Capítulo 3 - Xerimbabo
Ainda naquela noite.
No Residencial Amazônia, apartamento na cobertura, localizado na praia da Ponta Negra, onde moram Lucas e seus pais, Lacerda conversa com a irmã gêmea, mãe de Lucas.
- Alice, eu ainda estou em choque. É como se a Maria tivesse reencarnado, ou melhor, como se tivesse sido clonada. A semelhança é absurda. Você precisava ver.
- Eu estou pasma com tudo que me contou, deve haver alguma explicação lógica. - A senhora de cabelos curtos e caracolados, coça o queixo, pensativa. E num momento de insight conclui: - Claro que não é a Maria, pois nós a enterramos, mas o corpo da Maria Julia, nunca foi encontrado. Quem sabe, talvez, a menina tenha conseguido sair do carro e tenha nadado até à margem, onde esse pajé maluco a encontrou.
- É claro! Eu estava tão desnorteado com a lembrança da minha esposa que não atentei pra isso, faz todo o sentido, a Lya só pode ser a minha filha desaparecida, a minha Maria Julia.
Eduardo, com a camisa desabotoada e a barriga saliente amostra, adentra ao apartamento aparentemente embriagado.
- Boa noite, minha querida esposa! Meu cunhado, você aqui? Se soubesse teria vindo mais cedo para tomarmos alguma coisa.
- Pelo visto, você já tomou todas as coisas possíveis. É assim você diz que cuida da minha irmã e do meu sobrinho? Isso é hora de um homem casado chegar?
-Não é nada disso, meu cunhado. Não foi culpa minha, foi o incêndio. Um terrível incêndio na Matinha que atrapalhou todo o trânsito está tudo parado sem falar na fumaça, não dá pra...
- O que você disse? Onde é o incêndio, Eduardo?
- Na Matinha. É um bairro bem pobre, cheio de casas velhas de madeira. Duvido que você saiba onde fica.
- A Lya mora na Matinha - comenta espantado, olhando para a irmã. - Eu preciso ir - reage Lacerda, levantando-se do sofá e saindo apressado pela porta afora.
- MEU IRMÃO, ESPERE! - grita Alice.
Lacerda pega o elevador até a garagem. Entra no Range Rover e sai dirigindo feito um louco pelas ruas, ultrapassando, buzinando, pisando fundo no acelerador. Até que sua corrida é impedida pelo trânsito parado. Ele desembarca do Range Rover, olhando para frente procurando uma saída. Um motoqueiro buzina atrás dele.
- EI VOCÊ! - exclama, segurando o guidão da motocicleta. - Preciso da sua moto.
- Tá doido cara! Eu não vou te dar minha moto. Sai da minha frente - fala o motoqueiro, tentando desviar.
- Que tal uma troca? Toma, pode ficar com meu carro - instiga Lacerda, apontando para o luxuoso veículo.
- Você quer trocar um Range Rover pela minha moto velha? Está chapado? - pergunta o motoqueiro, sem acreditar na proposta absurda.
- É um caso de vida ou morte - implora, juntando as mãos em prece. - Por favor, me ajuda!
- Tá bom! Vai querer o capacete?
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Lacerda sobe na moto e acelera, cortando o trânsito. Quando está próximo ao local do incêndio, um cenário lamentável: muito fogo e fumaça, pessoas correndo e tossindo, famílias inteiras desabrigadas, muitas casas destruídas, crianças chorando, homens tentando salvar seus pertences carregando móveis e objetos de um lado para o outro, muitos gritos de desespero, dor e sofrimento.
Lacerda larga a moto e sai gritando o nome de Lyara. Os bombeiros não o deixam passar da ruela em que havia se despedido de Lyara mais cedo. Uma senhora idosa baixinha puxa a camisa de Lacerda. Ele se vira e ela comenta:
- A menina Lyara é minha vizinha. Ela que me ajudou a sair do fogo e depois voltou para buscar o Kanauã.
- A Lya ainda está lá? Eu preciso ajudá-la.
Lacerda consegue atravessar a barreira feita pelos bombeiros e policiais e entra em meio ao terrível incêndio. Ele sai correndo pela ponte de madeira, porém a ponte desaba, fazendo Lacerda cair dentro do igarapé poluído, ficando com água até os joelhos. Mesmo assim, ele não desiste, sai andando o mais rápido possível em meio à lama, lixo e escombros, até que consegue alcançar a última palafita bem pequena e avista Lyara em cima do telhado.
- LYA! LYA! LYA! - berra, sacudindo os braços para chamar atenção.
- Diretor Lacerda? - indaga, sem acreditar.
De repente, o telhado que Lyara estava desaba e ela cai dentro da casa que está praticamente coberta pelo fogo. Lacerda consegue subir com dificuldade, até o que sobrou da ponte de madeira e entra na casa. Ele encontra Lyara desmaiada e avista um animal em cima dela. Lacerda pega um pedaço de madeira para espantar o bicho. Quando está prestes a acertar o animal, Lyara abre os olhos e grita:
- Não machuca o Kanauã - fala Lyara, abraçando o macaco-prego.
- Kanauã? Esse é o velho peludo? - pergunta retoricamente. Ele larga o pedaço de madeira no chão, estende a mão e chama: - Vem! Levanta, Lya! Precisamos sair daqui.
- Eu não consigo. Está doendo - explica Lyara, após não conseguir ficar de pé.
Lacerda a carrega no colo, pois na queda do telhado ela torceu o tornozelo.
Eles conseguem sair do incêndio pelo igarapé. No caminho observam as humildes palafitas desmoronando em chamas. Chegando próximos à ruela são abordados pelos paramédicos que realizam os primeiros socorros. Lacerda, Lyara e o macaco são levados de ambulância para o pronto socorro.
