1. A Queda

Minha queda começou dia 18 de Março de 2019.

O tic-tac do relógio da cozinha estava me enlouquecendo. Sabia muito bem que ia acabar me atrasando naquele ritmo. Era só o segundo mês de aula, em meu primeiro semestre na faculdade, e eu já estava mais sobrecarregado do que nunca. Nunca imaginei que o curso de Design envolvesse tanta teoria. Tanta régua. Tanta colagem. Tanta coisa que me lembra as aulas de arte do longínquo fundamental. Abri e fechei as mãos várias vezes, pensando nas aulas do dia. O grande problema é que eu não lembrava delas. Não lembrava o que tinha que entregar naquele dia em questão. Nem se tinha algo a entregar. O simples fato de estar atrasado já estava me desestabilizando. Enfiei o último pedaço de pão na chapa na boca e levantei, me direcionando afobado para a saída do apartamento.

Depois de uma série de trivialidades — ônibus, metrô, da linha vermelha para a amarela — cheguei na estação Mackenzie e adentrei o campus. Então tive as aulas do dia... Em tese. Estava lá em corpo, mas não em espírito. Não conseguia parar de batucar minha caneta na mesa cinza. Não conseguia me conectar a qualquer coisa que meu professor estivesse dizendo. Eu simplesmente estava com a mente em outro lugar. Em outra preocupação. Em todas as outras preocupações latentes daquela minha vida caótica de estudante universitário. Bixo, ainda por cima. Sabe o que é ser bixo? Bem, não é nada glamuroso. Glamuroso é ser veterano, saber andar pelo campus certinho. Glamuroso é saber que seus livros estão na biblioteca do prédio de arquitetura, não na incrível biblioteca central, que, aliás, fica do outro lado da pracinha. Por que não deixar Design perto de... Sei lá, literatura?

Aliás, como bixo, nem sei andar no campus direito. Esse é um dos motivos para eu ficar tão ansioso. Um dia desses tive que procurar a gráfica central para imprimir algo. Não encontrei porque metade da faculdade conhecia apenas o local antigo da central. E eu... Tive que me virar, como sempre.

Mas por que eu estou falando disso mesmo?

Percebi uma garota analisando meu cabelo roxo. De novo. Acontecia muito. Apesar de não ser um roxo muito gritante, é roxo. Não é como uma cor de cabelo normal, então é de se esperar que me encarem. Ainda assim, acho meu roxo até que... Aceitável. Discreto.

Para deixar claro, eu não sou idiota e escrevi "bicho" errado. No universo universitário, o correto é "bixo", principalmente porque é mais fácil de escrever na testa do infeliz. Como "loser", se quer saber. Aliás, acho que os veteranos veem os calouros como perdedores. Caso contrário, por que nos mandariam cumprir coisas tão ridículas? Nada pior do que trote de faculdade!

Mas por que eu estou falando disso mesmo?

Acho que é o nervosismo.

É óbvio que eu estava caindo. Estava me perdendo em minhas próprias preocupações e enchendo minha cabeça com todas as outras trivialidades da vida. Não era como se eu estivesse no curso de medicina ou algo assim. Era só Design, como dizia um dos meus colegas de classe. Ainda assim, eu já me sentia sobrecarregado. Imagina se quisesse ser médico!

Felizmente a aula logo acabou e eu me preocupei em fazer o caminho de volta para casa. Metrô, linha amarela da estação Mackenzie até a República (uma estação depois da outra, mas vamos fingir que não), então mudança para a linha vermelha, pegar o quarto vagão, sentar no lugar disponível na janela e esperar. Anhangabaú, Sé, Pedro II, Brás, Bresser-Mooca, Belém e Tatuapé. Então levantei, esperei a porta abrir e saí. Subi as escadas rolantes, saí pela catraca, segui até terminal de ônibus em frente ao Shopping Tatuapé e adentrei meu ônibus. Terminal Vila Carrão. Gosto de saber cada passo do que vou fazer, caso contrário, me sinto um pouco... Contrariado. É "contrariado" é uma boa palavra.

Sentei ao lado esquerdo do ônibus, bem na janela. E fiquei olhando para ela. Observei as pessoas ao meu redor, observei os funcionários do terminal. Observei os ambulantes fugindo com suas mercadorias, pois os funcionários do metrô foram instruídos a expulsá-los. E acabei, pensando no assunto proibido, o assunto que mais acabava comigo. Eu me perdi. A aceleração dos meus batimentos cardíacos foi inevitável. Era o pensamento mais atroz habitando minha cabeça, então não havia muito a ser feito. Sentia meu coração em uma velocidade tão alta que dava para sentir minha caixa torácica agitada, quase como se estivesse tremendo como nunca antes. O resto do mundo parecia estar em uma torturante câmera lenta, a qual me fez sentir o tempo com mais intensidade. Eu sentia cada maldito segundo! Minha respiração sequer estava normal, e eu provavelmente estava tremendo, minha consciência presa nessa jaula inútil que é meu próprio corpo.

