Capítulo 3
— Lembre-se de sempre ficar perto de alguém que não esteja querendo te usar como almoço. — Ethan lembrou-me pela milésima vez antes de sair para almoçar.
— Não precisa se preocupar com isso.
— O garoto tem razão, menina. — Disse a enfermeira Inês, enquanto trocava o curativo.
— Eu sei Inês, obrigada. Não vou me meter em nenhuma encrenca. Não precisam se preocupar.
Saí pela porta o mais rápido que pude, antes que viessem com mais recomendações que sabia de cor e salteado. Havia passado a manhã toda na companhia de Ethan (a pedido dele), para que não fosse atrás do Mestre das Sombras, como pensava que faria.
Segui diretamente para o meu quarto, sem seguir a recomendação de não andar sozinha, porque precisava urgentemente de um bom banho. Não encontrei ninguém pelo caminho e imaginei que estivessem todos no salão principal, almoçando e conversando sobre a reunião de ontem.
Entrei, arrumei uma roupa para vestir e agradeci pelas escolhas serem livres agora (muito embora muitos moradores ainda usassem os esquemas de cores impostos em Fantasy). Coloquei uma calça jeans escura, uma blusa regata branca e um tênis preto nos pés. Penteei o cabelo e dei uma ajeitada no meu rosto, depois desci para almoçar junto com os outros.
Após o almoço, voltei ao meu quarto e deitei na cama. Como é bom deitar em algo confortável depois de dormir uma noite inteira numa poltrona! Estava fechando os olhos e me preparando para uma sesta quando alguém bateu à porta. Primeiramente congelei e fiquei com medo que fosse Zein procurando por alguém para lhe doar sangue, mas assim que uma voz feminina chamou meu nome, percebi que havia me alarmado cedo demais.
— Entre.
— Alessia? Posso falar com você um pouquinho? — Julie entrou e sentou na cama comigo.
— Claro! Diga.
— Não sei se já te alertaram, mas fique longe dos vampiros hoje!
— Ah! Claro! — Falei depois de um tempo, quando finalmente compreendi que não estava se referindo especificamente ao Mestre das Sombras.
— Está tudo bem? Você parece mais pálida que o normal.
— Estou ótima! — Forcei um sorriso.
— Alessia... não minta para mim, por favor. Foi sobre isso que vim conversar com você. — E assumiu uma posição séria, que não combinava com seu perfil animado e extrovertido.
— Não estou mentindo.
— Alessia... tenho poderes com a alma, mas já treinei esses poderes por um tempo e posso ler mentes despreparadas.
— Puxa vida! Jura? Que legal! — Fingi estar animada com a informação, mas não era essa a reação que esperava.
— Alessia. Sei que está escondendo alguém de nós. E sei que apenas você e Ethan sabem quem é. — Parecia séria e sombria.
— Escondendo? É claro que não! Por que faria isso?
— Por que confia nele e não em mim? — Agora seu tom de voz era o de alguém que estava magoado.
— Julie.... — Segurei a mão dela, como que para pedir desculpas. — Eu não....
— Alessia. Quem pode ser para você chegar ao ponto de confiar no cara que te chantageava e não em seus amigos?
— Você não consegue ler completamente a ponto de saber quem é? — Decidi admitir que estava escondendo alguém, mas ainda estava relutante em contar quem era.
— Não consigo ler a sua mente tão bem, nem a de Ethan. Vocês dois bloqueiam bem o que pensam. Mas você admite que está escondendo alguém, então?
— Sim. — E deixei os ombros caírem, baixando o olhar.
— Por que não quer me dizer quem é? Por que não quer que ninguém descubra?
— As pessoas podem não ser tão tolerantes quanto a essa pessoa.
— Confie em mim, por favor. Não vou contar a ninguém. — E segurou firme minha mão.
— Julie.... Se você contar... se alguém descobrir... essa pessoa vai morrer e não quero isso. — Tentei demonstrar o quanto estava aflita e olhei fixamente em seus olhos.
— Prometo que não contarei. — Senti que dizia a verdade, portanto resolvi dizer logo de uma vez.
