Capítulo 3 - AMESC (Lara)

A Repartição para a qual eu trabalhava chama-se Arquivo e Memória de Santa Catarina, ou, para os íntimos: AMESC. Comecei no setor de protocolo, e depois, pedi transferência para a Supervisão Avançada de Documentos. No protocolo era muito agitado, mas você não aprendia nada de novo. Exceto para onde os documentos deveriam ser enviados. Nesse sentido, eu já tinha aprendido tudo o que era possível. Não dava para ir além da repetição. Assim, sentindo que poderia contribuir mais, apresentei-me à supervisora geral, Juliana Azevedo, e lhe entreguei a minha solicitação para compor a equipe do Setor de Documentação Avançada, ou SEDAV.

O SEDAV parecia ser mais desafiador, com responsabilidades dinâmicas. Além do mais, todo mundo que eu conhecia costumava dizer que aquele setor era a elite da elite, em termos de documentação pública.

Na minha santa ingenuidade, eu não percebi que as coisas não se resolviam daquela maneira. Para um funcionário ir de um ponto A para um ponto B, ele precisava de um padrinho político. De preferência, um deputado. Se fosse um chefe graúdo dentro da própria Repartição, já seria de grande ajuda.

A supervisora, naturalmente, agiu conforme a importância da criatura sentada a sua frente. Ou seja, eu era uma "Zé-Ninguém" e fui tratada como uma "Zé-Ninguém". Se eu tinha experiência com a documentação do referido setor, se era competente, educada, instruída, leal, e prestativa... Nada disso importava, já que eu não tinha nada que lhe conviesse. Algo que servisse de moeda de troca, por assim dizer. Afinal, em nossa sociedade brasileira, tudo é movido na base da barganha.

O serviço público não era diferente.

Como a maioria dos chefes das repartições públicas, a supervisora geral estava envolvida com política. Por isso, ela não me disse diretamente um "não". Pessoas metidas com política nunca dizem "não" pra alguém. Elas enrolam... Deixam os subalternos encarregados do trabalho sujo, para não queimar o próprio filme. Assim, ao invés de me dizer "não", ela me disse que se algum de chefes setoriais me quisesse em sua equipe, eu poderia ir. Era uma decisão do chefe setorial.

Esse foi um verdadeiro "não" político.

Mas, sendo eu, uma ingênua em relação à política, tomei o contexto apresentado literalmente. Na época, achava que se alguém quisesse dizer "não", simplesmente diria "não". Fim de papo!

A resposta dela pareceu um "não"?

A mim pareceu um "talvez". Ou seja, que eu deveria me apresentar aos chefes setoriais e ver se algum deles me aceitaria em sua equipe.

Se tivesse acontecido nos dias de hoje, eu teria sacado que a longa explicação da supervisora foi a sua maneira política de me dizer um "não", porque se ela realmente quisesse me ajudar, teria chamado um dos chefes setoriais na hora e dito que eu estava me apresentando para trabalhar. Eles avaliariam o meu currículo, juntos, e fariam uma experiência comigo. Ou me diriam "não", na mesma hora. Simples, assim.

Só que a supervisora geral deixou para seus chefes setoriais resolverem e se livrarem de mim.

Como eu achava que ela estava me mandando falar com eles, foi exatamente o que eu fiz. Fui até lá e me apresentei. Dois dos supervisores setoriais sacaram a manobra da supervisora geral e me dispensaram com fria cortesia. Na terceira tentativa, porém, consegui a vaga.

A chefe setorial que me aceitou, Michaela Ritter, entendeu a minha abordagem como um sinal de que eu tinha "alguém" com poder político para me proteger; que a supervisora geral jamais teria me enviado para ser encaixada na equipe, se não tivesse.

Ela não entendeu que, na verdade, a supervisora geral esperava que ela me dispensasse em seu nome, como os outros fizeram, e nem cogitou que pudesse acontecer de outra forma... Às vezes, eu me pergunto se a chefe maior chamou a chefe menor para um "papo cabeça" e as duas decidiram que eu as tinha enganado.

