Capítulo 5 - Sob o céu de Cabul (Derek)

Dois anos depois... 

O jogo começou.

Prendi a alça do rifle no ombro e, então, ajustei a mira delicadamente.

Eu estava de vigília sobre o telhado de um prédio, o qual, os cristãos em ação¹ escolheram para que nós realizássemos o trabalho. Não, eu não me considero umatirador de elite de carreira. Fiz um curso de atirador, oferecido pela escola de atiradores de elite dos SEALs².Tomei gosto pela coisa, mas não curto ficar muito tempo em trabalho furtivo, parado, por vezes, usando um dos uniformes de amarração³ que a gente aprende a confeccionar, como parte do equipamento de camuflagem... Gosto mais de realizar as outras etapas das ações diretas: comandar um salto, ser o homem da corda... Contudo, do treinamento da escola de atiradores de elite, o que mais gostei foi aprender a atuar como um batedor. E eu me tornei um! Modéstia a parte, dos bons! Fui agregando novas idéias ao que eu aprendia e desenvolvi, ou customizei o meu equipamento para que melhor atendesse aos nossos objetivos, durante as missões. A idéia era prevenir e ser eficiente em qualquer tipo de situação imaginável.

Rodapés:

[1] Apelido atribuído ao pessoal da CIA, parafraseando a "Central Intelligence Agency", com "Cristian in action".

[2] O melhor que havia era o curso para batedores e atiradores de elite dos fuzileiros navais, em Fort Bragg. Os SEALs que desejavam seguir a carreira de atirador de elite, normalmente faziam este. Mas, havia a escola de atiradores dos próprios SEALs, o qual, também é um bom curso.

[3] Roupa de cobertura, confeccionada pelo próprio atirador para que se misture à vegetação ou ao ambiente no qual pretende realizar a espreita. Os snipers produziam vários tipos de uniformes para se misturarem a diferentes ambientes, tais como: deserto, neve, mata, etc... A máscara no rosto também fazia parte. O candidato devia aprender a pintar o rosto de modo que dificultasse a sua identificação por parte do alvo, ou dos inimigos.

Foi assim que me elegeram o cara dos telhados, organizando o assalto via aérea e abrindo caminho pros meus companheiros.

Com exceção da escada e do martelo, que geralmente são carregados pelos novatos, não existia tarefa mais ou menos importante, dentro de uma equipe de SEALs. O que importava era ser útil, em quaisquer atividades em que eu fosse necessário. Por isso, eu me enfiei em vários cursos que apareciam durante o estado de prontidão, nas minhas folgas, e nos intervalos das missões. Os cursos para os quais nos enviavam eram os melhores, oferecidos pelos melhores. O de atirador de elite me foi útil para que pudesse realizar a tarefa que, agora, eu havia sido requisitado para desempenhar.

E lá estava eu, sob o céu noturno de Cabul.

O Exército havia criado uma zona-tampão naquela parte da cidade, e os SEALs foram mobilizados para ajudar com a cobertura. Assim, eu estava atirador, na insuficiência de mão de obra. Eu explico: todos os atiradores SEALs e do Delta Force, estacionados em Cabul, encontravam-se neste exato instante espalhados pelos demais prédios, ao longo da mesma rua que eu. Todos em dupla, revezando-se nas posições de atirador e olheiro. Entretanto, o operacional não previu que acabaria faltando um atirador para cobrir o último bloco do trajeto - por onde estava prevista a passagem do comboio da ONU. O comandante precisava de pelo menos alguém com experiência para revezar com o atirador de elite designado pela Delta.

Eu me ofereci, na boa. Delta e UDT¹ eram unidades co-irmãs, competitivas e rivais, mas nunca em se tratando da segurança nacional ou da execução de uma missão.

Rodapé:

[1] Título dos times precursores dos SEALs. 

Lá estava eu, empoleirado naquele telhado, dando uma força pro atirador Delta que ficou sozinho. Não muito longe dali, no outro prédio, estava o meu parceiro de pelotão, Jay Constanza. Ele é um dos nossos melhores snipers; detém o recorde invejável de tiro à distância – uma de suas balas viajou cerca de três quilômetros e setecentos metros, e levou onze segundos e meio para atingir o alvo. Jay também possuía o recorde de alvos abatidos.

