Capítulo 12
— Fiquei sabendo que você conseguiu conciliar a Assembleia como uma verdadeira princesa faria. — Disse Julie, quando a encontrei no restaurante das fadas, três dias depois da reunião.
— Eu só falei o óbvio. — Não me sentia muito animada.
— O que está havendo com você, Alessia? Não parece muito bem... — e sentou ao meu lado, ignorando os clientes que queriam fazer seus pedidos. — Já vou! Esperem um pouco, por favor!
— Estou bem. Só um pouco preocupada, mas isso é normal.
— Preocupada com o que, exatamente?
— Ária. O livro que Camilla ainda está tentando ler. Os híbridos que Leon encontrou rodeando a vila. O portal. Leslie... — comecei a contar nos dedos todas as preocupações que rondavam minha mente nos últimos dias.
— Tem mais alguma coisa. — Tentou encarar meus olhos, mas não deixei. Sabia que tinha poderes com a alma e provavelmente já tinha certeza que estava omitindo uma das minhas preocupações. — É ele, não é? O Mestre das Sombras.
— Não adianta tentar mentir para você, não é? — Uma leve sugestão de sorriso perpassou meu rosto.
— Você não pode mentir para criaturas com o poder da Alma. É quase uma lei! — Seu tom era de falsa seriedade, mas não aguentou e começou a rir.
— É por isso que estou preocupada, Julie. Sinto que as pessoas estão escondendo alguma coisa de mim, mas todas as vezes que tento descobrir o que é, dão desculpas e inventam coisas para fazer.
— Já parou para pensar que essas pessoas estão fazendo isso para o seu bem? — E tocou meu ombro delicadamente.
— Você sabe de algo? Se souber, por favor, me conte! Posso encarar qualquer que seja a informação que estão omitindo! — Olhou com pena para mim, mas não respondeu nada por um longo tempo.
— Tenho que atender os clientes. — E levantou rápido, me olhando como se pedisse desculpas.
— Até mais. — Tentei disfarçar o desapontamento. Levantei-me e resolvi que deveria dar uma volta para espairecer um pouco. Minha cabeça estava cheia demais e realmente estava precisando pensar sozinha.
Não. Não consegui passear sozinha, pois enquanto caminhava pela vila em direção à floresta, Daniel me encontrou e insistiu em me acompanhar. Estava levando consigo um arco dourado com flechas de prata. Perguntei se não estava pesado, mas disse que eram encantados e não pesavam quase nada.
— São encantados para não terem peso?
— Também. Alguns são ainda mais especiais, mas este que estou usando ainda não está totalmente pronto. Não há nenhuma magia realmente poderosa nessas flechas e nesse arco, apenas magia simples.
— Por quê? Aron não permitiu?
— Quem está me treinando é o Leon, Alessia. Os elfos são designados para a guarda e são treinados por Leon cinco dias por semana. Algumas vezes de dia e outras a noite.
— Ah. Que ótimo. Meu amigo está virando um dos peões do Leon.
— Não é tão ruim, Alessia. Se você o conhecesse, saberia que está apenas realizando o trabalho para o qual foi designado.
— Não gosto da personalidade dele.
— Você foi capaz de gostar de gente bem pior. — Seu comentário foi pior do que se tivesse atirado uma de suas flechas em mim. Parei de caminhar instantaneamente e cerrei os punhos com raiva.
— Quantas vezes vou ter que admitir que errei? Quantas vezes vão me acusar por causa de coisas que já aconteceram e não tem mais volta? Quantas vezes vocês irão continuar me fazendo lembrar algo que estou realmente tentando esquecer? — Minha voz estava tão alta e acima do normal, que parecia emitir algum tipo de poder.
Senti uma espécie de vento frio soprar, não só por fora, mas por dentro do meu corpo também. Esse vento era seguido por uma efervescência, como se chamas estivessem correndo em minhas veias no lugar do sangue. As árvores a nossa volta estavam balançando, agitadas, e quando pararam de se mover, ouvimos um uivo como o de um lobo, e este foi seguido por outros uivos de gelar o sangue.
— O que foi isso?
— Temos que sair daqui. São os híbridos, Alessia. — Seu rosto estava realmente pálido, não mais cinzento, como era por causa de sua classe élfica. Começamos a correr, mas conseguíamos ouvir o bater das asas das quimeras e sabíamos que não adiantaria fugir.
— Não podemos fugir. Temos que nos esconder! — Minha respiração estava ofegante e o segurei pelo pulso, para que parasse de correr.
— Ficou louca? Se pararmos, eles nos alcançam!
— Pare de gritar e me siga. Rápido. — Deixei que meu instinto nos guiasse até onde achava ser seguro.