E ninguém notou nada.

Ninguém.

Exceto o ser que representava minha própria queda. Um ser do sexo feminino. Um ser de carne e osso.

A única coisa que me tirou de minha angústia foi a garota que literalmente caiu ao meu lado, com a parada brusca do ônibus. Por que o motorista brecou justo nesse minuto? E como eu não percebi que o ônibus já estava andando? E como uma garota tão linda caíra ao meu lado? Cabelo cumprido, vermelho (ou um rosa muito escuro, não sei definir), olhos castanhos escuros, não tive como saber sua altura, mas estava óbvio que era mais baixa que eu. E ela me olhou, as bochechas adquirindo um tom semelhante ao seu cabelo estonteante. Minha pulsação tomou uma aceleração diferente, por um motivo diferente. Havia... Algo nela. Ela parecia ter muita confiança com aquela aparência única.

— Perdão! — Disse, os olhos atordoados. — O motorista freou e...

— Não há problema. — Sorri, tentando passar uma confiança que, na verdade, não tinha. — Você está bem?

— Sim. Eu te machuquei de alguma forma? Vi que meu braço tocou o seu meio que forte demais.

— Não, não. — Tentei tranquilizá-la. Na verdade, eu nem senti seu braço me tocar.

— Ah... Perdão.

— Tudo bem. — Eu deveria ter ignorado tudo aquilo. Devia ter simplesmente seguido em frente, porque era comum essas coisas acontecerem em transportes públicos de São Paulo. E você sempre passa por isso como se não fosse nada. Você pede desculpas, ou a pessoa pede desculpas. E é como se nada tivesse acontecido, como se aquele momento não existisse. Como se a pessoa não existisse. Soa um pouco cruel, mas é como as coisas funcionam. E eu deveria seguir sem me importar com aquele momento, com aquela garota. Ela era só mais uma. Exceto que não era. — Meu nome é Lucas. Qual o seu nome?

E a minha queda começou.

Minha queda começou exatamente uma semana antes, dia 11 de Março de 2019.

Havia algo de hipnotizante naquela biblioteca. Talvez fosse a arquitetura antiga, ou o piso de madeira (que fazia muito barulho, se me permitem dizer), ou o cheiro de livro velho, ou a quantidade exorbitante de livros do meu curto. Térreo e três andares. Ou, se preferir, quatro andares. Andares repletos de livros dos mais diversos cursos. Para ser sincera, nas primeiras semanas é até difícil encontrar os livros. Poderia usar isso como desculpa para estar aqui constantemente. "Eu volto aqui para conseguir achar os livros, pois essa biblioteca é muito grande", mas eu sei que isso não é verdade. Está bem longe da verdade, porque eu só venho aqui direto porque amo livros. E amo essa biblioteca. E porque literatura é a melhor coisa já inventada pelo ser humano.

E bem, eu acabei ganhando um outro motivo para voltar. Era segunda-feira e eu estava com uma pilha de livros sobre Saussure. Sobre Linguística no geral. E não, eu não passei por nenhuma situaçãozinha clichê. Eu não tropecei e deixei os livros caírem. Eu não esbarrei em um cara lindo, deixei os livros caírem e ele me ajudou. Eu não encontrei um cara que comentou sobre algum dos livros que eu tinha comigo. Nada disso! Eu só passei por algo que não imaginava. Lá pelo número 800 (que não significa o livro de número 800 e... quem vai a bibliotecas entende), avistei um garoto do outro lado da estante, na outra sessão. Pense como se houvesse uma grade entre nós, e substitua grade por estantes e... Acho que deu para entender.

Ele tinha cabelo preto — preto mesmo, não castanho escuro —, barba por fazer, também preta, óculos de grau bem quadradinho, como aqueles que os artistas usam. Para ser sincera, não sei qual o nome que dão para essa armação em questão. Mas ele estava usando. Não via seu rosto inteiro, apenas partes. E ele estava na sessão de Literatura Inglesa, então posso afirmar que houve algum interesse da minha parte. Certo, muito interesse. E ele estava com um livro de Shakespeare, então ganhou mais um ponto a seu favor. E eu bem que pensei em entrar lá e falar com ele. Aliás, estava pensando em fazer isso. Não é todo dia que você encontra um estudante de Letras na biblioteca, por incrível que pareça. Meu curso é bem pequeno para o todo que é a faculdade. E ele com certeza era de Letras. Nenhum outro curso lê livros em inglês.

