Capítulo 1 - Caixote
Um caixote de madeira coberto com um lenço colorido e em cima pulseiras, brincos e colares confeccionados com penas de aves e sementes regionais. Dessa forma, a índia Lyara expunha seu artesanato para à venda na frente do Curso Pré-Vestibular Elite, localizado no centro histórico da cidade de Manaus, no estado do Amazonas.
As alunas e professoras do cursinho gostavam dos acessórios que Lyara produzia e compravam vez ou outra. Porém, havia uma aluna chamada Larissa que sempre encontrava motivos para caçoar e desprezar o trabalho de Lyara.
Numa manhã de sexta-feira, Larissa e mais três colegas estavam saindo do cursinho após uma prova simulada e comentavam sobre as questões da prova.
- Essa prova estava muito difícil. O que vocês marcaram na questão sete? - pergunta Lucas.
- Eu marquei a letra "a" - responde Rui, conferindo o papel com gabarito.
- Eu marquei "b" - disse César, olhando o braço riscado.
- Vocês são muito burros! A resposta certa da questão sete é a letra "c" - retrucou Larissa, presunçosa, prendendo num coque os cabelos loiros.
- Na verdade a resposta certa da questão sete é a letra "e". Essas alternativas pra escolher verdadeiro e falso confundem um pouco, mas é só a gente prestar atenção - interrompe Lyara, se intrometendo na conversa dos alunos que passavam à sua frente.
- Com licença, alguém aqui pediu a sua opinião, índia molambenta?
- Eu ouvi a conversa sem querer e só comentei a resposta certa.
- Até parece que uma analfabeta como você saberia a resposta certa. Por acaso bateu seu tambor e Tupã¹ soprou ao seu ouvido? - indaga Larissa, irritada, empurrando o ombro de Lyara.
- Eu não sou analfabeta. Estou estudando para o vestibular também, a professora France me deu uma cópia da prova e... - justifica Lyara, mostrando a prova respondida.
- Passa isso pra cá - grita Rui, puxando a prova da mão de Lyara. - Não é que a indiazinha fez a prova mesmo e já está corrigida - comenta, conferindo o papel.
- Me deixa ver isso aqui. A coordenação vai adorar saber que a professora France anda fornecendo material exclusivo do curso para qualquer um - disse Larissa, tomando a prova de Rui.
- Devolve, por favor, a professora é minha amiga e está apenas me ajudando, não quero que ela seja prejudicada - suplica Lyara, aflita.
- Pago caríssimo nesse cursinho e vem uma índia do pé sujo conseguir tudo de graça. Como se já não bastasse o sistema de cotas do vestibular - exprime Larissa, indignada.
- Deixe a menina em paz, Larissa. Devolva a prova dela - ordena Lucas.
- Pra você tanto faz não é, Luquinhas? Afinal, o seu pai é milionário, você nem precisa estudar, pois já está com o futuro garantido, não depende de um diploma pra isso - irrita-se Larissa.
- Meu pai não é milionário... - disse se aproximando de Larissa. Ele dá um peteleco na testa dela e continua: - O meu tio que é milionário e, falando nele, ele veio me buscar - indica Lucas, apontando com o polegar para o carro importado que vem se aproximando. - Dá essa prova! - exclama, e num relance toma a prova de Larissa e a devolve a índia dizendo: - Acho que isso é seu! - Ele pisca para Lyara e em seguida sai correndo em direção ao veículo.
Lacerda, um bem-sucedido empresário de boa aparência, estaciona o seu carro um Range Rover preto próximo ao Curso Elite para buscar o seu sobrinho. Lucas entra no veículo e o cumprimenta:
- Oi, tio Lacerda!
- Oi, Luquinhas! Está tudo bem?
- Tô bem, tio. Esses meus colegas que são uns idiotas e vivem perturbando a índia.
- Tem uma índia estudando com você?
- Ela não estuda comigo, só vende bugigangas aí na entrada. Mas eu nem sei se ela é índia de verdade, ela é branca e tem olhos verdes... - Lucas olha na direção da jovem e percebe a confusão que os amigos estão fazendo. Ele desce do carro e grita: - Ei, seus idiotas, parem com isso.
Lá fora, Larissa havia tomado novamente a prova das mãos de Lyara, enquanto Rui e César jogaram o caixote e todas as bijuterias da indiazinha no meio da rua.