As feras uivavam com suas cabeças de lobo e batiam suas asas de cavalos alados tão forte que as copas das árvores estavam balançando como se houvesse um vendaval. Corríamos o mais rápido que podíamos e vez por outra tropeçávamos em raízes ou escorregávamos em folhas, mas já estávamos perto de onde tínhamos que chegar e soube exatamente o que fazer.
"Sombras! Sombras! Preciso de sua ajuda, por favor! Encubram-nos com seu manto escuro e nos protejam dessas criaturas!"
Só que nada aconteceu. Meu coração martelava extremamente alto e Daniel de repente parou de correr e soltou minha mão. Colocou três flechas de uma vez no arco e as disparou acertando em cheio três das criaturas, no momento em que tentavam nos atacar. Em seguida, engatou mais três flechas e as atirou novamente, derrubando mais três. Continuou a atirar as flechas, mesmo quando estavam caídas, para imobilizá-las.
— Acho que agora não poderão nos machucar.
— Daniel! Temos que sair daqui! — Apontei uma das criaturas, chegando logo acima de nossas cabeças, com um olhar feroz.
— Eu posso cuidar dela com.... — E levou uma das mãos à aljava, mas estava vazia.
— Corra! — E puxei-o pelo braço no instante em que a criatura investiu.
Fui muito lenta e a criatura conseguiu nos derrubar no chão, acertando Daniel nas costas e um de meus ombros. Caímos de bruços, Daniel ficou parado tentando aguentar a dor das garras do animal, que abriram um ferimento horrível. Virei-me para encarar a criatura de frente.
— Ruy? — Perguntei, arfando com a dor latejante no ombro direito.
"Alessia". A criatura parou por um instante seu ataque e manteve a conexão telepática entre nós. "Por que você atacou meus amigos?"
"Eles estavam tentando nos matar!"
"Não é verdade! Eles sentiram uma enorme explosão de poder e energia. Estavam tentando absorver um pouco para si mesmos, estão fracos e precisam se alimentar."
"Eles se alimentam de poder e energia?"
"Sim. Como os que você possui."
"Então queriam se alimentar de mim?"
"De certa forma, sim, mas não iria matá-la. Eu jamais deixaria que te matassem."
"A última pessoa que me disse algo parecido acabou me decepcionando bastante..."
"Você poupou minha vida e não deixou seus amigos me machucarem. Você tem um coração bom e por isso ainda mantém sua forma humana. Não quero te destruir como fiz a mim mesmo ao escolher o mal. Vou permitir que você e seu amigo fujam e se escondam, mas suas feridas estão envenenadas e precisará fazer uma poção antes que o veneno os mate."
"O que? Como vou fazer isso?"
"Pegue dois fios do meu pelo, encontre na floresta essa fruta..." E me mostrou a imagem de uma frutinha lilás e pequena através da conexão mental. "Pegue também a água do poço para onde estavam fugindo e a Flor da Noite..." Ele mostrou a imagem de uma flor parecida com uma rosa negra, mas tinha o miolo branco como a lua. "Misture esses ingredientes e bebam a poção. Você tem catorze horas para encontrar isso e fazer a poção. Agora vá!"
"Obrigada pelas instruções, mas me diga mais uma coisa!"
"O que?"
"A resposta que estava no meu quarto era um livro?"
"Acho que está no caminho certo". E virou de costas para Daniel e eu.
Ele estava observando as criaturas caídas no chão e uma espécie de brilho verde começou a sair em direção a elas. Pedi os dois fios de pelo que precisava e me deixou arrancar. Depois, apoiei Daniel por um dos braços no meu ombro esquerdo e comecei a andar até o poço, mas na velocidade em que estávamos nunca chegaríamos lá.
Não sei quanto tempo demoramos a chegar ao poço, mas tudo indicava que teria de me apressar. Teria que sair para procurar as coisas que Ruy me falou e voltar a tempo de preparar a poção. Deitei Daniel com a cabeça encostada na beirada do poço, onde ficava um pequeno monte de terra. Não sabia o porquê, mas aquele lugar me fazia sentir estranha, minha cabeça estava voltando a doer e minha mente estava começando a enrolar as coisas. Outra coisa me ocorreu: como poderia deixar Daniel ali sozinho?
"Nós cuidaremos dele para você, Alessia." As Sombras sussurraram em minha mente, mas sua voz parecia estar mais fraca que o habitual.
"Por que não apareceram quando as chamei?"
"Estávamos fracas demais para ajudá-la. Ainda não estamos bem."
"Por quê?"
"Não nos alimentamos há algum tempo."