Pode, uma loucura dessas?

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É meio enrolado de entender, mas as tramas e intrigas humanas são de fato rocambolescas. Tudo ocorreu da seguinte maneira: eu bati na porta da chefe setorial, Michaela Ritter, e me ofereci para trabalhar em sua equipe. Disse que conversei com a supervisora geral, Juliana Azevedo, e esta mencionou que eu deveria procurá-la. Michaela pensou que eu não teria coragem de fazê-lo, se não tivesse um padrinho político; ou se a supervisora geral não estivesse autorizando o meu ingresso. Ela não tentou esclarecer as coisas. Acolheu-me em seu setor, achando que eu era alguém importante. Deu-me atividades desafiadoras e me tratou como uma igual.

Confiante na minha competência, eu executei as tarefas com eficiência. Só que, repito, competência é o que menos importa nesse meio. O que importa é quem você conhece e quem conhece você. Eu não conhecia ninguém, portanto, fui classificada no grupo dos "Zés-Ninguéns". Ou seja, eu era uma concursada, que ingressou pelo próprio mérito, mas que não tinha nenhuma carta política na manga.

Quando Michaela conversou com Juliana e descobriu que eu não tinha padrinho político, que eu tinha simplesmente me oferecido à vaga, ela ficou furiosa. Sentiu-se enganada. (Embora não tenha sido essa a minha intenção. Eu realmente achei que se a pessoa tem um bom currículo e disposição para o trabalho, basta se apresentar e torcer para ser escolhida.) Descobri da pior maneira possível, que a pessoa jamais deve aparecer diante de um supervisor, se não tiver um padrinho político.

-Você entrou por meios ilícitos – acusou-me ela.

Eu fiquei chocada com tal alegação.

-Sou concursada e estou me apresentando ao trabalho, não deveria ser o contrário? Uma pessoa indicada politicamente é que está entrando por meios ilícitos.

A minha resposta desencadeou a ira da minha chefa, que passou a me perseguir no trabalho (ela não podia me tirar; só podia torcer para que eu não suportasse a pressão e pedisse para sair).

Às vezes me pergunto se não é por essa razão que alguns figurões (os quais ganham gordos salários à base dos impostos do povo), encabeçam campanhas de difamação contra os funcionários públicos em geral. Porque os concursados não podem ser manipulados pelos políticos, como são os comissionados e os terceirizados.

Inventam para o povo que se deve acabar com o funcionário público. Mas, se o fizerem, irão manter os comissionados e os terceirizados, que só tratam dos interesses dos políticos. Realmente, a estratégia de controle da máquina pública e de manipulação da mente popular é maquiavélica. O povo deveria lutar, não pelo fim do funcionário público, mas pela separação da máquina pública da política.

O dinheiro público não deveria ficar a disposição dos políticos. O Judiciário, o Legislativo e o Executivo não deveriam ficar a disposição dos políticos.

Quem indica as pessoas que mandam nesses lugares, são eles: os políticos eleitos pelo povo. Portanto, no dia em que a política não tiver mais nenhum tipo de influência na máquina pública, as coisas podem começar a mudar.

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Eu não pedi para sair do meu novo setor, porque achei injusto por parte das poderosas chefonas. Aceitei todo e qualquer trabalho que Michaela Ritter me mandou fazer: servir cafezinho para os deputados; depois lavar a louça da sua santa avozinha, usada apenas com os VIP; tirar Xerox; grampear documentos; carregar pilhas pesadas e empoeiradas de processos; atender telefone; preencher e selar envelopes... Enfim, todas as atividades que minhas colegas de setor achavam indignas. Cada vez que alguém tentava fazer algo assim com uma delas, as dondocas recorriam aos seus padrinhos políticos ou saíam de licença... Voltando só quando o partido político no comando tivesse mudado. Eu, como não tinha padrinho político, saía até para pagar as faturas da chefa, enfrentando as filas do banco, lotérica e das lojas de roupas.