— Por favor, não surte com isso, mas o Mestre das Sombras veio conosco. — Fixei o olhar em sua expressão. Primeiro ficou surpresa, depois horrorizada e quando pensei que sairia correndo contando para todos, me abraçou.
— Não sei porque continua a protegê-lo depois de tudo o que fez, mas pode contar comigo para ajudar. — Senti as lágrimas em meus olhos.
— Obrigada.
Quando nos separamos, contei o resto da história. Que sem ele não chegaríamos até aqui. Que foi quem me ajudou a salvar Ethan. Que estava fazendo de tudo para se controlar e conseguir se enturmar com os outros habitantes, embora não pudesse mostrar seu rosto e nem usar sua voz original. E que foi ele também quem ajudou no feitiço de ontem.
— Ele se saiu muito bem. — E sorriu.
— Ninguém desconfia dele?
— Acho que não. Pelo menos não ouvi nenhum comentário sobre.
— Que ótimo! Assim fico mais tranquila. — Senti como se um grande peso saísse de meus ombros.
— Você deveria contar à Ária... tenho certeza que não o julgaria mal e te ajudaria a protegê-lo.
— Vou contar... assim que for coroada princesa.
— Ah! É verdade, esqueci que minha amiga se tornaria da realeza. Mas por que esperar ser coroada?
— Porque assim, caso Ária não o aceite, poderei protegê-lo como princesa de Magic.
— Faz sentido. Espero que dê certo, mas tenho certeza que Ária será compreensiva.
— Espero que sim. — Não consegui esconder a preocupação de meu rosto. — E obrigada mais uma vez por aceitar confiar nele também.
— Confio em você, não nele. — Já esperava esse tipo de resposta, de maneira que isso não me abalou. — O que acha de irmos até a vila? Podemos ajudar um pouco os moradores.
— Tudo bem. — Levantamos e saímos do castelo em direção à vila, que ficava ao pé da colina onde estava o castelo. Encontramos alguns aldeões limpando os vidros de uma casa e paramos para ajudá-los.
...
Havia acabado de terminar o banho, após ter voltado do passeio com Julie, quando alguém bateu à porta. Já era noite e pretendia dormir, mas mesmo assim terminei de pentear o cabelo e saí do banheiro. Segui até a porta e a abri.
— Pois não? — Disse antes mesmo de olhar para a pessoa.
— Olá, Alessia. — Aquela voz reconheceria em qualquer lugar. Oh, meu Deus! E agora?
— Ah. Oi. Como foi a reunião? — Tentei fechar um pouco a porta.
— Ótima. — E fez menção de entrar no quarto, ao que fechei mais a porta e a segurei firme. — Não vai me convidar para entrar?
— Está tarde. Eu já ia dormir. — Senti-me um pouco sem graça. Tentei ao máximo não olhar em seus olhos enquanto falava.
— Não seja por isso, não me demoro. — E me empurrou, entrando no quarto e fechando a porta atrás de si.
— O que foi? Aconteceu alguma coisa? — Tentei me afastar devagar, impedindo minha voz de gaguejar.
— Aconteceu. — E arqueou de leve as sobrancelhas.
— O que? Desconfiam de você ou....
— Estou com fome. Muita fome. — Disse de forma sombria, fazendo meu coração se acelerar de medo.
— Já deu uma olhada nos estoques da cozinha? — Tentei sorrir enquanto me afastava mais um pouco, indo em direção à cama sem perceber.
— Já e não me satisfez. — Pensei ter ouvido sua voz enrouquecer. Engoli em seco e tentei pensar no que fazer.
— Sinto muito, mas hoje não posso doar sangue a você. Já doei ao Ethan e sei que precisa de muito.
— Ah...! Doou sangue a ele de novo? — Pensei ter visto um brilho escarlate em seus olhos quando disse isso com um sorriso forçado.
— Sim. Precisava para se recuperar. Mas prometo que amanhã doarei a você! Você ficará ainda mais forte que antes! — Nem me importei por estar soando ridícula ao dizer isso.
— Não quero amanhã. — Sua voz estava tão rouca que parecia estar grunhindo ou rugindo.