"Se deixar vocês se alimentarem do meu sangue, me prometem que protegerão Daniel enquanto procuro os ingredientes?"
"Iremos protegê-lo com todas as nossas forças, Alessia. Prometemos."
"Está certo, podem pegar."
Não tenho palavras para descrever como a sensação de ter a névoa bebendo o meu sangue foi horrível. Arranhavam meu corpo para fazer o sangue sair e tomavam cuidado para não beber perto de onde a quimera havia atacado, pois o sangue ali estava envenenado. Era uma sensação terrível, como uma tortura, mas acabou rápido.
Minha sorte foi Daniel ter desmaiado e não ter visto nada disso. As Sombras saíram de perto de nós para se transformarem no lobo, que era sua forma de ataque, e voltaram trazendo também algumas das flechas de Daniel e seu arco.
— Obrigada. — Levantei de onde havia me sentado enquanto se transformavam.
O enorme lobo acinzentado, que parecia ter sido feito com os restos de algo que fora incinerado, assentiu com a cabeça e se aproximou de mim. Seus olhos eram do tamanho de laranjas e tinham um tom âmbar arroxeado. A criatura fez alguns sons estranhos e num clarão de luz dourada, alguma coisa apareceu em sua boca. O manto. O manto do Mestre das Sombras.
— Para que isso?
Em sua forma física, as Sombras eram incapazes de falar qualquer coisa, apenas podiam se comunicar por gestos. Nem a telepatia funcionava. O lobo se aproximou de mim e jogou o manto, um pouco desajeitado, sobre minha cabeça. Entendi que era para usar aquela coisa, mas por que queriam que o usasse?
— A criatura quer que você use porque o manto é mágico. — Uma voz conhecida falou de algum lugar nas árvores.
— Quem está aí? — Meu coração saltava no peito. Alguém pulou das árvores e estava encoberto por um longo manto marrom. O sol estava atrás de algumas nuvens e as árvores faziam sombras na clareira onde o poço se encontrava, de maneira que não consegui ver o rosto da pessoa até que o descobriu. — Ivy!
— Olá, Alessia. O que faz aqui?
— Estava passeando com meu amigo quando fomos atacados pelos híbridos... já ouviu falar deles?
— Sim, os conheço melhor do que você pensa. — Sorriu e se aproximou de onde estava Daniel.
— Estou indo atrás dos ingredientes da poção para curar o envenenamento.
— E o que essa criatura faz aqui?
— Vai proteger o Daniel.
— Sabe do que esse manto é feito, Alessia? — Seu tom era misterioso.
— Não.
— É feito da magia pura das Sombras. Elas o fizeram para você? — O lobo uivou e negou com a cabeça.
— Não. Era de outra pessoa. — Troquei o peso do corpo de lado, apoiando na outra perna. Não estava bem para conversar sobre isso. — Ivy, se me permite, preciso ir. Temos apenas algumas horas para beber a poção ou morrer.
— Tenho uma pequena dose da poção de cura aqui. Posso curar um de vocês.
— Cure-o! Dê a poção a ele! Seu ferimento é pior que o meu!
— Imaginei que diria isso. — Sorriu de leve e ajoelhou ao lado de Daniel. — É melhor você e sua mascote se apressarem para achar os ingredientes para fazer a sua poção. — E tirou um vidrinho do cinto que usava por debaixo do manto, amarrado no quadril. Dentro, havia um líquido arroxeado. O lobo rosnou irritado por ser chamado de mascote, mas não atacou Ivy.
— Prefiro que as Sombras fiquem aqui e ajudem vocês. Posso me virar sozinha. — Já seguia em direção à floresta.
— Espere! — Ivy correu rapidamente até mim. Tirou a varinha que estava presa na bota de caça e com algumas palavras fez aparecer uma espécie de gaze. Amarrou no meu ferimento para que não sujasse ainda mais as roupas e não atraísse criaturas pelo cheiro do sangue. — Boa sorte.
— Obrigada. — E segui pela floresta, mas quando o lobo ameaçou me seguir, o lembrei da promessa de cuidar de Daniel e segui sozinha a passos largos.
Ivy havia me indicado a direção que deveria tomar para encontrar as frutinhas, mas me informou que a flor da noite só poderia ser encontrada ao anoitecer. Deu-me um dos vidrinhos que levava no cinto, para colocar os ingredientes, onde já havia posto o pelo do híbrido.
A água seria o mais fácil, uma vez que era retirada do próprio poço onde estávamos. Ivy nos disse que era melhor voltarmos à vila de manhã, pois os machucados já teriam melhorado consideravelmente e estaríamos em condições de andar até lá.