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No Hospital e Pronto-Socorro 28 de Agosto. Os paramédicos levam Lyara deitada na maca, abraçada com o macaco. O médico plantonista ameaça chamar a polícia ambiental ao ver o animal selvagem.
- Não é selvagem é xerimbabo.
- O que isso significa, Lya? - pergunta o empresário.
- Xerimbabo é a forma que nós índios chamamos nossos animais de estimação. Diretor Lacerda, protege Kanauã - implora Lyara, entregando o macaco para ele.
- Deixa comigo, eu vou cuidar do seu xiri... Digo, do seu macaco.
Os maqueiros levam Lyara para a sala de urgência e Lacerda fica do lado de fora, com o macaco pendurado no pescoço.
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Após algumas horas.
A entrada do hospital permanece lotada de pessoas, feridos, ambulâncias e curiosos. Lucas chega e acena para Lacerda no meio da multidão.
- TIO! TIO LACERDA!
- Luquinhas, eu estou aqui - avisa Lacerda, no canto próximo a máquina de refrigerantes.
Lucas se aproxima e questiona:
- Onde o senhor conseguiu um macaco? - indaga ao ver o bicho dentro do paletó do tio.
- Esse é o Kanauã da Lya - responde Lacerda, entregando o macaco para Lucas carregar.
- Então é um macaco? Eu pensei que ela estivesse falando de um cara velho - comenta o jovem, rindo e acariciando o pelo do animal. - Você é bonitinho, mas está cheirando a churrasco.
- Preciso que cuide dele pra mim. Não sei quanto tempo a Lya vai demorar pra sair.
- E o que eu faço com ele?
- Dá uma banana, coça a cabeça, dá um banho, sei lá. Só leva esse macaco embora daqui.
Algumas pessoas notam a presença do macaco e começa um burburinho em volta. Uma repórter se aproxima com uma câmera fazendo uma reportagem ao vivo.
- O hospital está lotado com várias vítimas do incêndio... Oh! - espanta-se a jornalista ao notar o animal. - Temos até um macaco aqui. Com licença senhor, o animal está bem? O senhor o resgatou no incêndio? Não acha melhor levá-lo ao veterinário?
- Eita! Não sei - responde Lucas, tonto com tantas perguntas. - É pra levar o Kanauã ao veterinário, tio Lacerda?
- Vai embora, Luquinhas. E faz o que tiver que ser feito.
O jovem sai apressado levando o macaco no colo. A jornalista encara Lacerda.
- Algum problema? - indaga impaciente.
- Estou lhe reconhecendo, o senhor é o diretor Lacerda, estou certa?
- Não, você se enganou.
- Eu nunca me engano e nunca esqueço um rosto. Eu o entrevistei há uns dois anos. O que o senhor está fazendo aqui, diretor? Com certeza um dos homens mais ricos da região não veio procurar atendimento num hospital público. Veio visitar alguém? - pergunta a repórter, apontando o microfone na direção de Lacerda.
- Eu vim prestar a minha solidariedade às vítimas do incêndio na Matinha. Ver se posso ajudar em algo - responde de improviso. - Pronto é isso, está satisfeita? Pode tirar essa câmera de cima de mim?
- De que forma o senhor pretende ajudar, diretor Lacerda? Muitas famílias perderam tudo no incêndio e estão desabrigadas. O senhor inaugurou recentemente um novo hotel na cidade, pretende ceder alguns quartos para às vítimas?
- É um hotel 5 estrelas.
- O senhor acha que as famílias humildes não merecem o conforto de um hotel cinco estrelas?
- Você está distorcendo as minhas palavras. O que eu quis dizer é que eu vou disponibilizar alguns quartos do meu hotel para as famílias vítimas do incêndio. Sendo assim, quem não tiver para onde ir, pode se hospedar no Lacerda Tower Hotel do bairro Distrito Industrial que será muito bem recebido e acomodado em uma de nossas maravilhosas suítes. Agora se me der licença.
Lacerda avista Lyara saindo do hospital e vai em direção a ela.
- Lya! Lya, como foi, está tudo bem?
- O médico falou que foi só uma entorse, ele disse pra eu ir pra casa e fazer compressa de gelo. Aí eu tenho dois problemas...
- Quais problemas?
- Eu não tenho mais casa e também não tenho gelo.
- Na minha casa tem gelo.
- Não quero incomodar. Já fez o bastante salvando a minha vida. Eu consigo gelo em algum comércio por aí - fala Lyara, enquanto caminha mancando.
- Para onde está indo, Lya? - pergunta Lacerda, segurando-a pelo braço.
- Eu vou procurar gelo e algum abrigo pra dormir.
- Você pode ficar na minha casa, se quiser.
- Ficar na sua casa? Bem, não sei. Eu preciso falar com o Kanauã primeiro. Onde está o Kanauã? - pergunta, olhando em volta.
- O Kanauã foi com o Luquinhas ao veterinário e, antes de ir, me mandou cuidar de você.
- Sério? Você também consegue escutá-lo? - questiona com os olhos arregalados.
- Sim, consigo - responde Lacerda tentando ser convincente.
- Que legal! Tem gente que diz que eu sou louca por falar com os animais, mas eu acho que doente mesmo é quem não consegue escutá-los.
- Pois é - confirma o diretor, sem entender direito a loucura que acabara de escutar. - Vamos! Vou chamar um táxi pra gente.
- Cadê aquele seu carro grandão?
- Troquei numa motocicleta.
- E cadê a moto?
- Não faço a menor ideia.
***
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