Um

— Você ainda vai se arrepender de não ter comido nada no banquete — Haru cruza os braços ao demonstrar toda a sua insatisfação. 

Não posso evitar, meus olhos se reviram sozinhos. Nunca fui de aguentar nenhum desaforo calada, mas ao longo dos anos aprendi que discutir com uma das gêmeas sempre me trazia dor de cabeça, e pior, colocava um sorriso vitorioso no rosto das duas sempre que conseguiam me irritar.

Ambas as membras da minha guarda tinham por hobby me aporrinhar sempre que possível, e geralmente quando estavam entediadas.  Talvez a única coisa boa que pude tirar proveito de nossas relações conturbadas, foi a habilidade que adquiri de lutar como elas. Fora isso, ambas eram insuportáveis, principalmente Heiru.

— Vai ver foi melhor assim — Ritzu parece discordar — Não queria estar por perto quando ela começasse a vomitar.

Haru ri como se tivesse ouvido a coisa mais engraçada do mundo.

Idiotas, a prevenção para evitar enjoos durante uma longa viagem era se entupir de comida e não o contrário. Não havia porque me incomodar, não havia porque dar esse gostinho a elas, mas eu não resisto.

— Se pedirem perdão agora eu posso até pensar em poupá-las de jogá-las de um penhasco quando eu for rainha. — continuo a olhar pelos frestas da janela.

As duas mulheres arregalam os olhos na minha direção, e em seguida trocam olhares. Haru e Ritzu começam a gargalhar com tanto empenho que a carruagem inteira sacode.

Respiro fundo e continuo a olhar pelos furinhos da janela de madeira. Realmente, o único momento em que não eram irritantes era quando estávamos lutando. Era "esportivo", é claro, mas eu nunca dispensava a oportunidade de poder chutar a cara de uma.

— Está fazendo piadas agora? — Ritzu pergunta ainda rindo — Espero que esse rei tenha senso de humor.

— É claro que ele tem senso de humor — Haru nunca perdia a oportunidade — Escolheu ela dentre todas as pretendentes que poderia ter no norte.

Um sorriso mínimo surge no meu rosto. Vê-las tão felizes geralmente não me causava tanto mal estar, mas agora já chega. Sem pensar muito, eu faço a coisa mais óbvio que podia no momento. Abro a porta da carruagem e me atiro para fora.

Assim que meus pés tocam o chão preciso manter a velocidade ao saltar, e a cambalhota acontece naturalmente. O impacto no chão duro e rachado do deserto deixariam minha pele cheia de arranhões se eu não soubesse aterrissar. Quase me arrependo imediatamente de ter pulado, a brisa quente enche meus pulmões e respirar é uma tortura. Para piorar, a luz forte e o calor escaldante me fazem ficar nauseada de verdade.

A carruagem para há poucos metros de onde estou. A comitiva que vinha logo atrás forma um círculo ao meu redor, todos prontos para interceptar qualquer tentativa de fuga. Não que eu realmente estivesse pensando nisso, não que houvesse lugar para onde eu pudesse fugir.

Haru e Ritzu descem do veículo com expressões furiosas, ambas portam as lanças nas costas mas ainda não fazem menção de usá-las. Suas armaduras de bronze polido brilham tanto à luz do sol que me cegam por um momento.

— Você perdeu a porra da noção? — Ritzu vocifera.

— Sua filha de Rlon'thôr — Haru vem logo atrás.

Um sorriso brota no meu rosto. Não havia nada que minhas guardiãs odiassem mais do que terem trabalho.

— Mil desculpas, queridas — finjo estar arrependida — Era isso ou vomitar em vocês. 

Haru parte para cima de mim mas sua irmã avança na frente dela e a impede. It'xmu, o chefe da guarda real e superior comandante das duas havia descido de sua montaria e estava vindo em nossa direção. Me atacar quando estávamos nós três sozinhas era uma coisa, na frente dele, jamais ousariam.

— O que em nome de Zuän'thôr está acontecendo aqui? — o comandante questiona.