A tarde estava passando realmente rápido e só encontrei as frutinhas quando o sol começou a cair no horizonte. Não queria andar pela floresta sozinha de noite, então me apressei em colher as frutinhas, que encontrei em arbustos perto da praia, coloquei-as no vidrinho e andei depressa de volta para o poço. Meu senso de orientação estava realmente bom, pois mesmo tendo andando bastante e só ter chegado bem depois de escurecer, consegui voltar ao poço onde Ivy já havia tratado o ferimento de Daniel.
— Aqui está. — Estava ofegante pelo esforço tendo um machucado que ainda sangrava.
— Já colhi a Flor da noite para você. — Entreguei o potinho com as frutinhas e o pelo para ela, que misturou tudo no vidrinho. — Pegue um pouco da água do poço para mim, por favor.
— Sim. — Segui até o poço, me sentindo um pouco tonta.
A gaze não segurava mais o sangue, que escorria pelo meu braço e pingava no chão. A água estava bem baixa, mas Ivy havia arranjado um balde e uma corda para pegá-la. Esperava que o sangue que estava pingando na água não interferisse na poção. Puxei o balde para fora, mas uma tontura forte me fez cambalear e ela correu até mim, agarrando meus braços. Nesse momento, o poço emitiu uma luz prateada e a água começou a subir borbulhando.
— O que está havendo?
— Não faço ideia... — e tentou nos afastar. Uma fumaça esbranquiçada começou a pairar sobre a água e se espalhou enquanto nos movimentávamos.
— Espere. Chegue mais perto.
— Tem certeza?
— Sim. Vamos!
Chegamos mais perto da água e Ivy encarava o poço com uma expressão confusa e intrigada. Observei mais de perto e vi imagens se formarem na superfície da água. Não conseguia desviar o olhar dali.
Era o castelo de Fantasy! Estava quase igual à quando nós saímos de lá pela última vez, mas havia ouro, prata e pedras preciosas brilhando por todo o lado. A visão da sala do trono quase me fez vomitar. Leslie estava em pé numa sala decorada com prata e rubi, vestida como uma Rainha. Uma das mãos segurava uma varinha, a outra segurava um chicote e o estava usando para ferir alguma criatura, que não pude ver direito, porque a fumaça começou a se fechar novamente e a água estava descendo de volta ao fundo do poço.
Ao fim da visão, foi como se tivesse acabado de acordar de um sonho. Ivy estava me encarando desconfiada e preocupada, estava sentada no chão e me chacoalhava de leve. Isso fazia meu ombro doer.
— O que aconteceu, Alessia?
— Vi o castelo de Fantasy! E Leslie! Na água do poço! Chicoteava uma criatura! Acho que era um elfo ou duende! — Falei depressa demais, minha mente girava.
— Tudo bem. Acalme-se. — E me deu um pouco de água. A sensação fria da água descendo pela minha garganta foi suficiente para me fazer acalmar. — Está melhor?
— Sim.
— Ótimo. Agora vamos preparar a poção. — E se afastou de mim.
— Ivy? Você vai voltar conosco para a vila? — Perguntei após um tempo. Já havia bebido a poção e estava me sentindo menos dolorida.
— Não ainda. Não é o momento. — Sua expressão era indecifrável.
— Daniel está bem? — Observei seu corpo deitado no chão, seu peito subia e descia, acompanhando a respiração.
— Sim, o fiz beber a poção quando acordou, logo que você saiu para procurar as frutinhas.
— Certo.
— Como você está?
— Melhor. Não dói tanto quanto antes.
— Não estou falando do machucado. Estou falando de você no geral.
— Como assim?
— Você enfrentou uma batalha difícil há mais ou menos um mês.... Todos estavam preocupados com você, mas você conseguiu voltar.
— Sim. Consegui.
— Sua mente estava estranha quando voltou? Bagunçada, talvez?
— Como você sabe?
— Já passei por esse tipo de feitiço também. — Suspirou e remexeu com um graveto a fogueira que havia feito.
— Do que está falando?
— Feitiço da Memória. Bagunçaram as suas memórias para que se esquecesse de algo, não foi? — Podia jurar que havia ficado com a aparência de uma estátua, de tão perplexa que fiquei. — É. Foi exatamente o que pensei.
— Como sabe disso?
— Vi sua luta e tudo o que aconteceu. Imagino que tenham achado melhor você esquecer o que viu e ouviu naquela noite.
— Mas eu me lembro de tudo! Não omitiram nada daquela noite! Sei quem nos atacou e traiu minha confiança por isso! Eu vi! — Senti-me frustrada de repente. Ivy estava me olhando surpresa, mas ao me observar melhor, passou a expressar pena.
— Sabe de quem é esse manto, não sabe?