Um recorde estacionado, desde que o Tio Sam iniciou a retirada das tropas. Mas não era por isso que os alvos tornaram-se menos perigosos. Cada vez mais, os insurgentes desenvolviam formas de infernizar a população de bem, o governo, e as forças de pacificação.

A gente não podia dar mole pra terrorista.

De repente, flagrei dois tangos¹ tentando plantar uma bomba no muro da casa que os Rangers ocupavam, desde ontem. Disparei no centro de massa de cada um e... Bang-bang! Derrubei os dois.

-Eu te odeio – resmungou Wes, por debaixo do boné que lhe cobria o rosto.

Wes era o atirador Delta que eu estava rendendo. Ele passou o dia inteiro sem uma mosca pra acertar. Eu mal assumi o rifle e já tinha derrubado dois bandidos.

-Agradeça – eu devolvi, sem tirar o olho da mira. –E vê se dorme, cacete!

Deitado, imóvel, no colchão encostado num canto estratégico, não demorou muito para Wes começar a roncar. E quando começou... Deus! Não sei como a esposa dele aguentava! Parecia um caminhão com o motor fundido.

Dei uma olhada no relógio. A troca seria feita em duas horas. Pelo menos é o que me disseram. O comando pretendia deslocar um atirador do leste para reforçar o nosso contingente.

Rodapé:

[1] - Tango é um codinome para o alvo, inimigo a ser atingido. No caso, ali, dois insurgentes.

Olhei pelo visor, avaliando os transeuntes àquela hora. Aprendi um macete... Quando as pessoas começavam a desaparecer das ruas - assim, de supetão, era porque os insurgentes estavam para aprontar alguma coisa. O povo sempre sabia antes da Inteligência e dava um jeito de se escafeder.

Claro que o povo tinha que estar antenado. A maioria das famílias afegãs possuía algum insurgente envolvido nos ataques às tropas. Eles não iriam se voltar contra eles, seus parentes de sangue, muito menos dedurá-los. Os laços de sangue eram um negócio muito sério para as tribos, por aqui. E era por isso que ficava tão difícil convencer os anciões a aderirem aos programas de ajuda humanitária, de saúde e educação, que a coalizão oferecia, liderada pelos Estados Unidos.

Além do parentesco, os insurgentes se misturavam ao povo. A tendência seria passar o rodo em tudo que tivesse conexão com esses selvagens filhos da puta. Por isso, precisávamos das regras de engajamento. Para não tornar a nossa estada aqui - neste inferno poeirento – um banho de sangue ao estilo do Velho Oeste.

Bom... Eu concordava com as regras por um lado, mas discordava veementemente, por outro. A guerra tinha efeitos colaterais. É ingenuidade acreditar que podemos "disciplinar" ou tornar a guerra algo "civilizado". Porque, para começo de conversa, nossos inimigos não são nada civilizados. Não hesitariam em cortar nossas gargantas, na primeira oportunidade que tivessem. Mas lá, no coração da América, longe do perigo, as pessoas eram incapazes de imaginar como as coisas aconteciam por aqui. A não ser as famílias cujos filhos tombaram em combate, protegendo nossa amada pátria. Talvez as famílias tivessem um vislumbre, pela dor da perda.

Dentre nós, havia quem reclamasse das regras, dizendo que foram feitas para tirar o cu dos políticos da reta... Ou porque esses mesmos políticos - e os jornalistas também - viviam em seu mundinho seguro (seguro porque nós o mantemos assim); portanto, são incapazes de entender como a guerra funciona. Eles nos crucificam sem piedade.

Daí, eu tenho que concordar com quem critica as regras. Não existe honra na guerra. Especialmente por parte de criaturas que nos odeiam tanto a ponto de usar todos os meios possíveis e imagináveis para nos destruir. Criaturas cheias de ódio que não desistem jamais. A não ser que estejam mortas. Criaturas que desejam estender o seu domínio por todo o mundo ocidental.

Temos que impedir isso.