Mas isso não me deixava chateada. Eu ia pra rua, feliz e contente – cantando "Eu sou boy", do Kid Vinil – porque, na verdade, eu estava muito grata por ter um emprego que pagasse as minhas contas. Como os SEALs americanos dizem por aí: "embrace the suck". Literalmente: "abrace e chupe" ou "receba/aceite o desagradável". Pra mim, significava: "aceita que dói menos".

A limonada que você faz com os seus limões, né?

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O clima nas repartições públicas dependia das ondas políticas. Logo, o partido que estava no poder caiu e outro entrou em seu lugar. Michaela Ritter deixou de ser chefe setorial, assim como Juliana Azevedo deixou de ser supervisora geral. Por acaso, elas eram funcionárias públicas. Não apenas comissionadas. As duas foram enfiadas em um setor de pouca visibilidade; tipo, no porão... Tiveram que aprender a trabalhar juntas (fiquei sabendo que as duas, antes tão amigas, começaram a se matar para ver quem ficava com o serviço subalterno – aquele que eu fazia). A última notícia que tive, é que Juliana queria roubar os créditos pelo sistema de arquivamento de documentos, criado por Michaela. As duas passaram a se odiar.

Acho que se odeiam até hoje.

Assim que o novo supervisor geral, Alberto Junkes, assumiu o cargo, eu aproveitei o momento político para me apresentar e pedir uma nova transferência. Ele parecia ser um cara compreensivo até certo ponto, e permitiu que as pessoas insatisfeitas nos seus locais de trabalho se mudassem.

Agarrei a oportunidade.

Estava farta da documentação avançada, onde os egos digladiavam em busca dos holofotes. Queria um setor mais humilde, onde eu pudesse desaparecer e apenas trabalhar. Por isso, imaginei que o Setor de Arquivamento – SA, viria a ser o meu ideal de consumo.

Tratava-se de um setor pequeno, com apenas uma pessoa (a outra estava se aposentando); lidava com o arquivamento e despacho de documentos para os demais setores de arquivo de outros órgãos públicos... O serviço dependia apenas da vontade da pessoa que a exercia, e não de outras pessoas... Por causa disso, os atritos quase não aconteciam. E a sala era maravilhosamente silenciosa.

No SA, agora, só havia duas pessoas: eu e meu colega Ambrósio. Nós tínhamos uma meta a cumprir todos os dias e uma vez tendo cumprido, o resto do tempo era nosso. Eu aproveitava para trabalhar nos meus projetos.

Sim, eu já tinha algumas leitoras me seguindo na plataforma da VoxPaper. Elas acompanhavam os meus romances, algumas com um entusiasmo que chegava a me emocionar... O retorno que me davam fazia com que eu me sentisse cada vez mais confiante, em relação a minha escrita.

Minhas amigas também acompanham as minhas postagens na plataforma.

O irmão de Gislaine criou uma página de autora para mim, no Instagram. Eu não queria... Era mais uma rede social para aprender a lidar e administrar. Acabei cedendo porque amava fotos e vídeos de bichinhos e paisagens. Costumava sonhar acordada, imaginando que iria conhecer todos aqueles lugares maravilhosos que o povo do Instagram fotografava, assim, eu fui arquivando as imagens e as informações contidas nos posts.

Um dia...

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O Instagram tinha postagens de deixar a gente babando! No começo, eu nem pensava em promover os meus livros. Ia direto pros usuários que postavam paisagens e pets. Amava os animais com todo o meu coração. (Meu falecido avô tinha um gato e um pequinês e eu cresci convivendo com os dois.)

Assim, eu ficava só navegando a esmo e curtindo as fotos.

Com o passar do tempo, é que comecei a divulgar meus textos, e a me familiarizar com grupos que postassem assuntos de meu interesse. Particularmente, tópicos que ajudassem a responder dúvidas para desenvolver os meus futuros livros.

No meu próximo livro, eu pretendia escrever sobre o amor entre um pracinha brasileiro e uma garota italiana, durante a Segunda Guerra Mundial. Na verdade, o amor deles teria início antes... Quando a personagem feminina visita os parentes, no Brasil.