Após ouvirem os gritos de Lucas, os três malfeitores saem correndo. Lucas vai em direção à rua, na tentativa de recuperar os objetos de Lyara, em meio aos carros que passam desviando e buzinando.
Lacerda também desembarca do veículo e vai ao encontro de Lyara, que sentada na calçada esfrega os olhos lacrimejantes.
- Você está bem? - pergunta Lacerda, tocando no ombro da moça.
Ela se vira e o olhar dos dois se encontra. Lacerda, extasiado, toca no rosto dela sem acreditar.
- Maria, é você? É você, Maria, meu amor! - exclama o empresário, emocionado.
- Maria não. Eu sou Lyara. Tira as mãos de mim, homem branco - protesta se afastando das mãos dele.
- Perdão! É que você lembra-me muito uma pessoa - justifica Lacerda, se recompondo.
- Isso foi o que deu pra recuperar, o resto os carros passaram por cima - fala Lucas, voltando com o caixote quebrado e algumas bijuterias.
- Obrigada! Você é bom! Mas seus amigos são maus - disse Lyara, pegando os objetos.
- São uns idiotas na verdade. Não liga pra eles. Continue estudando e fazendo sua arte. Você é muito boa nisso. Seu nome é Lyara, né? Eu sou o Lucas - fala, estendendo a mão.
- Eu sei quem você é: namorado da France - afirma a índia, apertando a mão dele.
- Está namorando, Luquinhas? - questiona Lacerda.
- Tô namorando não, tio. É só uma amiga - disse o rapaz desconcertado. - É segredo, Lyara. Shh! - sussurra Lucas, colocando o dedo nos lábios discretamente. - Deixa eu te apresentar... Esse é o meu tio, o diretor Lacerda.
- É um prazer, Lyara - disse o homem, olhando-a fixamente.
- Tá tudo bem, tio? - indaga, notando a estranha expressão de Lacerda. - O senhor ficou pálido de repente, parece até que viu um fantasma.
- Estou bem. Deve ser fome - responde enxugando o suor da testa.
- Então vamos logo almoçar. Tchau, Lyara! - despede-se o jovem, andando em direção ao carro.
- Você quer almoçar, Maria? Digo, Lyara. Quer sair pra almoçar comigo, Lyara? Quero dizer, comigo e com o meu sobrinho - gagueja o empresário.
- Eu? Almoçar com vocês? É alguma piada?
- Não é piada. Venha! - fala, tocando no ombro dela.
- Não! Você é um estranho. Kanauã falou pra não confiar em estranhos. - Ela recolhe seus objetos e se afasta depressa.
- Espera, por favor! - clama, desolado.
- Deixa comigo, tio! - Lucas corre até Lyara e tenta convencê-la: - Ei, Lya! Posso te chamar de Lya?
- Apenas os meus amigos me chamam de Lya - responde, enquanto caminha pela calçada.
- E você tem muitos amigos?
- Só a professora France - responde cabisbaixa.
- Eu posso ser o seu amigo também. Eu sou legal, na maioria das vezes - disse Lucas, tirando um pirulito do bolso da calça jeans e oferecendo a ela. - E prometo que não vou deixar aqueles idiotas machucarem você. Que tal? Amigos? - indaga, parando de andar.
- Amigos - responde Lyara, parando e aceitando o pirulito.
- O que acha de almoçar com o seu novo amigo?
- O seu tio fica me olhando estranho.
- O tio Lacerda é um pouco estranho, mas no fundo ele é gente boa - afirma, olhando para trás e avistando o tio com olhar ansioso. - E aí, tá com fome? Acho que escutei a sua barriga roncar daqui - fala o jovem, tirando risadas dela.
- Para falar a verdade, estou morrendo de fome.
- Então vamos lá. Deixa eu te ajudar com isso - disse o estudante, pegando o caixote das mãos dela. - Gosta de peixe? Que pergunta idiota! Você é índia, é claro que deve gostar de peixe.
Lyara, mesmo desconfiada, aceita o convite para almoçar com o seu novo amigo e o tio estranho dele.
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1_Tupã, que na língua tupi significa trovão, é uma entidade da mitologia tupi-guarani. O deus do trovão criador do céu, da terra e dos mares.
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