. Precisamos voltar ao castelo e revirar meu quarto.

— Não adianta tentar arrancar mais informações. — Noah não parecia estar irritado ou indignado. — Quimeras gostam de adivinhações em seus conselhos, são parentes das esfinges com seus enigmas. Esse híbrido se tornou uma espécie de quimera.

— Então vamos logo. — Julie se afastou rapidamente do animal.

— Vamos. — Daniel me guiou para longe do bicho, senti o colar de pérolas em minha mão e o guardei rapidamente na bolsa.

Então, ouvimos vários rugidos em algum lugar ainda longe, mas vindos do alto. Noah parou de tentar prender a criatura com os cipós. Todos começamos a correr e ninguém precisou nos avisar que as outras quimeras estavam chegando.

Noah deixou os cipós enrolados na criatura que deixamos para trás para poder atrasá-la e corremos o mais rápido que podíamos, até não aguentarmos mais. Daniel e eu corríamos mais devagar, mas com o feitiço de velocidade que Lewis me ensinou e que Daniel também sabia, nós conseguimos acompanhar Julie e Noah e nos afastar a tempo.

Quando estávamos chegando perto do Lago Verde, o dia já estava amanhecendo e a exaustão tomava conta de Daniel e eu. Continuamos a caminhar até que nossas pernas dobraram e se recusaram a dar mais um passo sequer.

Julie e Noah concordaram que estava na hora de parar e descansar por umas duas horas. Daniel e eu nos ajeitamos sobre a relva abaixo de uma árvore e adormecemos, até que Julie nos acordou para que prosseguíssemos. Chegamos na vila por volta do meio dia e paramos no restaurante das fadas (aquele em que Julie estava ajudando antes de encontrá-la e pedir que viesse comigo) e almoçamos por ali.

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