Portanto, se os políticos e os jornalistas quiserem exercitar o seu humanitarismo oportunista, para se promover na mídia, que venham lutar esta guerra. Eu seria um que recolheria as minhas armas e alegremente embarcaria no primeiro avião de volta para a minha casa.

Ainda sobre as regras de engajamento, ou regras de conduta, uma pequena parte de mim concordava que o povo não tinha culpa do que faziam os malucos misturados entre eles. Havia gente de bem; que não nos odiava tanto assim, mas estes eram uma minoria querendo apenas viver a sua vida, trabalhar e ser feliz. Os terroristas oprimiam o próprio povo para subjugá-lo e obrigá-lo a fazer valer a sua lei. A lei da selvageria. Era por isso que nós os chamávamos de selvagens. (Capazes de se esconder atrás de suas mulheres e crianças, atando-as a poderosas bombas caseiras para serem explodidas em cima de nós).

Enquanto avaliava atentamente as pessoas que passavam pela rua, eu me perguntava se alguma delas oferecia perigo à posição que eu estava protegendo. Será que escondiam coletes com explosivos por baixo de suas mantas, ou, quem sabe, um lança-rojão? Qualquer um ali era um terrorista, em potencial. Ficava difícil para o soldado discernir essas coisas em questão de segundos. Segundos que poderiam levar à morte – a sua ou a dos seus companheiros.

Não obstante, nós, os SEALs, éramos muito bem treinados para reagir rápido e fazer essa distinção.

Com um suspiro, limpei o suor da testa e levantei os olhos para o céu sem nuvens de Cabul... A lua cheia e majestosa irradiava o reflexo do sol do outro lado do planeta. Parecia incendiada... Uma verdadeira lua de fogo.

Num impulso, peguei o meu celular, enquadrei a lua e bati uma foto para enviar a Lara, mais tarde. Meu celular estava propositalmente sem funções agora. Eu teria que usar o computador da base para enviar a foto... Nós dois não nos falávamos desde que esta operação teve início.

Bem, Lara sabia que isso poderia acontecer. Ela entendia as exigências da minha profissão.

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Rodapé:

[2] As regras de engajamento, ou regras de conduta, existem em todas as forças militares. Contudo, são aperfeiçoadas, conforme os acontecimentos. Basicamente, elas foram criadas para determinar quando e como a força militar deverá ser empregada. No caso de intervenção no Afeganistão, tais regras foram definidas, entre outras coisas, para determinar como e quando os militares podem atacar o inimigo, a fim de evitar, ao máximo, que civis inocentes sejam atingidos, ou colhidos em meio ao confronto. Apenas diante de uma ameaça comprovada, o militar pode atirar contra os inimigos. No entanto, há aspectos práticos dessas regras que limitam tanto a atuação, que normalmente o soldado precisa levar um tiro primeiro, para só então poder se defender. Normalmente, os soldados relatam que os terroristas usam as regras de engajamento da ONU e dos americanos, contra os próprios, durante um confronto armado. E especialmente, ao prepararem emboscadas para as tropas. Ainda hoje, os soldados de diferentes países retornam de lá em caixões.

Nós nos conhecemos no Instagram, num verdadeiro acaso (se bem que, hoje, eu acredito que está mais para ocaso). @Lara_de_bem_ apareceu do nada. Caiu de pára-quedas na minha vida, tipo "cheguei chegando", com aquela foto de gatinho fofo para constranger os caras. Detalhe: o dito gato tinha um laçarote cor de rosa na cabeça. Eu fiquei intrigado, querendo saber o que a Penélope Charmosa estava fazendo desfilando pelas comunidades militares.

Lembro-me vagamente de que ela comentou algo, na foto de alguém que nós dois seguíamos. Por meu turno, eu comentei em cima do comentário dela. E logo estávamos procurando/acompanhando os comentários, um do outro. Eu solicitei para segui-la e ela fez o mesmo. Logo, estávamos batendo altos papos via direct.

Isso foi acerca de dois anos... Mas funcionava perfeitamente, por mais incrível que pudesse parecer (entre duas pessoas vivendo em continentes diferentes.) Lara não queria namorar. Eu também não tinha como me envolver seriamente com ninguém. Só sexo casual, mesmo.

