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Uma visão...

E LÁ ESTAVA O EDIFÍCIO residencial Ramadah Sanyr, ou torre residencial, construído para oferecer aos funcionários de outros países, o conforto a que estão acostumados no Ocidente. Fora planejado para se tornar parte de um office park... Como se a vizinhança fosse florescer apenas pela intenção. Mas claro que a intenção vinha de belas perspectivas... Perspectivas de abertura com o Ocidente. Só que não adiantava nada sonhar alto quando a maioria da população passava necessidade.

O governo deposto tinha planos para aquela região, de fazer com que o Iêmen alcançasse o patamar internacional de Marrocos. Obviamente, não aconteceu. A história de um Oriente em constante conflito cobrou o seu preço.

Aleksandra avaliou rapidamente o edifício, com seus doze andares; sendo que o último – onde ficava a suíte - estava inacabado. O Ramadah Sanyr ainda guardava a imponência pretendida, mesmo que abandonado. O projeto original incluía a construção de mais duas torres residenciais e um bloco de escritórios ao redor de uma ampla praça com vista panorâmica de todo o deserto. Um jardim irrigado artificialmente pretendia causar um vivo contraste com a vista árida e selvagem do deserto – cenário incorporado ao visual dos mais chiques hotéis do Mundo Árabe.

O deserto, nesse caso, representava o gosto pelo exótico que os ocidentais teriam, de suas janelas.

Das quatro torres residenciais, apenas uma estava praticamente toda concluída. A outra possuía somente três andares semi-acabados. O bloco de escritórios era um mero esqueleto armado a oeste da praça principal, agora tomada pela areia. O jardim, uma promessa, com seus montes de terra agora clareados pela areia que o vento constantemente espalhava por toda parte.

Aleksandra subiu os degraus da praça e rapidamente alcançou a rua que dividia o quarteirão entre as duas torres. Olhou ao redor, protegendo a vista da claridade. O sol estava a pino; mesmo com os óculos escuros, os olhos lacrimejavam o tempo todo. Além disso, a fome e a sede fincavam suas garras com mais força. Tentou ignorá-las, mas a boca seca e o ronco do estômago não permitiram. O cantil de água estava quase acabando; as barras de cereais também. Precisava encontrar algo para comer e beber, do contrário acabaria desmaiando a qualquer momento...

Ela começou a atravessar a rua rumo à porta de entrada da torre. À medida que se aproximava, pode avaliar a face dupla meramente encostada no batente, deixando entrever uma enorme abertura para o interior escuro do prédio... O local já fora invadido, ela percebeu, com crescente apreensão.

De súbito, escutou o som de um veículo vindo da direção norte da estrada principal. Para estar por aquelas bandas, só podia ser uma patrulha. Avaliou que devia estar próximo o suficiente para que ela fosse surpreendida parada no meio da rua.

Aleksandra precisava entrar no prédio, antes que o veículo alcançasse a esquina. Se não conseguisse, estaria perdida.

Ignorando a tontura, girou nos calcanhares e começou a correr...

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Há milhares de quilômetros do Iêmen, numa minúscula ilha que mal aparece no mapa litorâneo do Brasil...

Salésio acordou sobressaltado. O peito nu banhado em suor. A mente desorientada - mas treinada para o estado de prontidão - rapidamente assimilou o ambiente. Foi apenas um pesadelo. O mesmo que vinha tendo há duas semanas. Aos poucos, o coração acalmou, e o suor foi secando na pele.

Sobre a sua cabeça, o ventilador de teto continuou girando as pás silenciosamente, indiferentes ao seu caos interior. Ele mesmo havia regulado e azeitado as correias. Gostava de trabalhos manuais e de consertar coisas. Não se sentia bem com a inatividade. Precisava estar em constante movimento; sentir-se útil e no controle do seu destino.

Inspirando fundo, rolou o peso no colchão e sentou-se com os pés descalços sobre o piso vinílico. O quarto ficava no segundo piso da sede dos atobás. A cama fora posicionada de fronte à porta-janela de vidro, cujas faces duplas se abriam para um largo terraço de contorno inteiro.

De onde estava sentado, podia contemplar as águas plácidas da Baia de Sepetiba. A vista espetacular tinha o raro dom de acalmá-lo. A profissão que escolheu colocava em prova a sua sanidade o tempo todo, desdenhando dos valores que aprendeu no seio familiar... Dor, morte e atrocidades eram uma constante do ofício. Ele aprendeu a agir sob pressão, a fazer o seu trabalho e cumprir a missão que lhe fosse confiada.