— Sei. — Minha voz era quase um sussurro. — Não queria usá-lo, mas parece útil.
— Não queria por que te traz lembranças?
— Não queria porque me parece uma parte imunda de uma pessoa que me traiu mais de uma vez e merece ser odiada.
— Se o odiasse tanto como diz que odeia, não se importaria de usar algo que foi dele como uma espécie de prêmio por derrotá-lo.
— Você não sabe o que se passa dentro da minha cabeça! Não tente fingir que me entende e que sabe o que sinto. Você não sabe! — Falei de uma maneira um pouco hostil. — Ele nunca mereceu minha confiança e sabia disso.
— Não será fácil, mas em algum momento você descobrirá a verdade. — E se levantou. — Descanse essa noite. Vou vigiar vocês.
Ivy desapareceu na floresta antes que pudesse dizer ou perguntar qualquer coisa. Não havia alternativas, teria que deitar e descansar no meio de uma floresta, à noite e com criaturas que poderiam nos matar rondando por ali.
As Sombras haviam sumido e tudo que nos protegia era Ivy, mas será que poderia confiar nela? E que história era aquela sobre descobrir a verdade? Eu sabia a verdade! Ou achava que sabia.... Será que essa história de feitiço da memória era mesmo verdade? E se fosse, por que fizeram isso comigo?
Adormeci quando faltavam poucas horas para amanhecer e já me sentia segura ao ver o céu voltando a clarear aos poucos. Era estranho, pois costumava gostar mais da noite do que do dia, até certas circunstâncias mudarem esse fato.
...
Quando voltamos para a vila, as criaturas se mostraram preocupadas e assustadas com os nossos ferimentos, mesmo que já não houvesse a preocupação com o veneno, já que logo estariam completamente curados. Fizeram questão de nos levar ao castelo e assumi toda a culpa por ter passado a noite fora, sem que Daniel soubesse. Estava livre de qualquer punição, mas mesmo assim pedi à Julie, que nos havia acompanhado, para ficar de olho nele por uns tempos.
Depois de tomar um banho e trocar uma roupa, decidi reunir algumas pessoas de meu antigo grupo e lhes contar sobre o que aconteceu no poço. Como Daniel estava machucado e Julie o estava vigiando, ambos não puderam comparecer. Stella e Havena estavam na biblioteca e não puderam atender. Noah, Camilla e Cameron também estavam na vila e não compareceram.
Estavam presentes apenas Ethan, Lewis, Ônix, Dahlie e Cristian. Nós nos reunimos em uma das salas reservadas, em uma parte afastada do castelo. A sala era como um antigo escritório ou sala de reuniões, talvez por isso tenha servido tão bem. Estava suja e empoeirada, mas assim era melhor, pois mascarava o nosso uso recente. Fiquei em pé, porque a mesa só possuía cinco assentos, e os demais se acomodaram.
— Chamei vocês aqui porque ontem aconteceu uma coisa estranha. Bem... não que coisas assim não aconteçam o tempo todo aqui, mas.... Ah. Vocês entenderam.
— Sim. Prossiga. — Ônix segurou o riso e o disfarçou com uma tosse falsa.
— Bem.... Ontem eu e meu amigo Daniel fomos passear pela floresta e, como sabem, fomos atacados pelos híbridos. — Esperei que todos absorvessem a informação.
— Você fez o quê? Alessia, tem noção de como isso foi perigoso? — Lewis estava indignado.
— Ela gosta de brincar com o perigo. — Ethan disse ironicamente, mas notei em seus olhos que também estava preocupado.
— Deixem-na continuar. — Dahlie pediu, lançando lhes um olhar sério.
— Fomos atacados, mas um deles nos deixou fugir e nos indicou a poção para curar o veneno. — Mantinha-me atenta nas expressões de todos. — Juntei os ingredientes e um deles era a água de um poço que existe aqui, mas apenas eu, Ethan, Julie, Lewis e.... — Nesse momento, ia mencionar o nome de Zein, mas minha língua não me deixava continuar.
— E seu amigo Daniel, certo? — Cristian tentou me ajudar, ao notar que não conseguia prosseguir.
— Não. — Intrometeu-se Ethan. — Os guardas de Leon encontraram aquele lugar. Foi onde nós travamos nossa última batalha contra as feras noturnas, que foram derrotadas.
— Bem... antes era de fato secreto. — Sentia-me desconfortável sem saber o motivo. — Daniel e eu nos refugiamos lá porque parecia seguro. Aproximei-me do poço para pegar água, mas o sangue do meu ferimento acabou pingando na água, que alguns segundos depois, subiu junto com uma névoa branca. Na superfície pude ver o castelo de Fantasy e Leslie, vestida como uma rainha, maltratando um elfo ou duende. O que isso quer dizer?