Sabe qual é a taxa de divórcio entre os SEALs? Altíssima!

Normalmente, não daria certo... Simplesmente, não daria. Um relacionamento de amizade à distância, porém, era o ideal pra nós dois. Assim, a gente evitava todo o estresse que um relacionamento pessoal envolvia.

Não estávamos procurando esse tipo de complicação amorosa. Eu não fazia o tipo meloso. E ela... Bem, ela teve um único envolvimento na vida. O babaca foi abusivo. Ele a estuprava. E levou anos para Lara entender que aquilo que ele fazia com ela era estupro, e não amor. A família do cara também era horrível.

Lara mergulhou no fundo do poço e, depois, conseguiu se reinventar. E era isso que eu mais admirava nela. Era isso que eu amava nela.

Sim, amor. Um amor que gente de fora não entenderia, mas que - eu repito - pra nós dois funcionou desde o princípio. Nós nos tornamos inseparáveis, dentro do tempo que dispúnhamos...

É difícil de explicar o tipo de atração que eu sentia por Lara. Como se nossas mentes estivessem conectadas. Meus pensamentos voavam na sua direção, constantemente. E isso foi logo que me deparei com os primeiros comentários, na comunidade.

Como se eu já a conhecesse de longa data.

Minha mente vagava em torno das suas palavras, e eu fiquei curioso para saber como a mente por trás delas funcionava. No início, isso me deu um medo danado. Ter sentimentos tão fortes assim, por alguém que eu nunca vi, no mínimo, era estranho... E por essa razão, escondi nosso relacionamento até dos meus companheiros de equipe.

Minha família sabia que eu tinha uma amiga, tipo secreta, mas não conhecia os detalhes. Eu não queria que meu pai estendesse suas garras sobre mais isso, na minha vida. Ele tinha mania de controlar tudo e todos ao seu redor. Quanto à família de Lara, bem, ela não tinha ninguém...

A não ser, eu.

Sim, ela me possuía, completa e irrevogavelmente.

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Lara costumava publicar fotos de sua gata, das paisagens em torno do lugar em que morava, e até dos animais que cruzavam o seu caminho. Costumava escrever numa plataforma de livros virtuais. Ela considerava seu trabalho amador, mas acho que escrever a ajudava a extravasar as emoções.

Comecei a ler os seus livros. Eram romances... Justamente um gênero que eu não curtia. Aliás, acho até que era alérgico a esse tipo de literatura. Mas aquela forte e misteriosa atração me fazia querer entender como a mente dela funcionava. Eu jogava trechos dos seus livros no Google tradutor e tinha uma boa ideia do contexto dos enredos.

Foi assim que eu aprendi os rudimentos do português.

Eu achava os romances de Lara um tanto que... melosos. Tipo aqueles livros de mulherzinha de antigamente. Tomava o maior cuidado para os meus companheiros não me flagrarem lendo aquilo... Do contrário, era melhor deixar a corporação ou matar todas as testemunhas.

Eu dava a minha opinião nos capítulos que ela postava lá, e Lara gostava de ler as minhas opiniões. Gostava tanto que eu tomava o maior cuidado para não ofendê-la, nem desmotivá-la. Eu procurava ressaltar os pontos que acreditava serem os fortes, no seu trabalho, como a forma em que ela conseguia envolver o leitor na história de vida das personagens; a forma como ela conciliava coisas impossíveis com a realidade. Ela conseguia tornar o incrível, crível.

Lara prestava atenção aos comentários de cada leitor. Dizia que os meus eram um diferencial em relação à opinião das leitoras mulheres, as quais eram a maioria. Enquanto a mulherada se derretia toda pras peripécias "calientes" dos personagens, eu dava um jeito de avaliar a narrativa e a descrição de cenários. Fazia algumas correções, quando via algo que eu tinha conhecimento. E ria pra caramba, lendo os comentários das menininhas de 13 anos gamadas nos caras - mais ligadas neles, do que na história em si.

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O nosso combinado era simples: ela não sabia como eu era e eu não sabia como ela era. Nós não costumávamos expor nossas fotos pessoais. Se eu postava alguma coisa, era sem mostrar o rosto. Lara nem colocava fotos lá.