— Infelizmente, só poderei lhe doar amanhã. — E andei mais um pouco para trás, senti a cama em minhas pernas e sabia que não teria mais para onde recuar. E ele continuava se aproximando....
— Já disse que quando as Trevas estão com fome, não se importam se a vítima está ou não fraca? — Um sorriso malicioso brincava em seus lábios. Percebi uma névoa escura se agitando ao seu redor e senti meu corpo estremecer ao lembrar do toque daquela coisa.
— Zein... você prometeu que iria se controlar. — Não consegui disfarçar que estava assustada. — As Trevas estão te controlando de novo. Livre-se delas!
Assim que pedi para que se livrasse delas, pareceram chiar e se apoderar ainda mais dele. Agora seus olhos estavam completamente vermelhos e suas presas haviam se projetado de tal maneira que era possível vê-las brilhar na fraca luz das velas do lustre no teto.
Não tive tempo de tentar correr ou gritar, ele se movimentou rápido demais e me agarrou pela cintura, juntando nossos corpos. Senti o ar me escapar e não pude evitar olhá-lo nos olhos dessa vez.
— Não faça isso.... — Senti lágrimas se formarem em meus olhos. — Por favor.
— Não tenho escolha. — Sussurrou em meu ouvido e desceu a extensão até meu pescoço, roçando os lábios na minha pele, fazendo-me arrepiar.
— Tem sim. Diga não. — Sussurrei de volta com a voz completamente trêmula.
Olhei ao nosso redor e percebi uma coisa estranha. Em torno dele havia uma névoa escura, mas com uma espécie de brilho vermelho e em torno de mim havia outro tipo de névoa, menos densa e um pouco mais clara, com um brilho arroxeado. As duas névoas pareciam lutar entre si e era isso que provocava os brilhos, parecendo relâmpagos numa tempestade.
Era uma luta difícil e Zein pareceu notá-la também. Por um instante, desviou sua atenção de mim e olhou ao nosso redor. Os brilhos das duas forças estavam agora fazendo todo o quarto brilhar também, na mesma intensidade da luta.
— São as Sombras... estão tentando nos proteger. — Não pude deixar de sorrir. Ainda me abraçava forte contra si. Olhei para o rosto dele e percebi em seus olhos que o escarlate estava voltando ao tom de mel e parecia estar ficando confuso.
— Alessia...? Cheguei num mau momento? — Era Ethan quem havia entrado no quarto e nos olhava com uma expressão séria.
— Ethan! — Estava extremamente feliz ao vê-lo, mas no mesmo instante me preocupei. O que fazia aqui? Estaria melhor? E se as Trevas o atacassem? — Saia daqui, por favor!
— Assim que me disser o que estava acontecendo. — E se aproximou de nós devagar.
Zein me soltou rapidamente e caí sentada na cama. As Trevas chiaram descontentes e pensei que fossem nos atacar, mas as Sombras corresponderam ao som feito por elas e ambas sumiram numa espécie de tornado em que se envolveram.
— Preciso ir. Sinto muito. — Zein pareceu voltar a si, mas estava totalmente perturbado e, colocando o capuz para cobrir o rosto, saiu correndo do quarto sem nem deixar que perguntasse qualquer coisa.
— Não adianta mentir. Eu sei o que estava fazendo. — Ethan estava com uma expressão séria enquanto fechava a porta e vinha sentar-se ao meu lado.
— Não vou mentir.
— Não disse para ficar longe dele?
— Abri a porta sem pensar! Não perguntei quem era!
— Por que não?
— Não sei! Achei que fosse algum de vocês e quando o vi, tentei impedi-lo de entrar, mas forçou e acabou entrando.
— E você já foi doando seu sangue? — Falava de um jeito estranho.
— Não! Estava com medo! Disse que só doaria amanhã, mas ele tentou me obrigar! Não viu que as Sombras estavam lutando contra as Trevas para me proteger? — Comecei a dizer rápido demais e não percebi o que estava dizendo.
— As Sombras estavam te protegendo? Por que fariam isso?
— Elas fazem isso porquê... — Respirei fundo e decidi contar logo. — porque tenho poderes com a escuridão. Apenas a parte "boa" dela, que são as Sombras. Você está bem?