Mas necessitava da natureza para manter-se sólido, enquanto homem e soldado.

Quem olhasse de fora, talvez julgasse que ele gostava de surfar apenas por curtição ou adrenalina; mas, na verdade, tratava-se de uma disciplina auto-imposta e também uma forma de limpar a mente – de se encontrar com Deus. Homens como ele primavam pela simplicidade e reverenciavam a natureza, sempre que precisavam recuperar a paz de espírito.

Ele se levantou; os músculos brilharam sob a luz do luar – efeito provocado por uma combinação de bronzeado e suor. Caminhou pelo quarto, tirando os cabelos dos olhos. Um ventinho gelado o atingiu no peito. Ele parou no meio do quarto, estreitou os olhos e viu que a porta de correr de sua sacada estava aberta – deixando uma brisa forte e gelada invadir o cômodo. Ele alcançou a porta em duas passadas, observou o mar escuro lá fora - as ondas suaves quebravam mais abaixo, num ritmo constante. A linha do horizonte cintilava num tom alaranjado e incandescente como lava, anunciando a ascensão do astro rei.

Que horas são?

Salésio encostou as duas faces e girou a chave. Em seguida, virou-se a procura do celular. Encontrou-o sobre o criado mudo. Voltou a sentar na cama e apanhou o aparelho. Tocou na tela, que se iluminou imediatamente. Eram 5 da madrugada. Soltou um suspiro, sabendo que não conseguiria mais dormir. Então, decidiu malhar.

Alongou-se no quarto, ainda nu. Depois vestiu uma bermuda e colocou os tênis de corrida. Se fizesse o corpo ficar bem cansado, talvez a inquietude desaparecesse... E ele finalmente dormisse.

Saiu para correr a tempo de contemplar o sol se erguendo numa bola de fogo. Seu caminho foi banhado por uma luz dourada, tornando o cenário tão poético quanto belo. Ele deu dez voltas na orla da praia. No total, dez quilômetros. Mas ele estava longe de acabar. Foi para a academia, no subsolo, e começou a puxar ferro. Quando estava no meio de uma série de braço e peito, os parceiros começaram a chegar. Alguns energizados para uma nova manhã, outros bocejando escandalosamente, loucos para voltar para a cama.

Havia três equipes CECOP: Alfa, Bravo e Charlie. Cada qual, com suas especificidades. Alfa era a equipe de assalto: busca, captura, resgate e salvamento. Bravo era a equipe de apoio operacional: cobertura, emboscada, cerco e retirada. E Charlie era uma equipe de reconhecimento: patrulha e infiltração. Cada equipe tinha em torno de dez a trezes homens e mulheres. Havia ainda a equipe de apoio logístico, daqueles que ficavam no QG.

Ele viu seus parceiros se espalhando pelo ginásio. Antigos parceiros - corrigiu-se em pensamento. Agora eles também eram os seus comandados, e precisava cobrar-lhes o desempenho. Avaliá-los constantemente.

Seu papel no grupo mudou, claro, pois se tornou o líder de Alfa, quando Romano foi promovido a contra-almirante. Uma responsabilidade sem precedentes. Se o grupo falhasse, era sua responsabilidade. Se um de seus homens morresse, era sua culpa. Se os Alfas falhassem numa missão, era pela sua incompetência como líder. Se estivessem em batalha, ele era o homem que chamaria o fogo para si e daria a vida para salvar seus companheiros e subordinados. A vida daqueles homens era a sua responsabilidade. Como fora a responsabilidade de Romano há bem pouco tempo. Um dos motivos pelos quais Salésio não conseguia dormir.

Seu pesadelo era de fácil interpretação. Ele sonhava sempre a mesma coisa, que seus homens morriam numa emboscada, porque ele não viu os sinais. Ele era o único sobrevivente. E ele acordava vendo-se banhado no sangue de seus companheiros.

JJ, o mais calado de todos, era o homem com quem Salésio podia contar. Para tudo. Se antes, ele tinha essa sinergia com Romano, agora JJ ocupava o papel que um dia foi dele. O beta. O apoio do líder.