Os dois se conhecem durante um baile vespertino, antigamente denominado de matinê. São jovens despreocupados, vivendo os dilemas típicos dos adolescentes daquela época. Com seus amigos, desafetos, dificuldades e alegrias... E aqui, começava toda a pesquisa: os costumes da época, modo de agir e falar, modo de se vestir, constituição familiar, urbana e social, moda, etc.

O marco se dá, na estória, com um encontro na matinê do clube juvenil – em que acontece uma dança, um beijo memorável... E os dois descobrem o amor de sua vida.

Achei tudo tão romântico!Maravilhosamente piegas! Como no filme do qual eu era fã - "Pearl Harbor", com Ben Affleck, Josh Hartnett e Kate Beckinsale. Eu tinha uma queda pelo Josh Hartnett, diga-se de passagem. Sendo honesta, eu arrastava um bonde por ele. Depois que interpretou o lobisomem da série "Penny Dreadful", então, passei a arrastar um trem inteiro por ele.

Voltando...

No meu enredo, a garota italiana (cujo nome, ainda não foi escolhido), precisa voltar para a Itália. O rapaz (cujo nome, eu estava na dúvida), fica completamente arrasado e planeja ir atrás dela... E é quando a guerra estoura. Todas as viagens para a Europa ficam comprometidas. O rapaz descobre que a vila onde sua garota vive foi sitiada pelos nazistas. Getúlio Vargas declara guerra à Alemanha. O Exército Brasileiro convoca os homens em idade militar.

O rapaz apaixonado apresenta-se, na esperança de ser enviado para lá e encontrar a sua amada. Seus amigos e inimigos também são convocados para a guerra. Dessa forma, todos se reencontram no pelotão.

E aqui entrava outra tonelada de pesquisas: O funcionamento do Exército da época, os uniformes, o protocolo de ação, os treinamentos, a hierarquia, os costumes, a vida de pracinha, a viagem dos pracinhas para a Europa, a integração dos pracinhas às forças militares americanas e britânicas lá presentes, entre outros aspectos.

Os pracinhas enfrentaram condições brutais para alcançar a Itália e encarar os nazistas com os poucos recursos que possuíam. Ao libertarem os italianos, vários pracinhas morrem heroicamente.

Nossa, eu me emocionava só de me lembrar dessa história, cujas primeiras linhas, idealizei quando tinha apenas 13 anos de idade, durante as aulas de História. Agora, eu estava decidida a concluí-la. Já tinha tudo esquematizado na minha cabeça, porém, estava consciente de que um livro com tal envergadura histórica exigia muita, mas muita pesquisa!

Comecei o meu trabalho por uma varredura na internet, e foi navegando no Instagram, durante a minha pesquisa, que encontrei a conta de @BlackJack_2001.Nem sei como fui parar nos grupos de forças especiais... Ah, sei, sim! Eu procurava militares que tivessem arquivos de imagens relacionadas à Segunda Guerra Mundial. Não me limitava apenas ao Instagram, durante a busca. Usava o Google e o Facebook...

No Instagram, meu objetivo era contatar alguém que me respondesse algumas perguntas sobre os procedimentos do Exército daquela época: 1940. Curiosamente, os militares brasileiros revelaram-se mais fechados do que os estrangeiros – tomei muitos "vácuos" por parte deles. E os estrangeiros, por sua vez, mostravam-se efusivos a respeito de sua cultura e história militar, dando uma abertura maior para fazer perguntas...

Foi assim que eu acabei circulando pelos grupos das Forças Armadas Americanas. Fiquei tão encantada com o entusiasmo deles pelos seus valores e ideais... Eles eram tão escandalosamente patrióticos e abertos para discutir a cultura militar, que acabei comprando um livro para entender o funcionamento do que eles chamavam de "mindset" (algo como "foco mental"). Nele, o autor citava um tal de Sea, Air, Land da Marinha.

SEAL... Ou Navy SEAL.