— Você.... Então... — Estava com uma expressão de surpresa e descrença.
— Então...?
— Você não é apenas Híbrida! Você tem mais de dois poderes! — Agora parecia deslumbrado demais para que o interrompesse e questionasse. — Tem a Magia que Ária te doou e seu organismo aceitou, tem o poder da Alma, que veio de você mesma e tem o poder da escuridão, da parte "boa". Isso é fantástico!
— Está mesmo animado por algo de bom que aconteceu comigo? — Arqueei a sobrancelha, tentando fazer a conversa caminhar para o humor.
— Não fique muito feliz. Só fui pego de surpresa. Isso nem é nada demais. — E fingiu assumir sua antiga postura de indiferença, mas acabou rindo também.
— Você já está melhor para ficar andando por aí?
— Já me sinto melhor e o machucado finalmente cicatrizou por completo, mas a enfermeira não me autorizou a sair.
— Não? E por que estava vindo falar comigo?
— Bem.... — Parecia constrangido em continuar. — Senti quando estava com medo. Senti que precisava de ajuda.
— Sério? Não está dizendo isso de brincadeira?
— Não estou brincando. Nem sei por que isso aconteceu, mas aconteceu.
— Hum.... É bem estranho, mas fico feliz que tenha acontecido.
— Mesmo? — E sorriu de um jeito fofo, que me deixou sem graça.
— Sim. Não sei se as Sombras conseguiriam me proteger. As Trevas estavam realmente famintas e ferozes.
— Também não sei se conseguiriam, mas estavam lutando incrivelmente bem. Sugiro que amanhã vá falar com o Mestre das Sombras.
— Vou atrás dele. Preciso fazer com que ajude os moradores com as arrumações. Para que consiga sua confiança, caso seja descoberto.
— Seu plano é bom. — E deu de ombros. — Mas alimente-o primeiro... em segurança.
— Sim. Vai ficar aqui?
— Ficar aqui? — Arqueou a sobrancelha.
— Sim. Dormir aqui. — Senti minhas bochechas corando.
— Ah. Não sei... acho que a cama da enfermaria é melhor. — Falou com sarcasmo e riu de leve.
— Bobo. — Joguei um travesseiro nele, que rebateu agilmente. — É. Está mesmo melhor.
— E você está realmente perdendo o medo. — E lançou um sorriso sedutor.
— Não. Hoje chega de joguinhos, trabalhei o dia todo e estou cansada.
— Tudo bem. Vamos dormir, então. — E se arrastou até o outro lado da cama, deitando debaixo das cobertas e ajeitando o travesseiro.
Apaguei as velas que ficavam ao lado da cama e me ajeitei também, tentando ficar longe dele por causa do machucado (embora já estivesse curado). A verdade é que estava com vergonha de chegar perto. Havia retirado o curativo e não havia marca nenhuma ou cicatriz, apenas a pele perfeita, além do mais, estava sem camisa, o que não deixava a situação muito agradável.
Deitei de costas para ele e lhe desejei um boa noite. Por um momento, pensei que respeitaria meu espaço, mas quando estava quase cochilando envolveu minha cintura devagar e me abraçou. Rezei mentalmente para que não tivesse sentido meu corpo estremecer. Fechei os olhos mais forte e tentei relaxar até adormecer, porque tentar discutir seria inútil.
Tinha que encontrar uma maneira de fazer as pessoas gostarem do Mestre das Sombras antes que descobrissem sua verdadeira identidade. E isso tinha que acontecer logo. Por isso, assim que acordei no dia seguinte, me livrei de Ethan e fui atrás do Mestre das Sombras.
— Zein? — Sussurrei à porta, batendo de leve na madeira bem entalhada, embora antiga e um pouco desbotada.
— Alessia? O que houve? — Abriu a porta já vestindo seu manto escuro e cobrindo seu rosto com o capuz.
— Ah! Ahn... na verdade, nada. Só queria pedir para que hoje fosse comigo ajudar lá na vila. Para socializar um pouco.
— Tem certeza, Alessia? Não é arriscado? — Parecia preocupado, provavelmente se lembrando de ontem à noite.