Kurt, Alexandre e Álvaro ainda eram os caras novos. E continuariam assim por um bom tempo, até que Romano decidisse abrir um edital de ingresso. O restante estava junto desde o começo, ao mesmo tempo, na corporação. Nelson, Daniel, Igor, Laerte, Eduardo, Heitor e... Lorena. A única garota do grupo ativo. A primeira a passar nas provas tão difíceis quanto as provas dos SEAL americanos.

Lorena não ficava ali, mas do outro lado do prédio. Eles tiveram que fazer algumas adaptações para receber uma mulher nos alojamentos do efetivo operacional.

Salésio cumprimentou os colegas... Em momentos como aqueles, durante o treino, ele tentava acreditar que nada mudou realmente. Continuavam parceiros. Ele só tinha uma patente maior.

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JJ não ficou espantado ao encontrar Salésio resfolegando sobre a barra de exercícios, com uma poça de suor sob os pés.

-Deixe-me adivinhar - ele começou a dizer.

-Não adivinhe! - cortou Salésio, num sopro de fôlego, comprimindo os lábios sem desviar os olhos dos últimos movimentos. Então, quando concluiu, largou a barra e sentou-se no chão, cruzando as pernas. Estava exausto, mas a inquietude não passou.

-E o fato de você se sentir pressionado no trabalho não tem nada a ver com isso?

Os dois trocaram um olhar de entendimento, mesmo que o de Salésio contivesse um quê de rancor. Ele não queria falar sobre a última missão. Tudo que precisava ser dito, já foi dito durante a reunião de grupo. No entanto, alguns eventos ainda o perturbavam.

-Leona já chegou? – devolveu. Sabia a reação que iria causar em JJ, ao mencioná-la.

-Não vi - disse JJ, imperturbável, embora soubesse muito bem o motivo da pergunta. - Não sou sua criada, sabe disso.

-Não, você é grosso demais para ser uma criada – retorquiu Salésio, rindo alto.

JJ sorriu discretamente e foi para a barra de exercícios.

Salésio limpou o suor da testa e colocou a toalha ao redor do pescoço. Girou nos calcanhares e seguiu para o vestiário.

Lá dentro, sozinho, sob a poderosa ducha, ele contemplou a água de sabonete que escorria pelos seus pés. Pensou na mensagem de celular que recebeu de Aleka, dizendo que precisava falar com ele. (E foi a primeira coisa que ele tentou fazer, ao retornar da última missão). Mas o celular dela estava desligado. E assim permaneceu desde então. Sentiu uma apreensão tão intensa que precisou engolir seu orgulho ao telefonar para a ONG, em Atenas. O tal Dimitri-Sem-Ovos lhe informou que ela teve de fazer uma viagem inesperada, mas não explicou o motivo, nem o destino.

Salésio lembrou-se da preocupação de Celeste, quando a encontrou no churrasco de domingo, na casa de Romano. Ela lhe disse que Aleka andava estranha... Reticente, foi a palavra que ela empregou. E ele teve um mau pressentimento sobre isso também. Um dos motivos pelos quais não vinha dormindo direito.

Estava quase certo de que só conseguiria ter uma boa noite de sono depois que conseguisse localizar Aleka. Para piorar as coisas, há dois dias, uma mensagem programada de e-mail apareceu em sua caixa de entrada do gmail. Era dela.

"Tive que fazer uma viagem para encontrar meu irmão. Não se preocupe, estarei de volta a tempo para o casamento de Derek e Lara. Encontro você lá."

Ele ficou encasquetado com aquela mensagem... O irmão dela estava aonde, afinal?

Uma hora depois, de banho tomado, alimentado, e usando seu uniforme branco formal, ele entrou no centro de comando da ilha do tatu. Estavam todos os técnicos em seus postos. Eles se levantaram e prestaram continência.

-À vontade - disse ele, em tom desinteressado. Rumou direto para a mesa de trabalho de Leona.

-Oficial Vargas, o que vou lhe pedir não é algo comum... - ele disse, controlando o tom de voz para não soar meio sem jeito. - Ainda tem seu contato com a Inteligência de Israel?

Leona levantou a sobrancelha.

-Sim, senhor.

-Preciso rastrear uma pessoa na Europa.

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Ele recebeu a correspondência e caminhou distraído para o seu escritório. Olhou ao redor, pensando, com ironia, que achava aquele lugar formal demais. No passado debochou muito de Romano por causa disso e jurou jamais trabalhar num lugar assim. E agora, ele estava pagando a língua.