Achei fascinante a irmandade que eles criaram... The brotherhood¹, como chamavam. Quando dei por mim, meio que comecei a acompanhar algumas das postagens individuais e comunitárias dos militares da Marinha americana. Conheci histórias tão trágicas quanto heróicas, tais como a dos marinheiros do USS Indianápolis e o ataque dos tubarões; ou os marinheiros sepultados com o USS Arizona, durante o ataque a Pearl Harbor, etc. A incrível história de resgate do Capitão Phillips por parte dos SEAL Team Six foi algo que me deixou de boca aberta. E a patética e terrível batalha de Mogadíscio foi outra coisa que me inspirou a escrever um novo livro, sobre uma força de elite brasileira que tenta resolver o seqüestro de um navio.

Enfim, acabei me enturmando um pouco com alguns outros "freqüentadores" das comunidades militares. @BlackJack_2001sempre estava lá, no meio... O nome do seu user – conforme ele me explicou mais tarde – era uma homenagem aos antigos piratas dos sete mares, juntando com o ano em que as torres gêmeas foram ao chão. Muitos adolescentes da época decidiram se alistar nas forças, e nas forças especiais, por causa do fatídico episódio que mudou a história dos EUA e do mundo, por consequência.

O codinome dele me chamou a atenção logo de cara e eu comecei a acompanhar os seus comentários... Deu pra perceber que se tratava de um usuário bem descolado com essas coisas de internet. Comentários vêm e vão... @BlackJack_2001 passou a me dar algumas dicas valiosas de como transitar nas comunidades virtuais. Acho que, no fundo, ficou com pena quando eu disse que não era boa com as redes sociais.

@BlackJack_2001 gostava de ajudar.

Era da sua natureza: servir e proteger.

Contudo, ele não era de falar muito, nem de se repetir. Curtia as publicações, porém, só comentava o que considerava essencial; geralmente, quando queria esclarecer algum ponto de vista, ou quando surgiam questões em que sentia a necessidade de defender os soldados que estavam no Afeganistão, para que a sociedade americana permanecesse segura. Parte desta mesma sociedade costumava criticar as tropas, sem compreender que os militares não são responsáveis pelas decisões do Congresso - nem pelos interesses ocultos, que motivam, ou não, a "guerra ao terror".

De tudo que observei a seu respeito, através das postagens, ele parecia ser um cara conciso e direto. E tão desconfiado quanto eu, em relação às pessoas (se é que ele era "um cara").

Minha única certeza é que ele era um militar. No início, pensei que pertencesse ao exército, talvez um ranger. Depois, chutei forças especiais... Boina Verde, Delta Force... Porém, como adotou o nome de um pirata, por dedução, imaginei que fosse da Marinha. Meu palpite mais sólido era que BJ pertencesse ao corpo dos fuzileiros navais. Se fosse fuzileiro... Bem, a maioria dos militares costumava dizer que os fuzileiros eram "sinistros" – "badass", em inglês. Eu viria a descobrir que badass é a junção entre bad/mau com ass/bunda.

Bundas más?

Meu Jesus Cristinho...

Os caras viviam contando divertidas histórias de machos, como eles mesmos chamam, sem o menor constrangimento... Algumas, repletas de palavrões que eu nem entendia. Na maior parte das vezes, esses palavrões tinham algum tipo de "bunda" envolvida. Beije a minha bunda. Bunda foda. Bunda má. Vai foder a bunda. Reboque a sua bunda até aqui, ou daqui (o equivalente ao nosso "mexa-se"). Grande bunda. Chutar algumas bundas, enfim... A maioria dos elogios e dos xingamentos deles envolvia "bunda".

Nunca entendi essa fixação por bundas. Sempre achei que os americanos fossem apaixonados por "peitos"...

Bundas à parte... De qualquer forma, isso tudo é história antiga.

Independente do mistério envolvendo a identidade de @BlackJack_2001, e de quantas "bundas" eram mencionadas nas postagens dos militares, pelo menos, eu sabia que ele sempre estava lá, por mim... A cada vez que eu curtia e comentava, era ele quem vinha em meu socorro e esclarecia as minhas dúvidas.