— Arriscado é, mas precisamos fazer as pessoas verem você como eu vejo. — Tentei evitar que meu rosto corasse, mas acho que foi inútil.
— E como você me vê? — Pensei ter visto um brilho diferente em seu olhar, algo como... dúvida? Amargura? Desespero? Esperança?
— Como você realmente é. — Sorri, mesmo tendo em mente os momentos em que estava sendo controlado pelas Trevas, como na noite anterior.
— Ainda confia em mim? De verdade? — Pude ver o sofrimento em seu olhar.
— Sim. Mas por que a pergunta agora?
— Tinha algo sombrio em seu olhar quando disse que me via como realmente sou.
— Admito que me lembrei de quando estava sendo controlado, mas ainda tenho esperanças sobre você.
— Prometo fazer o possível para que você não se arrependa novamente. — Sorriu, mas seu sorriso mostrava a tristeza em seu coração.
Não consegui me conter, cortei a distância entre nós e o abracei devagar, com força, mesmo que minha força física fosse insignificante comparada à dele. Queria de alguma forma evitar o seu sofrimento e abraçar sua alma também.
— Alessia.... — Ouvi-o sussurrar, pouco acima da minha cabeça. Soltei o abraço e o empurrei para dentro, fechando a porta em seguida. — O que está fazendo?
— Você precisa se arrumar. Nada de roupas pretas. Vamos tentar outras cores, certo?
— Certo. Mas por que isso agora? — Tirou o manto escuro e jogou sobre a cama.
— Porque em Magic as regras de cores não estão valendo como era em Fantasy. E você fica muito sombrio quando se veste assim.
— Mas como poderei me esconder se virem meu rosto?
— Você ainda vai usar o manto, mas as roupas que vestirá por baixo serão diferentes e mais claras. Assim você se afasta um pouco das Trevas.
"As Trevas estão sussurrando que tudo que você quer é o enfraquecer para depois roubar seu poder." Ouvi vozes que provavelmente estavam apenas na minha mente, já que Zein não estava parecendo ouvi-las.
"Quem é você e por que está na minha cabeça?"
"Somos a parte boa da escuridão. E estamos apenas querendo ajudá-la. Estamos nos comunicando telepaticamente, não estamos na sua mente de verdade."
— Alessia? Algum problema? Por que está olhando o chão tão vidrada? — A voz do Mestre das Sombras me tirou de meu contato telepático e me deixou confusa.
— Ah! Estava pensando que você podia vestir uma calça branca e uma camiseta azul escura. O que acha? — Tentei sorrir descontraidamente.
— Acho que posso sim, mas prefiro continuar com uma camiseta preta no lugar do azul. Pode ser?
— Ah. Pode. — Senti-me aliviada por não desconfiar de que estava ouvindo vozes. Em contrapartida, também fiquei chateada por não contar o que as Trevas estavam dizendo a ele.
Esperei se vestir e depois que recolocou o manto e o capuz, finalmente pudemos sair do quarto e seguir para a vila. No meio do caminho, Ethan nos encontrou e afirmou que iria conosco de qualquer maneira.
Dessa vez ficamos encarregados de varrer e arrumar mais quatro casas. Sugeri que cada um fizesse o trabalho em uma delas, mas Ethan insistiu para ficarmos todos juntos, de maneira que estávamos os três a varrer um pequeno sobrado onde viveriam as outras três criaturas que nos ajudavam.
A feiticeira, Jacqueline, seu marido bruxo, Lorenzo e o filho do casal, Julian, que tinha poderes mágicos como os dos pais, mas por ser muito jovem, com sete anos, ainda não sabia se era um bruxo ou um feiticeiro.
— Obrigada por sua ajuda, Alteza. — Jacqueline sorria.
— E pela ajuda dos rapazes também. — Acrescentou Lorenzo.
— Alteza? — Ethan arqueou a sobrancelha e olhou para mim.
— Ah! Não precisam me chamar assim. Não fui coroada ainda. — Senti meu rosto corar.
— Deve ser legal ser da realeza! — O filho do casal mais corria pela casa do que ajudava.