As duas engolem em seco, ao se depararem com o comandante. It'xmu tem quase dois metros, pele tão escura e bronzeada quanto a de todos em Náutila e uma barba longa. Neste momento minhas guardiãs parecem duas crianças que acabaram de fazer besteira e estavam prestes a levar uma bronca. Haru deu um passo à frente para se explicar:

— Nilō'than não se sentiu bem, precisou de um pouco de ar e nós deixamos que ela saísse. 

— Deixaram que ela se jogasse da carruagem em movimento, que tipo de guardiãs vocês são? — ele ergue a voz impaciente — Ajudem a princesa a se limpar e voltem já para dentro, quero chegar a fronteira antes do pôr-do-sol.

O comandante se vai e deixa as duas guardiãs me olhando de cara feia. Elas se aproximam e começam a sacudir a terra do meu cabelo e tirar a poeira do meu vestido com batidinhas nada gentis.

— AI! — reclamo com Haru.

A mulher arregala os olhos e olha na direção do comandante, com receio de que ele ou outro guardião superior tivesse ouvido. Não importava se eu havia me machucado por acidente ou de propósito, qualquer arranhão que eu pudesse ter seria culpa delas. O castigo seria dez vezes pior do que o meu ferimento.

Dou uma risadinha ao vê-la tão nervosa, eu sentiria falta disso e tinha que aproveitar a liberdade que me restava. Ainda faltava muito para chegar perto do destino, e o comandante It'xmu só nos levaria até a fronteira do deserto de Náutila. A terra em que pisamos agora ainda era território do meu país, mas há alguns quilômetros a frente estavam caminhos desconhecidos

Comerciantes chegavam por esses lados vez ou outra, mas era muito raro. Até nós chegavam histórias sobre bárbaros que dormiam com a cabeça em cima de pedras e resolviam seus conflitos com lutas sangrentas até a morte. Não sei até que ponto são verdade, mas nem a história mais tenebrosa sobre o norte poderia me assustar tanto quanto a possibilidade de me casar com um velho bárbaro que me usaria para gerar seus herdeiros e me descartar em alguma vala congelada.

A verdade é que eu queria adiar o momento, mas não havia para onde fugir. Já estamos há horas atravessando o deserto e nem sinal da fronteira prometida, mas segundo os guardiões que nos acompanhavam, estava próxima.

Volto para a carruagem sem esperar por elas, mas elas me seguem sem me dar espaço para subir sozinha. Haru abre a porta enquanto Ritzu me oferece a mão para ajudar a subir.

Ao fechar a porta, longe dos olhos de todos, Haru tenta me agredir. Aqui dentro, sem provas, eu não podia acusá-la de nada desde que não houvessem marcas, cortes ou cicatrizes. No entanto, sua irmã segura seu pulso.  

— Deixe — Ritzu intervêm — Ela precisa usar o comandante para nos intimidar pois não consegue por si mesma, está desesperada e sabe que o poder dela está com os dias contados.

Cruzo as pernas e volto a olhar para a janela. Ao menos havia silêncio agora.


Haru e Ritzu

Notas explicativas:

1.* "Thôr" e "than" são sufixos de tratamento na língua Náutila e usados para se referir a divindades ou a realeza. Basicamente seria como dizer "vossa magnificência" para deuses ao utilizar "thôr" e "vossa alteza" ao utilizar "than".

Os nomes dos deuses citados neste capítulo são Rlon e Zuän respectivamente, e Rlon'thor e Zuän'thor são formas respeitosas de se referir a eles.

Rlon: Deus das coisas sem valor.
Zuän: Deusa protetora de Náutila. 

2.* O nome da protagonista é pronunciado Nilo, mas ao se referir a ela de forma apropriada os nativos de Náutila a tratam por Nilō'than. Dizer "vossa alteza" ou "princesa Nilō'than", por exemplo, seria algo redundante.

3.* Obs.: todos os nomes de Náutila são unissex, e nesta cultura não há distinção entre nomes masculinos ou femininos.


O que está achando da história?

Comentários, dúvidas, críticas, elogios ou opiniões são sempre bem-vindos! ❤️

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top