Quando terminei de falar, as expressões eram diversas. Ethan me olhava intrigado. Lewis e Cristian pareciam estar maravilhados. Ônix e Dahlie estavam pálidos e com expressões de assombro. Fiquei quieta, esperando que alguém dissesse alguma coisa, mas só falaram depois de um bom tempo.
— Você acha que... — Dahlie dirigiu um olhar expressivo para Cristian, mas este estava ocupado demais me encarando.
— Será que.... Não pode ser. — Ônix negava com a cabeça.
— Do que estão falando? O que tem naquele poço de tão especial? — Ethan parecia impaciente e irritado.
— Aquele poço... — começou Cristian, entusiasmado e misterioso — pode ser o portal que procurávamos.
— Quem diria? Tantas criaturas procuraram como loucas por ele e Alessia simplesmente... descobriu o lugar, como num passe de mágica. — Lewis também parecia encantado com a ideia.
— Vocês acham que a imagem que vi era real? — Perguntei assustada.
— Sim. Precisamos dar uma olhada nesse poço e você virá conosco. — Dahlie sorriu para mim e Cristian confirmou com a cabeça.
— Antes podem me explicar como foi que o fiz funcionar?
— É magia antiga. Magia antiga funciona com sangue. — Explicou Ônix. — É uma troca, mas como você deu apenas algumas gotas, não durou muito a abertura do portal.
— Quer dizer que se quisesse atravessá-lo teria que dar mais? Se quisesse chegar de fato em Fantasy, precisaria fazer uma doação maior?
— De certa forma.... Talvez o poço só estivesse esperando que alguém o ativasse novamente. — Cristian tinha uma expressão pensativa.
— Como assim? — A pergunta foi geral.
— Pensem comigo.... Muitas criaturas tentaram fazê-lo funcionar, mas nunca mais voltaram e por quê? Porque doaram todo o seu sangue para o portal.
— E o que isso quer dizer? — Ethan questionou ao perceber que ninguém conseguia dizer nada.
— Muitas criaturas já doaram seu próprio sangue para fazer o portal funcionar, mas não é assim que funciona. A magia antiga também funciona através de sacrifícios e nenhuma dessas criaturas estava trabalhando em equipe.
— Quer dizer... que um morre e outro atravessa? — Ethan o fitou como se estivesse ficando louco.
— Bem... não exatamente morre. Talvez... talvez essa criatura ainda esteja viva, mas está aprisionada no portal ou alguma coisa do tipo. — Disse Cristian, voltando a ficar pensativo.
— Como se estivesse preso em uma dimensão alternativa? — Surpreendi-me ao ouvir minha própria voz.
— Sim! — O rosto de Cristian se iluminou. — Talvez seja exatamente isso!
— E há alguma maneira de salvá-los?
— Vamos pensar novamente.... O que nenhuma dessas criaturas tinha? O que o portal exigia além da troca? — Indagou, fitando um por um.
— Equilíbrio. — Lewis falou de repente e todos o encararam. — Bem e mal. A pessoa que consegue atravessar o portal precisa ter o equilíbrio entre o bem e o mal em si. Como dizia o livro A História dos Portais.
— Você ainda tem esse livro? — Cristian perguntou com urgência.
— Não. Ficou em Fantasy.
— Se podemos atravessar pessoas com uma quantidade de sangue, será que não podemos trazer objetos de lá com outra? — Perguntei de repente.
— É uma ideia! Podemos tentar pegar o livro! — Cristian sorria animado.
— É muito perigoso. E como vamos saber quem será capaz de fazer o portal funcionar sem ficar preso nele? — Ônix tinha um olhar preocupado e seu tom de voz soava tenso.
— Acho que nós já sabemos quem conseguirá isso. — Dahlie falou e só reparei que todos me observavam depois de um longo tempo.
— Eu?
— Sim. Só você foi capaz de usar o portal sem ser sugada por ele, seu amigo Daniel conseguiu enxergar alguma coisa de lá? — Cristian perguntou, pensativo.
— Não. Só eu. — Sabia que Daniel estava desacordado e por isso não conseguiu ver, mas Ivy estava comigo e não pôde ver nada além de água e névoa.
— Então você é a chave que procurávamos. Você é a única capaz de entrar e sair, de transportar o que quer que seja, sem que se danifique. — Explicou sorrindo.
— Como pode ter tanta certeza? — Ônix cruzou os braços sobre o peito.
— Estudei a História dos Portais a minha vida toda, meu caro amigo. — Falou. — Talvez não no mesmo livro de Lewis, mas estudei em outros ainda mais antigos.
