2
Há sete meses e três semanas...
Sombra da Morte
OS INCÊNDIOS CRIMINOSOS na Amazônia nunca tiveram tanto destaque nas mídias sociais. Sempre ocorreram com mais ou menos intensidade, com mais ou menos destaque... Conforme os interesses envolvidos - como tudo, no Brasil - os aspectos políticos ditaram o tom da notícia. Grupos com intenções específicas fizeram do ato e, respectivamente, de sua divulgação, uma forma de exercer o poder (particularmente sobre a opinião pública internacional).
Havia culpados, mas - como tudo no Brasil - a investigação e a punição previstas em lei, dependiam do jogo de poder político jogado no momento. Obviamente, isso não era da conta dos militares. O chefe das forças armadas queria os melhores entre os melhores, presentes, lá, para resolver o problema. E era isso que estava sendo planejado na ilha do Tatu, onde fica a base do CECOP alfa.
O contra-almirante Romano Bruggmann cumprimentou os soldados presentes na sala de reuniões, encarando brevemente cada um de seus líderes de equipe - Nestor, Salésio e Osmar, posicionados à frente dos homens. Os três sabiam muito bem o que era esperado de cada um deles.
Romano depositou a pasta sobre a mesa, endireitou as costas e deu dois passos para o lado. A nova chefe de apoio e coordenação das equipes, Leona Vargas (ex-assistente do contra-almirante retirado Carvalho Pinto), aproveitou a deixa para se aproximar da tela, onde a imagem projetada pelo home theater tremeu ligeiramente . Ela apontou a vareta para a tela. No pequeno auditório, os militares aguardaram em silêncio.
-Aqui, aqui e aqui – ela foi apontando para os locais onde estavam os focos de incêndio, de acordo com o relatório do Exército, fornecido pelos seus guerreiros da selva. – Os soldados do COAS categoria A conseguiram retirar algumas tribos que corriam risco de vida, e ajudaram a salvar os animais mais próximos aos focos. No entanto, com a multiplicação dos focos, o chefe do EMCFA¹ ordenou a constituição de uma força tarefa, a cargo da cúpula das três Armadas. No caso da Marinha, o almirantado escolheu os atobás.
-Nesse meio tempo, - interrompeu Romano - para piorar a situação, um grupo de missionários desapareceu.
-Nessa área - Leona ampliou a imagem mostrada na tela e desenhou um círculo no local, onde havia algumas cabanas em meio à mata.
Romano levantou a cabeça e tornou a encarar seus homens. O impacto do seu olhar fez alguns dos mais jovens engolirem em seco.
-O Centro de Inteligência da Marinha acredita que foi o clássico caso do "lugar errado na hora errada" - ele voltou a falar. - Os missionários cruzaram o caminho, ou flagraram os incendiários e foram mortos ou feitos reféns. De qualquer maneira – ele olhou para o mapa da Amazônia. – A vida deles não valerá um centavo, a menos, que consigamos resgatá-los e capturar os incendiários.
-Mas temos um agravante – lembrou Leona. - Se me permite, senhor...
Romano assentiu, indicando que ela fosse em frente.
-As equipes de bombeiros que estão se voluntariando em todo o Brasil para atender a Amazônia, juntamente com os bombeiros israelenses que se ofereceram, precisam obter acesso seguro à zona principal do incêndio - explicou Leona, apontando as partes mais afetadas, onde o fogo seguia descontrolado. - Aqui, aqui e aqui, nossas equipes irão se dividir para atender missões distintas dentro de uma mesma missão maior. Mas se os incendiários, que provavelmente estão por trás do sequestro dos missionários, ainda estiverem por lá... As equipes correrão sérios riscos durante o trabalho.
-A ideia é caçar os desgraçados - disse Romano, num tom sombrio. O silêncio dominou o recinto, por alguns instantes.
-Alguma dúvida até aqui? - perguntou Leona.
