Capítulo 5 - Iurupyté
Lacerda está dormindo tranquilamente. De repente, sente um peso sobre o seu corpo. Ele acorda de sobressalto ao som das risadas de Lyara.
- O que significa isso, Lya? - questiona assustado ao encontrar a índia em sua cama.
A moça está despida, tendo sua nudez coberta apenas por pinturas corporais indígenas. Ela se aproxima, cheira o pescoço dele e fala num sussurro:
- Água.
Ele vira o rosto, lutando internamente com a vontade de fitar o belo corpo desnudo. Lyara coloca a mão no queixo dele, trazendo o rosto em sua direção.
- Você precisa encontrar - disse, segurando um pingente de ouro.
Ele puxa a joia da mão dela e pergunta preocupado.
- Onde conseguiu isso? Essa medalha é da Maria Madalena.
- Você precisa encontrar - repete mais uma vez.
A índia toma o pingente das mãos trêmulas de Lacerda e sai correndo.
- Lya, volta aqui! - grita, levantando-se e indo atrás dela.
Na área externa da casa.
Grandes tochas acesas em volta da piscina e um pajé usando um cocar feito de penas de pavão e demais indumentárias indígenas típicas.
- Quem é você? Como entrou na minha casa? - questiona Lacerda, atordoado.
- Esse é o espírito do meu pai, o poderoso pajé Yanomaká Kumã - responde Lyara. - Venha! Você precisa entrar na água para encontrar.
- Do que está falando, Lya? O que eu preciso encontrar? - pergunta, desordenado.
O pajé inicia um ritual de xamanização. Lyara ajuda Lacerda a se despir, tirando a blusa e a calça do pijama dele. Os dois desnudos entram de mãos dadas na piscina. Chegando à parte mais funda, ambos mergulham. O diretor prende a respiração, submerge e, ao abrir os olhos embaixo da água, avista a índia com uma coroa de ouro na cabeça e, no lugar das pernas, uma cauda escamosa e cintilante. Lacerda se assusta com a visão da sereia e desperta do sonho.
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Os primeiros raios de sol invadem o quarto, brilhando no rosto de Lacerda que acorda suado e com o coração acelerado, devido o pesadelo.
O diretor se levanta da cama e vai até a varanda onde encontra, dormindo tranquilamente na rede de bambu, a índia Lyara. Lacerda se aproxima, ajeitando o lençol que estava mais para fora do que para dentro da rede, faz um suave cafuné no cabelo dela e sussurra:
- Sonhei com você. Foi um sonho bem louco - conta, ainda confuso com o pesadelo. Ele suspira, olha ao redor e comenta: - Você tem razão, é uma vista maravilhosa. - Ele deposita um beijo na testa dela e se retira.
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Um canário amarelo voa por cima da rede despejando suas necessidades no rosto da índia e depois pousa no batente da varanda.
- Ah! Já falei pra você que a minha cabeça não é penico - esbraveja ao acordar. - Do que está rindo? - questiona, levantando da rede e encarando o pássaro. - Juro por Tupã que qualquer dia acerto você com uma baladeira - ameaça, fazendo o canário voar para longe.
Lyara se inclina e avista Lacerda na área da piscina. Ele tira o roupão felpudo e fica apenas de sunga, revelando o corpo musculoso.
O diretor salta na água, nadando rapidamente até a outra ponta da piscina e emerge sacudindo os cabelos molhados. Lyara o ovaciona e aplaude com empolgação.
- Não sabia que tinha plateia - grita o empresário, sorridente.
- Agora é a minha vez - berra Lyara, subindo no batente da varanda.
- Lya, desce daí! LYA! - clama, desesperado.
A índia pula da varanda caindo dentro da piscina. Lacerda nada em sua direção a puxando do fundo e a trazendo à superfície.
- Você tá louca? - pergunta o diretor, segurando-a.
- Cof! Cof! Legal! Eu vou de novo! - exclama animada, afastando os cabelos do rosto.
- Vai de novo porra nenhuma! Está querendo se matar, Lya? - questiona, irritado.
- Eu só quero me divertir, você deveria tentar de vez em quando - disse a índia, pulando em cima dele e o empurrando para o fundo.
- Cof! Agora está tentado me afogar? - questiona emergindo, cuspindo água.
- Não é você o campeão de natação? Vamos apostar uma corrida? - pergunta, nadando de costas em volta dele.
- Você vai perder feio.
- Será? Vamos ver quem chega do outro lado primeiro? - questiona, nadando logo em seguida.
- Assim não vale você nem deu a largada - reclama, nadando atrás dela.
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Nesse momento, visitas inesperadas chegam à mansão. A governanta atende à porta e entram Eduardo e Valéria; a secretária.
- Marta, cadê o meu cunhado? Estou preocupado, pois já liguei milhões de vezes e ele não atende.
- O diretor Lacerda está dormindo, Sr. Eduardo. E o celular dele encontra-se desligado.
- Dormindo? Pois trate de acordá-lo - irrita-se Eduardo.
- Não tenho permissão para isso. Quando ele acordar eu aviso que vocês estiveram aqui. Por favor, peço que se retirem - pede Marta, tentando dispensar as visitas indesejadas.