Não sei como isso foi acontecer... Na verdade, eu sei, sim. Por um lado, eu não podia me expor na internet. Sou um SEAL. Meu rosto fica sempre preservado em qualquer foto, seja na corporação, seja na vida civil. No caso dela, por causa do relacionamento abusivo do passado, sentia a necessidade de se preservar diante dos possíveis malucos da internet.

Naturalmente, alguém diria que isso é conversa fiada. Daí entrava o outro lado da explicação: demoramos demais para fazer algo a respeito de nossas identidades pessoais. A expectativa cresceu tanto que corríamos o risco de a realidade não corresponder à imaginação. Já pensou no tamanho da decepção? O nosso lance era tão especial. Tão "libertador" - por falta de uma definição melhor... Nós dois tínhamos medo de perder tudo isso, se víssemos o rosto um do outro.

Se a gente se visse, tornava a coisa toda real. A magia escoava pelo ralo.

E eu não queria perder a magia.

O fato de ser um militar, casado com a Marinha dos Estados Unidos, me fazia reconhecer o quanto os nossos momentos eram preciosos. "O pouco com Deus é muito", costumava dizer Lara. Corríamos o risco de perder tudo, caso déssemos o fatídico passo adiante.

No entanto, algo estava me incomodando de uns tempos para cá...

Todos esses argumentos já não eram mais suficientes para mim. Continuavam sendo para Lara. Só que eu... Bem, eu estava começando a querer mais. Sim, eu queria arriscar – e dar o passo adiante.

Precisava encontrar um jeito de colocar isso pra ela, só que esse não era um assunto pra gente tratar levianamente. Quando eu estivesse saindo de um desdobramento, ou do estado de prontidão, daí, teria um pouco de tempo e paz de espírito para pensar em como lidar com o assunto.

Ouso dizer que o nosso relacionamento era mais profundo do que de marido e mulher, embora fosse platônico. Eu aprendi português lendo os textos dela, mas com o propósito de obter uma interação melhor. (Meus companheiros sacaram que algo estava rolando e começaram a me azucrinar para descobrir a razão... Nem sei como mantive o segredo).

Lara, por sua vez, começou a treinar o seu inglês comigo. E eu me tornei um professor bem cruel, diga-se de passagem. Eu fazia o BUD/s da aula de inglês. Pelo menos agora ela estava craque na escrita... Já podia até escrever seus romances em inglês.

Eu torcia pra que ela escrevesse. Ângela estava estagiando numa editora e poderia dar uma olhadinha. Mencionei isso, certa vez, mas Lara não quis... Ela achava que seus livros não eram bons o bastante para uma editora. Quanto mais, uma editora americana. Na minha cabeça, ela só não estava pronta, ainda.

Meu próximo movimento, como parte do meu plano de "dar o passo adiante", era convencê-la a deixar que lhe ensinasse a conversação. Para que isso dê certo, a gente precisaria conversar pelo direct, whatsapp ou até mesmo pelo Skype. Essa parte seria a mais difícil...

Pensando em tudo isso, guardei o celular e reposicionei o rifle.

De repente, avistei dois dos meus irmãos, escorando-se às paredes dos prédios, como reza o treinamento. Eles usavam lenços de identificação, para que eu não atirasse neles... Só que, veja bem, como poderia eu confundir aquele uniforme com qualquer outra coisa? Okay, treinamento é treinamento! Protocolo é protocolo. E a gente segue o ambos à risca. Quer dizer, nem sempre...

Logo, identifiquei quem era um dos caras: o meu líder de equipe. O outro, então, muito provavelmente, era o novo atirador. Eles estavam adiantados em duas horas.

Baixei a mira, franzindo a testa.

Os dois subiram pelo prédio. Ouvi os passos nos degraus precários de madeira, enquanto eu colocava o rifle de precisão no meu apoiador improvisado (uma caixa de televisão velha). Sentei nos calcanhares e me virei a tempo de vê-los surgir pelo vão escuro da porta. O primeiro a entrar no terraço foi Spencer Tracy.

- Nahas, o senhor é aguardado no centro de operações. Pegue suas coisas.