Salésio se remexeu na poltrona. Não gostava de missões menores dentro de missões maiores. Antes uma, e bem feita, do que várias meia-boca. Ergueu a mão.
-Pois não, comandante? - indagou Leona, na opinião de JJ, toda profissional. Ele desceu o olhar pelo corpo dela, mordendo o lábio de leve.
-Deixe-me ver se entendi - Salésio pigarreou, alheio aos pensamentos lascivos de Ulrich. - Uma equipe abre alas para os bombeiros até os focos de incêndio. Outra equipe resgata os missionários. A terceira equipe funciona como apoio das duas. Estou certo?
-Não dá spoiler, Rodrigues – comentou Nestor, com sua voz de Optimus Prime.
Uma risada baixa correu pela sala. Romano sorriu discretamente. Sentia falta dessa descontração e camaradagem.
-A situação é terrível, senhores – Leona chamou a atenção para si, com tranquilidade. – O próprio presidente pediu a intervenção dos atobás.
-E ele vai ter – murmurou Romano, imperturbável. – Agora, senhores, precisamos discutir os detalhes de nossa abordagem. Os senhores partem em menos de duas horas.
Leona permaneceu ao lado de Romano, atenta e solícita pela próxima meia hora. Era sua a responsabilidade de fazer acontecer - tudo que os soldados precisassem em termos de equipamentos e veículos de transporte. Uma vez que JJ Ulrich era responsável pela mesma tarefa, só que dentro da equipe, fatalmente os dois tinham os seus... atritos.
Isso e uma noite de bebedeira que não terminou bem.
Os dois fingiam que aquela noite não aconteceu.
JJ se virou para ela e disse, com sua habitual falta de emoção:
-Como vamos chegar lá em tempo?
Orgulhosa de seu profissionalismo, ela respondeu: - O avião está pronto e com o tanque cheio, só esperando os senhores para decolar de Porto Alegre. Os senhores embarcam para lá em uma hora, e de lá, seguem direto para a Amazônia. O navio de mar e guerra já está no litoral paraense, onde montaremos nosso centro de operações.
-Qual será nosso transporte - ele perguntou, abrupto.
-Um Super Cougar - informou Leona, escondendo a insegurança.
-Helicóptero legal, mas não vai rolar - objetou JJ. - Não cabe todos os nossos equipamentos e veículos portáteis.
-O que sugere, Ulrich? - perguntou Romano.
JJ levantou as sobrancelhas, como se fosse óbvio.
-Dois helicópteros e sem carga? -lançou a pergunta retórica, num tom irritado. - Eu diria que o ideal é um C-23, mas como são duas equipes e mais os fardos... Tem que ser um C-130, no mínimo.
Leona balançou a cabeça, já antevendo o seu pesadelo logístico. O Short C-23 Sherpa era uma nave de transporte militar média, utilizada em missões de apoio especialmente destinada a suprir as forças especiais que atuavam na fronteira (PEF), e na Amazônia. Já era difícil de conseguir, pois ela teria que articular com alguém do Exército, o qual detinha tais aeronaves. Agora, imagina conseguir disponível um Lockheed Hercules C-130! Ela teria que arrumar um contato na Força Aérea... Mas se era uma ordem presidencial, as forças armadas iriam colaborar entre si... Não iriam?
Se fossem os helicópteros, seria mais fácil de articular o transporte e o próprio voo. Caso contrário, ela também teria que esquecer o itinerário traçado, as permissões das torres de controle de tráfego aéreo, e recomeçar do zero, em menos de uma hora.
Estavam num impasse.
Leona e JJ olharam para Salésio e Romano, alternadamente, esperando a decisão. Salésio até acharia engraçado, se a questão não fosse séria. JJ tinha uma expressão concentrada e obstinada. Leona tinha uma expressão de expectativa resignada.