- Eu não vou sair daqui até falar com o Lacerda, ele precisa arrumar a merda que fez - fala Eduardo se aproximando do bar no canto da sala e escolhendo uma garrafa de uísque.
- O que o diretor fez para irritar tanto o Sr Eduardo, Srtª Valéria? - pergunta Marta, curiosa.
- Você não assistiu aos jornais? - indaga a secretária, sentando na banqueta. - O Lacerda entregou um hotel novíssimo em folha aos desabrigados da Matinha.
- Cheguei ao hotel hoje de manhã, parecia uma invasão do Movimento Sem Terra, pobre fedorento pra todos os lados - comenta Eduardo, virando uma dose de uísque.
- Que barulho é esse, Marta? - pergunta Valéria, ouvindo som de risadas.
- Não ouvi barulho nenhum, senhorita - disfarça a governanta.
- Eu também escutei, parece uma risada de mulher. Ah! Entendi tudo, o meu cunhado está acompanhado, Marta sua alcoviteira - insinua Eduardo, tomando outra dose de uísque.
- Como é? Eu vou matar o Lacerda - fala a secretária, enciumada.
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Enquanto isso, na área da piscina, Lacerda e Lyara se divertem brincando de saltar na água. O diretor executa uma cambalhota no ar e cai na piscina ganhando os aplausos e assobios da índia.
- Acho que vou precisar de uma coluna nova depois de hoje - comenta, após emergir ao lado dela.
- Isso foi incrível! - elogia, sorridente. - Me ensina?
- De jeito nenhum. Você vai acabar dando esse salto mortal lá de cima do telhado.
- Poxa, Cael! Eu quero aprender a pular assim. Se você me ensinar vai ganhar... um iurupyté - fala, colocando os braços em volta do pescoço dele.
- O que é um iurupyté? - pergunta, colocando as mãos na cintura dela.
- Iurupyté em tupi significa beijo - responde Lyara, encarando os lábios contornados pela barba cheia e espessa.
Neste instante, uma mulher de meia-idade usando terninho azul, com os cabelos loiros e a expressão enfurecida se aproxima da piscina.
- QUE PORRA É ESSA, LACERDA! - berra Valéria.
- Quem é ela? - questiona, tirando os braços do pescoço dele
- Quem sou eu? Eu sou a namorada dele, sua vagabunda - responde a secretária, revoltada.
- Você tem namorada, Cael? Não me disse nada sobre isso - questiona, jogando água na cara dele.
- Ele tem namorada sim, sua ninfeta desgraçada - grita Valéria, estando perto da escada da piscina.
- Lya, espera, não é bem assim... Eu e a Valéria, bem é que... - gagueja o diretor.
- Não precisa me explicar nada - disse se afastando dele.
Lyara sai da piscina, subindo pelas escadas, parando bem em frente à mulher que lhe observa com ódio. A índia torce seu longo cabelo fazendo os respingos caírem na rival.
- Não tem vergonha na cara, sua vadia? Esse homem tem idade para ser o seu pai - indaga a loira, com os braços cruzados.
- E pela sua cara de bruxa velha, você tem idade para ser a avó dele.
- Eu vou te matar, sua vagabunda - disse, avançando nos cabelos de Lyara.
As duas começam a se engalfinhar, com puxões de cabelo e xingamentos. Lacerda sai rapidamente da piscina e se mete no meio das duas, na tentativa de separar a briga.
- Parem com isso! Marta, chame os seguranças - solicita Lacerda, tornando-se alvo das tapas e dos chutes, por estar entre as duas mulheres.
- Sim, senhor - obedece a governanta, indo procurar ajuda.
Eduardo aparece segurando um copo com uísque e gelo em uma das mãos, e na outra segura o celular, que usa para filmar a cena inusitada.
- Larga essa porra desse telefone e me ajuda aqui, Eduardo - solicita, irritado.
- É pra já, cunhado - fala, virando a dose de uísque e guardando o aparelho celular no bolso da calça social.
Eduardo segura Valéria pela cintura, enquanto Lacerda segura os braços de Lyara para trás. O segurança se aproxima e Lacerda ordena:
- Tire a Valéria daqui.
- Como é que é, Lacerda? Vai mandar o seu capanga me escorraçar? - berra, indignada.
- Não é nada disso, Valéria. Controle-se! - exclama calmamente. - Acompanhe a Srtª Valéria até o meu escritório, Jorge.
- Sim, senhor - fala o musculoso segurança, vestido com terno preto, que puxa a loira pelo braço a levando, quase que à força, para dentro da mansão.
- Você está bem? - pergunta Lacerda, soltando os braços de Lyara e a encarando.
- Tô! - responde baixinho, usando toda a força que lhe restava para segurar o choro.
- Vai pro quarto e tira essa roupa molhada, antes que fique doente. Daqui a pouco eu subo - disse o diretor, arrumando o cabelo dela atrás da orelha.
A índia se retira cabisbaixa, seguida pelos olhares indiscretos de Eduardo.