Ele se deteve no envelope que veio dos Estados Unidos. Rasgou-o e encontrou o esperado convite de casamento do SEAL Derek Nahas e Lara Castro.

Todos os atobás foram convidados!

Eles fizeram parte da história de amor daqueles dois, mesmo que de maneira indireta. Salésio não pretendia comparecer sozinho à cerimônia. Como suas férias estavam programadas para os próximos dias, ele pretendia se encontrar com Aleka e aproveitar o momento para conversar sobre a relação. Talvez ele lhe fizesse uma surpresa e fosse ao seu encontro, onde quer que ela estivesse no momento. Os dois poderiam viajar juntos para o casamento. Estava esperando só que a Inteligência de Israel lhe desse o paradeiro correto. A apreensão estava deixando ele maluco. E se descobrissem que ela estava saracoteando por aí com outro homem?

Não... Será?

Ele se sentou diante do notebook, pronto para digitar uma mensagem, quando o seu instagram deu sinal de vida. Era Aleka. Seu coração foi até a boca e voltou.

Salésio deparou-se com uma rápida mensagem de vídeo tão estranha quanto frustrante. O fundo era uma confusão de barulho de aeronaves com homens passando, fardados.

-Salésio... Sei que prometi encontrá-lo no casamento... Acontece que já não tenho certeza se poderei ir. Recebi um email de meu irmão Piotr. Ele está no Iemên e parece que estourou uma revolta. A maioria dos estrangeiros conseguiu deixar o país, mas ninguém sabe me dizer porque ele não saiu com os outros. Consegui sua localização e vou para lá, já que ninguém pode me ajudar aqui no Dijibouti.

"Então era lá que ela estava? No chifre da África?" Ele socou a mesa com tanta violência que tudo sobre ela sacudiu e o abajur caiu no chão, provocando um estrondo alto. A secretária correu para ver o que aconteceu.

-Está tudo bem, Agda! - ele fez um gesto impaciente com a mão. - Chame a Oficial Vargas, por favor.

Ela assentiu e saiu quase correndo. Quase...

Salésio estava com os pensamentos a mil quando pegou seu telefone por satélite e tentou conectar com o telefone de Aleksandra. Não conseguiu. Novidade. Então olhou para a mensagem no direct e constatou que foi enviado há cinco ou seis horas. Pelos seus cálculos, não seria tão fácil ela conseguir transporte para o Iêmen. E ele mandaria uma mensagem a todos os seus contatos para boicotar qualquer carona militar que ela tentasse obter.

Mais tarde, Leona confirmaria que Aleksandra estava na base dos Estados Unidos, na África, pleiteando uma carona. O comandante da base lhe assegurou que o pleito não tinha o menor cabimento e que ela não iria conseguir.

Salésio ficou mais tranquilo. Mandou uma mensagem para ela dizendo que ficasse calma. Que ele iria ajeitar as coisas. Sugeriu que ela fosse para os Estados Unidos, como o programado. Eles se encontrariam lá e ele resolveria as coisas para ela. Afinal, os SEAL possuem os seus contatos. Seria mais fácil consultar Derek ou Spencer Tracy sobre como poderiam obter notícias de Piotr. Ele a lembrou de que Celeste também estaria no casamento. Imaginou que, depois de tudo pelo que passaram, a russa não deixaria passar a oportunidade de rever a amiga.

Deixaria?

Ele esperou durante minutos angustiantes. Os minutos se transformaram em meia-hora. A meia-hora virou uma hora e deu passagem a outra meia-hora... E quando ele constatou que já havia passado duas horas, levantou-se de um pulo, tomando decisões frenéticas para embarcar no primeiro vôo que o levasse para a base de Djibouti.

-Oficial Torres! – ele gritou por Agda, que desta vez correu até a porta.

Ele abriu a boca, mas o som suave de mensagem entrando no celular o fez calar. Ele encarou o aparelhou por um instante, antes de agarrá-lo e verificar se a mensagem era de Aleka. Uma mensagem de texto simples o esperava. A resposta de Aleksandra: "Não se preocupe, irei ao casamento!"

Salésio voltou a respirar. Quando se encontrassem em Coronado, as coisas voltariam aos eixos. Ele se encarregaria disso ou o seu nome de guerra não era Safo.

-Dispensada, oficial – ele disse, meio sem jeito, enquanto sua secretária se retirava da sala com expressão confusa.

Salésio desabou na poltrona, aliviado.

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