— Quando descobrir, te conto como é. — Ri de leve, terminando de varrer a escada.
— Vou poder ir ao castelo? — O menino estava com os olhos azuis brilhando de expectativa.
— Se quiser, levo você para passear lá. — Zein se aproximou do garoto.
— Mesmo? Poderei ir mamãe?
— Sim, querido. É claro. Mas apenas depois da cerimônia de coroação. Certo, Alteza? Oh! Desculpe. Alessia. — Jaqueline sorria timidamente.
— Sim. — Fiquei feliz por confiar em Zein mesmo sem saber quem era. Mesmo sem ver seu rosto.
— Que ótimo! — O menino sorriu ainda mais e puxou Zein pela mão para onde seria o quarto dele e o local que guardaria seus brinquedos. Ele hesitou no começo, mas acabou cedendo e seguindo o garoto.
— Quem é aquele rapaz? — Lorenzo tentou ser discreto ao se aproximar de mim, mas falhou terrivelmente.
— É um de meus guardas particulares.
— Agora os vampiros também servem outras criaturas? — Jacqueline parecia surpresa.
— Ele se ofereceu para....
— Ah! Já entendemos. — Deu uma piscadela. — Ele é seu escolhido, certo?
— Não exatamente. — Ethan se intrometeu na conversa. — Ela ainda não escolheu.
— Ah! O senhor é o outro? — A mulher parecia constrangida.
— Pode-se dizer que sim. — Falou com um sorriso metido. Achei melhor ficar quieta, já que não estava entendo sobre o que falavam.
— E por que não mostra o rosto? — Lorenzo voltou à conversa, enquanto colocávamos os móveis no lugar.
— Desculpe, Senhor. Creio que estão falando de mim. — Zein estava na ponta de cima da escada, com um carrinho de brinquedo nas mãos e o garotinho ao lado dele.
— Ah. Sim. — O homem corou e desviou o olhar.
— Não mostro meu rosto porque não desejo assustar ninguém. — Espera! Do que estava falando? — Tenho cicatrizes horríveis no rosto. Cicatrizes que feitiços comuns não curam. Por isso me cubro dessa maneira.
— Ah. Sinto muito... — Lorenzo parecia arrependido e com... Pena? Compaixão? E sua esposa e seu filho também! Mas Zein estava mentindo. Bem... de que outra forma responderia isso?
— Se quiser, posso tentar encontrar algum feitiço de cura para você. — A feiticeira abraçou seu marido de lado. Julian correu até eles e abraçou suas pernas.
— Apenas um feitiço de renovação pode curar isso. E você sabe o preço para realizar esse feitiço. — A voz de Zein era pesarosa. Havia esquecido que atuava tão bem!
— Ainda assim posso tentar.... — A mulher sorriu de forma terna e bagunçou os cabelos escuros do menininho.
— Fico grato por sua disposição. — Falou Zein, descendo as escadas e vindo até Ethan e eu.
— Nós que agradecemos! A casa ficou ótima! — O bruxo sorriu.
— Gostariam de jantar conosco? — Jacqueline estava com o mesmo sorriso grato do marido.
— Adoraríamos. — Retribui o sorriso. — Mas....
— Por favor! — Pediu o garotinho e correu até Zein. — Vocês poderiam jantar conosco e depois você me contaria mais histórias sobre o castelo. — Ethan e eu trocamos olhares. Ele deu de ombros e Zein também não parecia muito preocupado.
— Está bem. — Seguimos para a sala de jantar da família e ficamos conversando enquanto Lorenzo preparava o jantar.
...
— Até que para um cara "ruim" você sabe como agir com uma criança. — Comentou Ethan, enquanto voltávamos para os quartos, após o jantar.
— Não gosto de descontar minhas frustações nas outras pessoas. — A voz de Zein soava neutra e ainda estava de cabeça baixa.
— Que bom. — Foi tudo que Ethan disse. Seguimos em silêncio a partir daí, Ethan entrou no quarto dele primeiro e segui com o Mestre das Sombras. Quando chegamos à porta do meu quarto, Zein hesitou e percebi que queria dizer alguma coisa.