-Ulrich está certo, Vargas - Salésio argumentou. - Por favor, providencie junto à Aeronáutica. Aproveite que eles devem estar programando o voo de Hercules para o combate ao fogo, por lá. Nós podemos ir de carona.
-É só, Vargas – disse Romano, dirigindo-se a ela. – Você ouviu atentamente e agora está liberada a fim de providenciar tudo.
Ela assentiu, bateu continência e se virou para sair.
-Vai com a gente, não vai? – indagou Ulrich, de repente.
Ela parou de andar, com a mão na maçaneta. Olhou confusa para Romano.
-É uma questão válida – este argumentou, esperando a opinião de Salésio, que concordou com um aceno. – Pode ser que uma das equipes precise improvisar e acho que você deve estar na sala de guerra para qualquer eventualidade.
Ela olhou de volta para Ulrich. Por essa, não esperava. A expressão dele era ilegível. Nunca dava para saber o que se passava naquela mente maquiavélica. Leona apenas assentiu e foi embora, sem ter certeza se se sentia lisonjeada ou furiosa. Afinal, aquela era a grande oportunidade de participar ativamente das missões dos atobás.
Ao chegar na sala de comando, Leona começou a remexer freneticamente nas gavetas e sobre os consoles, coletando tudo que julgava ser necessário, que viesse a precisar durante a missão: o computador por satélite, cabos, fones, rádios, o telefone por satélite... Ela ainda precisava entrar em contato com a torre de controle aéreo da Serra Catarinense, na região de São Longino do Sul, caso o voo saísse do sul do país. Caso contrário, ela...
Alguém parou na porta, interrompendo o seu checklist mental.
-O que tá pegando, Leona? - era a voz de Savannah, a piloto e líder da equipe Charlie.
-O que tá pegando...? - ela repetiu, revirando os olhos. Se fosse proferida por outra pessoa que não a sua melhor amiga, ela já teria descascado o verbo na pessoa, mas era Savannah... Sendo assim, apenas respondeu: - Ulrich fez uma pergunta válida, foi isso o que aconteceu... E por causa disso, o contra-almirante decidiu que me quer na sala de guerra, a bordo do navio. Ou seja, estou dentro da missão.
Savannah escondeu um sorriso.
-Sei...
-O que você sabe? – indagou Leona, virando-se para a amiga numa atitude combativa. Savannah ergueu as mãos em posição de rendição.
-Você e JJ parecem ter... alguma coisa.
Alguma coisa? Leona quase riu. Eles tiveram uma noite e tanto... Depois concordaram que foi um tremendo erro. Ulrich era um homem fechado, devotado à filha pequena.
A história era longa demais e poucos sabiam dela. Apesar de Savannah ser sua amiga, a história não era dela, para contar. Somente Ulrich poderia fazê-lo. Se soubesse que Leona descobriu tudo, fuçando na ficha dele... Talvez nunca a perdoasse.
Enquanto esteve no BOPE, Ulrich foi o terror das favelas. Trabalhava geralmente à frente do grupo de assalto. Conhecido como o Sombra da Morte, ele entrava e saía sem ser pego. Sem deixar rastro. Escolhia os locais onde se entrincheirava e abatia os alvos a distâncias inacreditáveis. Eliminou vários bandidos poderosos, colecionando inimigos ardilosos.
Fora eleito um dos dez melhores snipers do continente americano.
Um dia, sua identidade misteriosamente vazou. A informação foi encomendada e paga a peso de ouro para alguém de dentro da Secretaria de Segurança Pública - um contato do tráfico - a pedido de um bandido em particular, chefão do norte. De posse da informação, o bandido em questão descobriu a localização e invadiu a casa de JJ; matou sua esposa da pior forma possível e levou a garotinha, Angélica, como refém.
O que o chefão do tráfico não esperava, era a fúria que viria atrás dele, destruindo seus negócios, matando seus homens... Todos os demais traficantes tiraram o corpo fora e não o ajudaram. Não queriam enfrentar o BOPE, que estava subindo morro por morro no seu rastro. Mas o único que tinha condições de rastreá-lo de forma sorrateira e eficiente era JJ Ulrich.