— Então... consigo viajar nessa coisa, mas preciso doar meu sangue? — Minha voz saiu trêmula e Ethan levantou instantaneamente, se aproximando de mim.
— Calma, Alessia. Podem haver outras maneiras... — disse, segurando meu braço com cuidado.
— E há! — Lewis falou um pouco alto demais. — Todos aqueles guerreiros que morreram na batalha contra as feras noturnas derramaram o sangue que as trevas absorveram, mas fizeram sacrifícios, como as outras criaturas sugadas pelo portal. Talvez por isso os corpos tenham sumido quando foram recolhê-los no dia seguinte.
— Desapareceram? — Perguntei com um fiapo de voz.
— Acho melhor encerrar a reunião por hoje. — Ethan falou num tom de voz firme e começou a me guiar para fora da sala.
— Espere! — Parei de repente, já quase na porta. — Nós iremos amanhã até o poço e tentaremos pegar o livro de Lewis.
— Alessia, não acho que... — Ethan tentou falar, mas Cristian o cortou, aceitando o convite. Dahlie disse que iria se preparar. Ônix aceitou a contragosto e Lewis já havia aceitado me seguir para qualquer aventura que fosse, quando aceitou ser meu protetor. Ethan também não tinha escolha.
— Amanhã. Pela tarde. Após o almoço. — E deixei que Ethan me arrastasse de volta ao meu quarto.
Caminhamos pelo castelo, atraindo olhares e cumprimentos. Algumas das criaturas da vila estavam fazendo uma visita e o que para mim parecia estranho e exagerado, para eles era comum e correto. Cumprimentavam-me com reverências e "Vossa Alteza", não adiantava dizer para que me chamassem apenas pelo meu nome. Viam-me como uma princesa e era assim que deveria ser tratada. Acho até que estão todos bem relaxados quanto ao tratamento real, mas isso é pelo fato de tantas mudanças terem ocorrido e de não ter dado muito tempo para todos se adaptarem de fato, senão estaria bem pior a maneira como estão me tratando.
— Finalmente. — Joguei-me na cama quando chegamos e ficamos longe de qualquer olhar ou comentário. — Está ficando pior.
— O que? — Ethan riu, debochado. — Vossa Alteza precisa de algo? Princesa! Princesa! Pode me ajudar com um problema?
— Pare de imitá-los. Estão todos fazendo o possível para se adaptarem e vocês viveram muito tempo em um sistema monárquico absolutista.
— Ainda vivemos, mas agora temos uma assembleia para dividir um pouco mais o poder, antes totalmente concentrado nas mãos da rainha. — E sentou ao meu lado na cama.
— Fico pensando nas criaturas que deixamos para trás... — comentei, depois de um longo tempo em silêncio.
— Nós vamos resgatá-las. — E segurou minha mão entre as dele. — Mas vamos tentar isso sem causar uma guerra, certo? Ainda não estamos preparados para uma.
— Não sei como Leslie não nos atacou ainda.
— Deve ter outros planos.
— Como escravizar os seres da luz? Estava chicoteando aquele....
— Alessia. Ninguém disse nada, mas eu e Zein também fomos chicoteados.
— Vocês o quê? — Sentei-me de repente, sentindo o quarto girar.
— Deita. — E me obrigou a deitar novamente, ao me ver cambaleando. — Quando estávamos trancados no quarto... foi uma medida que Ivan usou para que ninguém soubesse que Ária havia mandado nos chicotear.
— Ária mandou? Como Luzia e Ivan puderam deixar que isso acontecesse?
— Luzia e Ivan só ficaram sabendo depois que aconteceu. Foi Ária quem nos aplicou os golpes.
— E vocês não se defenderam? — Sentia minha pulsação nos ouvidos, meu coração estava acelerado e estava com um nó na garganta.
— Não podíamos atacar a Rainha. — E suspirou. — Por mais maluca que estivesse.
— Por que esconderam isso de mim?
— Não queriam que você tirasse conclusões precipitadas sobre Ária. Estava de fato enlouquecendo. Alessia, tem mais uma coisa que não te contaram....
Percebi imediatamente que o que iria me contar não seria fácil de engolir. Sua voz ficou tensa e seu olhar sedutor e brincalhão estava sério e profundo. Ficamos em silêncio, enquanto o encarava e tentava decifrar em seu olhar o que estava tentando me contar. Talvez fosse mais aceitável para ele se simplesmente descobrisse.
— Quer beber meu sangue? Sabe... para eu descobrir o que você tem a dizer.
— Não agora. Você vai precisar saber de um jeito ou de outro. Lewis ou eu terá que mostrar o que aconteceu.