— Alessia... perdoe-me por tê-la atacado ontem. Eu... — Parecia estar com dificuldade para falar — perdi o controle de novo.
— Está tudo bem. Você se controlou perfeitamente hoje. — Ofereci-lhe um sorriso.
— Não sei se vou conseguir. — Percebi que estava evitando levantar a cabeça.
— Entre. Vamos conversar lá dentro, teremos mais privacidade. — E abri a porta.
— Você não entende como me sinto. — Seus olhos estavam marejados. Agora que entrou, levantou a cabeça e pude ver o brilho das lágrimas sob a luz que entrava pela janela.
— Talvez não entenda de verdade, mas tento fazer o que posso e o que não posso para ajudá-lo.
— Eu sei. Fico muito grato por isso, mas as Trevas fazem o desejo e a sede aumentarem. É quase insuportável para mim. — Permitia as lágrimas rolarem pelo rosto e fiquei pensando porque choraria por isso. Era estranho vê-lo chorar.
— Talvez saiba mais ou menos como é....
— Como poderia? — E passou a fitar meus olhos.
— Certa vez fiz uma promessa: ficaria um ano sem comer chocolates. Sei que parece bobo, mas realmente amo chocolates. No começo, era complicado me controlar e quando finalmente pensava que havia me controlado, acabava encontrando aquelas lojas que expõe fontes de chocolate, ou tinha que derreter chocolates para ajudar minha mãe com bolos. — Estava prestando completa atenção e até parecia sorrir de leve. — A tentação era grande e o desejo de quebrar a promessa também. Entrava em conflito comigo mesma. A parte boa dizendo para ser firme e a parte má dizendo para ceder.
— E o que você fazia?
— Encontrava um meio termo. Comia qualquer outro doce, como vocês fazem ao beber o sangue doado de outras criaturas, além dos humanos.
— Funcionava?
— Por um tempo. Mas logo a vontade voltava e precisava me controlar de alguma forma. Tentei me ocupar para esquecer o desejo do chocolate e isso pareceu ajudar bastante.
— Você conseguiu cumprir a promessa?
— Consegui. Não foi fácil e meu humor oscilava muito quando tentava me controlar. Por isso entendo que tente evitar relações sociais. Tem medo de ferir alguém além das palavras. — Ergui as duas mãos para tirar o capuz de sua cabeça e ver seu rosto. Segurou meus pulsos por impulso, mas logo em seguida baixou as mãos devagar, deixando-as cair ao lado do corpo. Retirei o capuz devagar e com uma das mãos acariciei seu rosto.
— Talvez você entenda mesmo como me sinto. — Seu olhar parecia um pouco menos amargurado e um leve sorriso despontou em seus lábios. Não pude deixar de sorrir, e não sei bem porque, mas comecei a me aproximar com a intenção de beijar seu rosto.
Acho que compreendeu errado a minha aproximação, pois abraçou firme minha cintura, embora de forma delicada, e juntou os lábios aos meus. Talvez fosse apenas um beijo, mas senti que aquilo era, para ele, uma prova de que ainda havia esperança sobre si mesmo. Seu abraço fazia parecer que sua vida dependia disso, e senti pela primeira vez que ele tinha medo. Medo de se perder e ser controlado pelo monstro interno de seu Poder.
— Não se preocupe. — Sussurrei em seus lábios. — Você vai conseguir controlar a si mesmo.
— Se você me ajudar.
— Não ajudei até agora? — Afastei-me um pouco dele para encarar seu rosto.
— Você fez mais por mim do que eu mesmo durante minha vida inteira. — E sorriu, embora seus olhos estivessem marejados.
Não consegui dizer nada. Apenas sorri e me puxou de volta para si, me abraçando forte e acariciando meus cabelos. Retribui o abraço, feliz por controlar meu próprio medo sobre ele e sua espécie. Quando me soltou, havia algo sombrio em seu olhar, algo que me fez ter calafrios.
— O que foi? O que está escondendo?
"Ele quer sangue." Uma voz sussurrou em minha mente. Seriam as Sombras de novo? "Ainda não está forte e você não o alimentou."
— Não é nada. Acho melhor dormir. Boa noite.