Foi o que ele fez.
Caçou o chefão nos confins da favela do Alemão. Matou todos os capangas em seu caminho e deixou ele por último. JJ se demorou em concluir o serviço, tratando de infligir todas as dores que ele causou a sua esposa.
Dizem que foi impossível falar com JJ nos dias que se seguiram. Parecia uma fera enjaulada. A única coisa que o fez voltar a si foi quando a psicóloga do pelotão lhe disse que a filha precisava dele. E ele então retomou a consciência para assumir sua responsabilidade de pai.
Sem saber como as informações vazaram e pela segurança de Angélica, ele decidiu deixar o BOPE.
Durante três anos, JJ mergulhou no inferno da depressão, abalado até a alma pela morte da esposa. Um belo dia, recebeu o convite de treinar uma equipe das forças especiais da Marinha, na arte do combate corpo a corpo. Ele aceitou a oportunidade e voltou a se sentir vivo e útil.
O curso foi um sucesso tão grande, que o então capitão Romano Bruggman convidou-o a entrar para as forças especiais. Obviamente, JJ teria que passar pela seleção, como todo mundo.
O que o fez com a mão nas costas, Leona se lembra muito bem. Ela estava lá.
---
Agora, ele vinha com aquela interação estranha no ambiente de trabalho... Que reviravolta! O que estava acontecendo com o sujeito? Não comentava suas postagens de facebook, apenas curtia uma ou outra, no máximo duas por ano... Durante as missões, nunca falava com ela, nem lhe dirigia um olhar. E agora, só porque transaram...
Bem, defina "transaram", para começo de conversa...
Ela devia ter imaginado que os dois ficariam mais próximos quando seus trabalhos em comum convergissem. Ela só esperava que a transa de uma noite não interferisse na trajetória que ambos tiveram juntos desde o treinamento. Não havia intimidade, mas havia respeito. E o fato de JJ ter requerido sua presença durante a ação...
Diante da responsabilidade, Leona sorriu. Aquela iria ser a primeira vez que ela faria parte de uma missão dos atobás... Não in loco, mas, definitivamente, em tempo real! Estava saindo da retaguarda e pulando para a vanguarda. Restava a pergunta: Por que JJ a queria lá? Para ver ela fazer algo errado?
Não, ela respirou fundo, reconhecendo que estava sendo além de irracional, injusta. Ele só estava sendo correto. Leona galgou a hierarquia operacional, tornou-se a melhor em termos de recursos. JJ só queria garantir que teriam o melhor apoio, enquanto estivessem em campo.
E ela daria o seu melhor para que os rapazes fossem e voltassem em segurança. Até onde dependesse dela...
-Savannah, preciso que a equipe Charlie se prepare para realizar o reconhecimento - ela se lembrou de dizer, antes que a amiga fosse embora. - O contra-almirante quer vocês na sala de reuniões antes do embarque.
A outra bateu continência e partiu.
Tirando o cabelo do rosto, Leona correu para pegar sua mochila com os itens pessoais, que sempre deixava a postos para uma viagem de emergência, como aquela. A mochila ficava lá, no armário, semana após semana, mês após mês... Ela apenas atualizava, limpava e arrumava... Finalmente, iria utilizá-la.
Tratou de espantar as preocupações que ameavam distraí-la do que realmente interessa.
---
Nota de Rodapé:
1 - Tenente-brigadeiro do ar Costa e Ramos, personagem fictício que atua como chefe da EMCFA - Estado Maior Conjunto das Forças Armadas. Órgão do Ministério da Defesa do Brasil, o qual centraliza os comandos das Forças Armadas: Marinha, Exército e Aeronáutica, por força da lei complementar nº 136, de 25 de agosto de 2010.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top