Olhando para trás, vejo quantas bolas-foras devo ter dado, com os meus comentários de amadora. Nesse sentido, até que @BlackJack_2001 teve muito paciência comigo. O que eu acreditava não ser uma virtude comum entre aqueles caras. Acho que eu os imaginava de acordo com o estereótipo conhecido no Brasil: sujeitos inflexíveis, perigosos, linha dura, que não aceitavam ser desafiados, e não tinham paciência com os ignorantes. Leia-se: tolerância zero.

Já os militares que eu observava lá fora eram muito diferentes. O humor deles era mais amigável do que o nosso. Eles respeitavam opiniões divergentes, desde que expressadas com respeito. Os SEALs retirados, em particular, eram gentis, flexíveis, do tipo que não se aperta em nenhuma situação, por mais cabeluda ou constrangedora que pareça. Eles eram altamente adaptáveis e davam um jeito de compreender o contexto que se apresentava diante dos seus olhos. Diante disso, suas histórias de quando estavam na ativa revelam que costumavam tomar decisões e agir de acordo com a situação para obter o sucesso da tarefa ou da missão. Eram pessoas muito críticas também, selecionadas, logo de cara, entre os candidatos mais inteligentes e determinados.

Quanto mais eu participava dos fóruns de discussão e curtia as postagens, mais eu via o abismo entre a mentalidade do civil e a mentalidade do militar. O segundo incluía o primeiro, mas o primeiro não conseguia entender o segundo.

Ainda bem que @BlackJack_2001 tinha sempre em mente que eu era uma civil, e não conseguiria ver com os mesmos olhos de um militar, as atividades que estes exerciam. Era difícil para os que se dispunham a tentar. Levava tempo. E se quer saber, só se consegue vislumbrar uma mínima parte de todo o caos envolvido no embate direto, na perda e na morte – ambas variáveis constantes do trabalho.

Hoje, você tem amigos... Amanhã, está sozinho, e enfrentando o funeral dos companheiros com os quais treinou e lutou. Muitas vezes, você será a mão que carrega a alça daquele caixão e terá de encarar a família de seus colegas, em meio às lágrimas. Nessa hora, há pessoas que piram. Há pessoas que questionam por que alguns vivem e outros morrem.

Hoje, você está vivo... Amanhã pode estar mutilado, ou morto. E tudo isso acontece assim, num piscar de olhos. Uma emboscada redefine toda a sua vida. Quase negando a máxima que diz que "Deus não joga dados".

Para compreender tudo isso, mesmo que superficialmente, os civis precisam fazer uma imersão na cultura militar. Isto é, se quiserem traduzir o que ela significa na vida de uma pessoa treinada para servir ao seu país. Eu não tinha nenhum tipo de conhecimento específico, exceto simpatia e respeito imensos pelo seu sacrifício. No entanto, sabia que não era o bastante para debater o tema de igual para igual. Só quem foi militar poderia argumentar, afirmar e refutar aspectos relativos ao serviço prestado ao país. Ou melhor, só quem lutou e serviu lado a lado poderia dizer o que seus colegas sentiam e pensavam.

No fundo, eu achava que devíamos a eles o direito de fazê-lo, já que seu trabalho consistia em matar e morrer pela nação. Por tudo isso, muitas vezes, eu me sentia até envergonhada de querer escrever a respeito de coisas sobre as quais, eu entendia tão pouco. Só que@BlackJack_2001 parecia não pensar assim.

Militares não costumam ser melosos; então, de uma maneira sutil, ele sempre incentivava as minhas pesquisas malucas, mesmo quando eu lhe perguntava - às quatro da manhã na costa leste - o que eles comem nas refeições do quartel.

Enquanto tudo, em mim, era insegurança e pessimismo, ele se revelava confiante, destemido e otimista. A minha contraparte.

Foi assim que começou a nossa amizade...

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Rodapé:

[1] - O conceito de Brotherhood pode ser explicitado pela primeira escolha que fiz de epígrafe: "Nenhuma bala, nenhum projétil, nenhum demônio do inferno romperá esse vínculo chamado irmãos."

Do videogame - Battlefield

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