— Espere! — Senti meu coração se acelerar, batendo forte contra o peito. — Sei o que você tem.
Ele se deteve por um longo tempo, me observou com cautela como se quisesse ler minha mente ou, se soubesse o que ia dizer, esperando que desistisse. Por mais que me causasse aversão a ideia de doar sangue, havia prometido no dia anterior que o deixaria beber. Não podia descumprir a promessa.
— Você precisa de sangue, não é? — Desviou o olhar, que pareceu emitir um leve brilho vermelho. — Prometi que o deixaria beber hoje.
— Mas....
— Só que você terá que manter as Trevas longe do quarto.
— Tudo bem. — No mesmo instante, ouvi o chiado que a névoa emitiu. Aquela coisa apareceu do nada e assumiu o formato de uma serpente, que ficou sibilando para mim.
— O que é isso? — Mal conseguia me mexer. No entanto, ele se moveu rapidamente, ficando à minha frente para me proteger.
— Deixem-na em paz!
"Nóssss não devemossss nada a você"! A névoa em forma de serpente retrucou.
— Devem sim! Sou seu mestre! Saiam daqui agora!
"Nósss sairemosss, masss você pagará por issssso". A névoa, então, se desfez e investiu contra ele. Gritei e tentei impedir, mas era tarde demais para fazer qualquer coisa. Quando o soltaram, caiu no chão desacordado e a coisa emitiu um som como o de uma risada maligna.
— Não! — E ajoelhei ao seu lado — O que fizeram?
"Ele não morreu." A coisa sibilou. "Apenassss tiramossss um pouco de ssseu poder".
— E por que ele não acorda? — Minha visão estava embaçando com as lágrimas.
"Ele precissssa de ssssangue forte".
— O meu sangue serve?
"Ssssim. Masss terá que doar muito. Talvezzzz até um pouco de sssseu próprio poder. Ainda aceita"?
— Aceito. — Disse após engolir em seco. Minha pulsação dava para sentir nos ouvidos. Arrastei-o com dificuldade até a cama e o ajeitei delicadamente. A névoa me rodeou e fez o corte em meu braço por mim. Pressionei o corte contra sua boca e o obriguei a beber. — Como doo o poder?
"Faremossss o feitiço para você. Apenassss aconchegue-o junto a ti e beije-o delicadamente nos lábiosss".
— C-Certo.
A névoa rodeou a cama e o feitiço começou, apoiei a cabeça dele perto de meu coração (de onde pensei vir meu poder), e selei seus lábios suavemente. Ao fazer isso, senti como se minha energia estivesse sendo sugada de mim e me senti fraca, incapaz de continuar segurando meu próprio corpo. Deixei-o cair sobre a cama. Zein acordou e ao me ver, me pegou no colo e cicatrizou a ferida que a névoa havia feito.
— O que fizeram? Vou morrer? — Minha voz estava fraca.
— Não. Morrer não. — E se dirigiu para névoa com raiva. — O que fizeram com ela?
A névoa simplesmente riu e desapareceu rapidamente, como mágica. Observei seu rosto e notei que lutava para não chorar. Entendi perfeitamente que acreditava ter falhado novamente ao deixar a névoa me usar como havia feito.
— Alessia? Você está bem? O que está sentindo?
— Só estou com sono. — Sentia o corpo mole. Meus olhos esforçando-se em se manter abertos.
— Durma... vou embora para que se sinta segura. — E beijou o alto da minha cabeça.
— Não! — Usei o restante das minhas forças para abraçá-lo. — Fique.
Não consegui dizer mais nada. Meus olhos finalmente se fecharam e meu corpo ficou ainda mais pesado. Senti seus braços me segurarem mais firme e em seguida me ajeitarem na cama. Ainda pude ouvi-lo sussurrar palavras que cortaram meu coração, e infelizmente, não pude responder.
— Sei que ficará mais segura sem mim. Fico grato por sua confiança, mas eu mesmo não confio que possa me controlar por uma noite inteira estando ao seu lado. — Ao fim dessas palavras ouvi o som da porta se abrindo e se fechando em seguida. Depois, perdi a consciência completamente e mergulhei no mundo dos sonhos.
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