— E o que aconteceu? — Minha voz era quase um sussurro.
— Zein está morto. — Falou, sem desviar o olhar do meu. No mínimo queria que soubesse que não estava mentindo, que falava a verdade. — Eu sinto muito.
— Não. — Falei entre dentes. A informação ainda não havia sido processada por completo. Era um choque muito grande para que compreendesse de imediato.
— Sim, ele está. Não mentiria sobre uma coisa dessas.
— Sei que não está mentindo. — E olhou-me confuso. — Não precisa sentir muito. Eu não sinto. Traiu minha confiança tantas vezes que não faz mais diferença se está ou não vivo.
— É por isso que precisa ver meus pensamentos, Alessia, ou os do Lewis. Nós sabemos de fato o que aconteceu e você precisa saber também! — Segurava minhas duas mãos e me olhava preocupado.
— Sei que mentiu. Mentiu o tempo todo! E que nos atacou e quase matou todos nós! Se entregou para as trevas! — Minha voz estava um pouco mais alta do que deveria e algumas lágrimas escorreram pelo meu rosto. Lágrimas de raiva, queria acreditar.
— Não, Alessia. Por isso precisa ler nossos pensamentos! Não foi assim que aconteceu. — Insistia em beber meu sangue. Estava com sede, é claro.
— Beba. Se está com sede, beba. Mas não invente mentiras e nem tente me confundir. — Puxei minhas mãos das dele.
— Alessia... não estou mentindo e não vai funcionar se você não quiser de verdade doar. — Seu tom de voz passou a um mais terno e gentil.
— Então não quero. — Encarei-o. — Não quero saber o que você viu! Não quero saber qual mentira ele aprontou antes de talvez até fingir que morreu!
— Ele não fingiu, Alessia! Morreu para te salvar! — E segurou meus ombros com tanta força que o machucado quase curado da quimera, doeu.
— Pare de mentir, por favor... — minha voz estava embargada e já chorava antes mesmo de perceber que estava fazendo isso.
Ethan me abraçou com cuidado e se ajeitou na cama, acariciando meus cabelos com uma das mãos. Não disse mais nada, deixou que chorasse sem ser interrompida e sem me perguntar o real motivo do choro. Ainda bem que não perguntou, porque nem eu mesma sabia.
Minha cabeça doía de novo e minha mente estava girando fora de sintonia, tanto que nem percebi quando adormeci. Só acordei novamente no dia seguinte, com Ethan deitado ao lado, um dos braços ainda me envolvendo pela cintura e uma das mãos em meus cabelos.
Não tinha jeito de levantar dali sem acordá-lo, então simplesmente me ajeitei e apoiei novamente a cabeça em seu peito. Fiquei encarando algum ponto no quarto escuro, ainda devia estar bem cedo, e comecei a pensar na conversa de ontem.
Seria possível mesmo que Zein estivesse morto? Ou Ethan simplesmente estava dizendo isso para que não fosse procurá-lo em algum momento? E sobre Ária tê-los castigado pessoalmente.... Nesse instante, uma imagem se formou na minha cabeça e foi tão real que me fez gritar. Provavelmente sonhei com ela ao dormir. Era a lembrança de um sonho.
Estava em uma sala escura e Ária estava lá com um chicote nas mãos e uma expressão de deleite no rosto, alguém estava caído no chão e gemia de dor, havia o cheiro férreo de sangue e quase podia sentir a dor da pessoa que estava sendo chicoteada. Era Zein. Estava caído no chão, acorrentado, e tentava, sem sucesso, levantar. Tentei gritar quando Ária baixou novamente o chicote e foi quando a lembrança se esvaiu e gritei de verdade, acordando Ethan com um susto.
— Alessia? O que foi? O que houve? — Já estava sentado e segurava meus ombros, me puxando junto a si.
Estava respirando entrecortado e usei isso como pretexto para demorar a responder, não queria contar que sonhei com Zein e muito menos que sonhei que estava sendo chicoteado por Ária. Mesmo sabendo que isso tinha acontecido.
— Não foi nada. Só um sonho ruim.
— Sei que está escondendo algo, Alessia. — E suspirou, soltando um pouco o abraço. — Mas se não acha importante me contar, tudo bem. Vou fingir que entendo.
— Não foi importante. Não foi nada demais.
— Então você se assustou com um pesadelo que "não foi nada demais"? — Disse em tom de deboche.
— Dá para esquecer isso? Não foi importante! — Falei irritada, levantando da cama e seguindo direto para o banheiro, trancando a porta em seguida.
— Vou para o meu quarto! Te vejo no café da manhã! — E ouvi o barulho da porta se abrindo e fechando logo depois.
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