Nesse instante, o atirador do Delta acordou e olhou de mim para o outro.

-Agora – insistiu Tracy, apontando para o cara ao lado dele. - O Suboficial Barnes irá substituí-lo.

Confuso, eu me levantei do colchonete, peguei minha mochila, a munição e o rifle, que era emprestado de um cara do outro pelotão (portanto, eu tinha que devolvê-lo). Segui o líder de equipe até o térreo. Andamos em silêncio pela calçada e viramos a esquina, aonde um Humvee nos aguardava sob uma marquise que, um dia, já foi de uma loja. Agora era só um monte de escombros.

-Os senhores levem o sargento até o centro de operações – disse Tracy para os ocupantes do veículo, acenando rapidamente e voltando a pé por onde viemos.

Entrei no veículo, sem uma palavra, e me ajeitei no meio dos dois caras lá dentro. O espaço era exíguo. Mal dava pra respirar sem nos espetarmos mutuamente com nossas armas e equipamentos. O veículo foi sacolejando pelas ruas de Cabul até o centro de operações, instalado numa casa grande, de dois pisos, que estava mais ou menos inteira.

Agradeci a carona, saltei do Humvee e corri para dentro, querendo acabar logo com aquele suspense. "Se eu vou ser punido, ou levar uma bronca... que seja de uma vez". Passei a viagem toda tentando adivinhar o que poderia ter feito de errado. Repassei as regras de engajamento na minha cabeça, um zilhão de vezes. Não consegui sequer cogitar o que poderia ter acontecido para ser chamado de volta, sem mais nem menos. Alcancei a sala do chefe de pelotão, com a mente em branco.

Só então me dei conta de que se fosse para levar uma bronca, Tracy já o teria feito.

-Entre, sargento – disse o chefe, quando me viu parado à porta. A sala dele era pequena. Havia uma mesa coberta de mapas, e um laptop com conexão via satélite fornecendo as imagens das tropas em tempo real; além de toda uma parafernália de comunicação.

-Estou lhe enviando de volta aos Estados Unidos.

Eu o encarei, atônito.

O olhar do chefe adquiriu um brilho malicioso, de repente, embora ele continuasse sério.(Levei um tempinho, mas aprendi a decifrar os olhares dos meus superiores.) Ele estava se divertindo com o meu desconforto.

-O senhor foi aprovado na entrevista e está sendo indicado oficialmente a compor a equipe verde... – ele fez uma pausa, esperando que eu assimilasse a notícia. –Tracy o recomendou e eu também, de modo que a sua candidatura foi endossada junto ao comando do DEVGRU. Acabei de receber a notícia de que uma das vagas no treinamento é sua.

Diante do meu silêncio atônito, ele acrescentou: - Não era isso o que sempre quis?

Eu fiquei ali, apenas olhando para ele. Por reflexo, respondi: - Sim, senhor.

-Meus parabéns, o treinamento começa em poucos dias. O senhor não tem muito tempo. Pegue suas coisas e vá para a base de Jalalabad.

-Sim, senhor.

Ele olhou para o relógio de pulso.

-O voo de volta para casa parte em duas horas. Esteja lá, ou vai ficar para trás e perder a primeira chamada. Dispensado.

Prestei continência, rígido como uma tábua; saí da sala com uma meia volta. Já no corredor, senti o impacto da notícia e comecei a correr. Meus companheiros já sabiam, porque foram me dando tapas nas costas e me parabenizando.

-É isso aí, cara! Você merece!

-Faça bonito, lá!

-Mostre a eles, por todos nós!

Até então, eu era membro da equipe 8 dos SEAL, e agora, estava me preparando para enfrentar o duro treinamento da elite da elite – o SEAL 6.

Em meio ao corre-corre, percebi que a bateria do meu smartphone acabou. Droga, eu não tinha tempo de recarregá-lo pra enviar à Lara a foto que tirei da lua de fogo, nem lhe contar a novidade. Teria de fazê-lo depois.

Empacotei as minhas coisas em tempo recorde. Deixei um recado endereçado ao dono do rifle, para que viesse pegá-lo na minha antiga gaiola; então, corri pra fora do prédio a fim de não perder a minha carona.

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