Então saí do cubículo em que me encontrava, pegando o corredor para aparecer ao lado dele, na sessão de literatura inglesa. E, infelizmente, ele já estava indo embora e eu não tive coragem de chamá-lo de volta. Seria muito estranho ir para aquela sessão sem entrar de fato, então entrei para que ele não estranhasse. O garoto do cabelo preto simplesmente foi embora e eu encarei as prateleiras ao redor. Shakespeare eu já sabia que ficava mais abaixo, então direcionei meu olhar para lá, tentando decifrar qual livro ele pegara exatamente. Idiota? Talvez. Mas é claro que eu não consegui.

Muito pelo contrário.

Deparei-me com uma folha de caderno dobrada. Abri-a e encontrei uma poesia e não tive tempo de registrá-la porque havia outra missão extremamente importante para realizar: precisava devolver a poesia para o moreno. Caminhei para o corredor e olhei para os andares inferiores, através daquela espécie de bancada. E ele já estava indo embora. Eu estava no terceiro andar, não tinha como chegar lá a tempo. Então já era, eu ia acabar ficando com a poesia do cara... Até conseguir encontrá-lo novamente. Por isso voltaria para a biblioteca com ainda mais ímpeto. Precisava encontrá-lo. E ler a poesia foi determinante para minha decisão.

"Amores são falhos,

Amores são raros,

Amores são caros.

É difícil de encontrar,

É difícil de enfrentar,

É difícil de amar.

Ainda assim,

Com o esforço certo,

Com o momento certo,

Com a pessoa certa,

É permitido experimentar"

A poesia estava assinada com um "M" maiúsculo apenas.

E a minha queda começou.



Na segunda-feira posterior eu queria voltar correndo para casa, por isso nem esperei o ônibus vazio. Estava lotado, e eu ainda não tinha muita habilidade para ficar em pé no ônibus. No metrô é bem fácil, mas no ônibus... Enfim, não sei se foi uma boa escolha. Estava indo tudo bem até o motorista frear, sabe-se lá porquê. E eu tropecei em meus próprios pés, perdi o equilíbrio e minha mão soltou da barra de ferro. Caí sobre uma cadeira que acabara de ficar livre (aliás, por que eu não sentei nela antes?) e bati com tudo no braço de um garoto. E analisei ele. Cabelo roxo, rosto sem um resquício sequer de barba, olhos castanhos escuros, pele bem branca. Seria muito patético eu dizer que ele era lindo? Seria, então não direi. Fiquei extremamente envergonhada, principalmente porque estava com medo de ter machucado ele de alguma forma.

— Perdão! — Minha voz estava fina ou era só impressão? — O motorista freou e...

— Não há problema. — Sorriu. Havia alguma coisa nele que passava uma confiança que eu nunca ia alcançar. Sou bem insegura, para falar a verdade. — Você está bem?

— Sim. Eu te machuquei de alguma forma? Vi que meu braço tocou o seu meio que forte demais. — Por que eu tinha que ser tão patética? E por que eu sempre fico tão nervosa perto de homens? São apenas homens! Seres humanos!

— Não, não. — Acho que ele estava mentindo. Não tinha como ele não ter se machucado com aquele encontrão ridículo. Para ser bem sincera, meu braço estava doendo um pouco.

— Ah... Perdão. — Patética. Completamente patética, Caroline. Por Deus! É só uma pessoa!

— Tudo bem. — Ele provavelmente estava zombando de mim em sua cabeça. É claro que eu estava longe de ser bonita ou qualquer coisa assim. Ninguém olha para mim e pensa "uau, eu quero falar com essa garota". Não. Apenas não acontece. Não sou loira, não sou alta, não tenho um corpo cheio de curvas. Para falar a verdade, eu pareço mais um pedaço de madeira. É deprimente. — Meu nome é Lucas. Qual o seu nome? — Ele estava com dó de mim? Sério? Por que essas coisas sempre acontecem comigo? E por que eu tenho que ser a idiota que faz tudo o que as pessoas esperam que eu faça? Bem, eu provavelmente nunca mais veria o garoto do cabelo roxo de novo, então...

— Caroline. Prazer.

Eu não podia estar mais errada.


Olá, Little Lovers! Tudo bem? Aqui é a Fá (avá) e eu tenho uma coisinha a dizer para vocês. "Lucas, Caroline e a teoria da Inevitabilidade" é um livro sobre amor, sim, mas há mais do que isso. Também é um livro sobre as dificuldades do começo de faculdade, do começo da fase "adulta" e sobre problemas internos. É um livro que trata de crises de ansiedade e baixa autoestima. Várias das coisas relatadas pelos personagens foram tiradas de meus leitores, do grupo do WhatsApp, e agradeço imensamente. Se você, por acaso, quiser me contar sobre sua experiência, sinta-se livre para me chamar por inbox. Estou aberta a isso e adoraria poder ajudar. Por enquanto é isso! Espero que gostem!

Beijos doces,

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