- O que você achou? - questiona Lacerda, se aproximando do cunhado, após Lyara adentrar a mansão.
- Gostosa! - responde, passando a língua nos lábios.
- Tá doido, caralho? Eu perguntei se você achou a Lya parecida com a Maria?
- Essa aí é a tal índia? - pergunta retoricamente, apontando. Eduardo recolhe o copo de uísque do chão e continua: - A Alice me contou a história, achei fantasiosa demais pra ser verdade. Essa versão do filme Tarzan não me convenceu.
- Mas você não viu o rosto dela, não percebeu a semelhança com a Maria?
- Confesso que não reparei muito no rosto, aquela camiseta molhada tomou toda a minha atenção - admite com um sorriso travesso.
- Mais respeito, ela pode ser a minha filha - discute, apontando no rosto dele.
- Calma! Foi só uma brincadeira, cunhado - disse, erguendo as mãos em rendição.
O diretor caminha até a espreguiçadeira e pega o seu roupão de banho. Eduardo caminha até ele e recomenda:
- Posso lhe dar um conselho? - pergunta, tocando no ombro de Lacerda que o encara balançando a cabeça em afirmação. - Antes de se apegar e incluir essa tal índia no seu testamento, faça um exame de DNA. Só assim você vai ter certeza se ela é quem diz ser.
- Ela não disse nada - acrescenta, vestindo o roupão. - A Lya nem sabe das minhas suspeitas, ela está crente de que é filha da sereia Yara.
- Sendo assim, além do exame de DNA, agende uma consulta com o psiquiatra, pois essa menina é doida de pedra - pontua, rindo debochadamente.
- Você não sabe da melhor: ela fala com os animais - informa, tentando conter o riso.
- Então é uma mistura do filme Tarzan com Dr. Dolittle.
- Você está assistindo a filmes demais - comenta Lacerda, caminhando para dentro da mansão.
- E você não vai contar das suas suspeitas para a índia? - questiona, caminhando logo atrás.
- E o que eu diria? Ei, você não é uma índia, você é a minha filha que eu abandonei perdida numa selva - responde ironicamente.
- Você não abandonou a sua filha, foram meses de busca. Se ela tivesse sobrevivido aquele acidente, certamente a teríamos encontrado. Precisa aceitar, de uma vez por todas, que a sua filha está morta.
- O corpo da Maria Julia nunca foi encontrado, sendo assim é perfeitamente possível que ela tenha sobrevivido e, tenho quase certeza de que a moça que está lá em cima é a minha filha. - Lacerda se irrita com o cunhado e entra na cozinha para tomar uma xícara de café.
- Eu não quero ser estraga prazeres, mas o mais provável é que essa índia seja uma interesseira que, de alguma forma, descobriu a sua história e está tentando tirar algum proveito, seja se passando por sua filha, seja tentando algo a mais - teoriza, insinuante.
- Ela não está tentando nada - disse, bebendo um gole de café. - Ela é só uma menina ingênua e inocente.
- Ou talvez ela esteja o manipulando para que acredite nisso - instiga, pegando uma das maçãs da fruteira de vidro.
O diretor respira fundo, toma a maçã da mão do cunhado e a morde o encarando.
- Mudando de assunto, o que o traz a minha casa há essa hora?
- Ah, sim! Eu vim falar sobre a sua entrevista de ontem, saiu em todos os jornais e o nosso hotel está cheio de sem-tetos e pedintes. Nós temos hóspedes estrelados, temos lista de espera para reservas, e você sai e oferece quartos para aquela gentalha? Você não pode fazer isso, Lacerda. Vamos perder muito dinheiro.
- Primeiramente, nós não vamos perder dinheiro, porque o hotel não é nosso, é meu. Seu salário como gerente não será afetado.
- Eu digo nosso, porque o hotel também é da minha esposa. É o patrimônio da nossa família.
- O patrimônio da família sou eu, que construí fortuna do nada. Peguei o hotel falido que o meu pai deixou e o transformei no melhor hotel de selva da América Latina. E hoje o Grupo Lacerda é composto por 30 hotéis, espalhados pela região norte e nordeste do Brasil. E isso, meu caro cunhado, é mérito exclusivamente meu, não é nosso - disse, enfatizando a última palavra. O diretor morde a maçã mais uma vez e completa: - E não é porque eu me solidarizei com uma catástrofe e cedi quartos de um único hotel as famílias carentes que vamos à falência.
- Está certo, cunhado, você que manda.
- Sim, quem manda na porra toda sou eu, nunca se esqueça disso - fala, colocando a maçã mordida de volta na fruteira. - E a minha ordem é transferir todos os hóspedes do Hotel do Distrito, para os hotéis dos bairros Adrianópolis, Centro ou Dom Pedro, se eles não aceitarem a transferência, os reembolse. Pois o Hotel do Distrito será destinado às vítimas do incêndio da Matinha.
- Ok! Eu vou providenciar a transferência e o transporte dos hóspedes... E a acomodação do povão da Matinha.
- Faça isso. E não se esqueça de atendê-los com todo o conforto e a hospitalidade típicos do Grupo Lacerda - conclui se retirando da cozinha.
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