Capítulo 1 - O Moinho dos sonhos (Lara)
De três anos a quatro anos atrás.
A maneira como eu conheci o amor da minha vida está entrelaçada com a maneira como vivi a vida, até conhecê-lo. Eu sei... É confuso, mas deixe-me colocar de outra forma:
Foi um longo caminho, repleto de escolhas - algumas conscientes, outras nem tanto - que me fizeram encontrar a minha alma gêmea.
Meu avô, que Deus o guarde, tinha uma teoria. E eu acreditava nela com todas as minhas forças. Quando uma pessoa encontra você no meio do caminho, e tudo o que acontece é especial, fácil, puro e cristalino... Então, é porque "é para ser". Está escrito nas estrelas.
Agora, se você insiste em permanecer no caminho de alguém e o esforço é apenas seu... A cada tentativa, tudo dá errado... Estar com a pessoa é como "dar murro em ponta de faca"... E as coisas só caminham quando há uma troca de interesses... Então, "não é para ser". E isso também está escrito nas estrelas.
Meu avô estava certo.
Experimentei isso na prática, em diferentes ocasiões.
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Nasci e me criei em Governador Celso Ramos, no litoral catarinense. Uma pequena cidade, cuja economia é baseada na pesca e no cultivo de mariscos. GCR possui áreas de preservação e dispõe de belas praias e baías para o turista conhecer. Não há uma indústria de turismo sofisticada, mas a cidadezinha conta com algumas ações nesse sentido, como a construção de sofisticados resorts...Se estes já estão em funcionamento, eu não saberia dizer. Nunca mais pisei lá.
Entretanto, eu tinha certeza de que não demorava muito para a bela comunidade de pesca se transformar num refúgio para as classes mais abastadas, ávidas por descobrir novos lugares...Para destruí-los em seguida, como uma nuvem de gafanhotos.
O espetaculoso nome "Governador Celso Ramos" foi atribuído à cidade, em 1967. Até então, o pacato lugarejo era conhecido apenas como a "Praia dos Ganchos", ou "Município de Ganchos". Confesso que, em minha opinião, acho o primeiro nome muito mais romântico e pitoresco... Fazia com que me lembrasse daquele filme da Disney, estrelado por Peter Ustinov: "O fantasma do Barba Negra".
Dizem que o formato das baías, vistas pelos pescadores ao retornarem do alto mar, tem o formato de ganchos... e aí estaria a razão do curioso nome. Eu prefiro a versão que criei em minha mente: de que piratas e exploradores passaram por lá, deixando enterrados seus tesouros para os aventureiros da atualidade encontrá-los.
Aqueles antigos exploradores podem ter sido esquecidos em meio às brumas do tempo, e nossos aventureiros de hoje, provavelmente, não saberiam lhes dar o devido valor... Mas, com certeza, foram homens e mulheres intrépidos que desafiaram criaturas guardiãs de poderosos portais, tão antigos quanto o mundo!
Bem... Isso de acordo com as lendas itararés e/ou guaranis.
Eis um território fértil à imaginação, com suas lendas e causos, que os pescadores sabem contar como ninguém...
Sim, eu gostava de GCR... Mas não fui feliz lá. Passei num concurso público assumi o meu cargo na capital do estado, Florianópolis - situada a 50 ou 60 quilômetros de GCR. Foi a salvação, porque minha permanência naquele lugar estava ficando insustentável.
Culpa do meu ex-marido, Renato. Não, culpa minha mesmo... Que me deixei enredar por um tipo de vida que não era para mim.
Não nos casamos no papel, mas vivíamos juntos desde que éramos adolescentes (tínhamos praticamente a mesma idade). Conhecemo-nos durante o ensino médio.
Renato foi o meu primeiro namorado. O meu primeiro amante. O meu primeiro em tudo, pra falar a verdade.
Com dezoito anos, eu estava assumindo um "casamento", morando de favor na casa dos meus "sogros" e tendo que aguentar a interferência da mãe de Renato em tudo o que eu fazia. Ela me vigiava como um falcão. Sempre dando um jeito de me fazer sentir inferior, desajeitada, e insignificante. Jogava na minha cara que eu devia levantar as mãos para o céu por eles terem-me "acolhido" em seu lar.
Lar... Que piada!
Na época, eu achava que um lar devia ser assim mesmo... Meus pais faleceram num acidente de carro, quando eu tinha dezesseis anos. E eu me senti grata pelo fato de a família do meu namorado me acolher em seu "lar". Demorou um pouco para que eu compreendesse que eles queriam uma empregada pouco exigente e gratuita. Se não bastasse isso, concomitante à evolução do nosso relacionamento (de namorado para companheiro/marido), Renato começou a se revelar um homem ciumento, controlador... E abusador.
Quando começou a me espancar, eu dei um basta.
Por sorte, eu tinha prestado concurso público. Já nem esperava ser chamada, quando divulgaram a lista dos aprovados. Fiquei emocionada, extasiada, tudo que é "ada" que você possa imaginar.
O problema era que eu precisava me apresentar ao trabalho em poucos dias, de acordo com a data comunicada no edital. Por isso, fiz a coisa mais impulsiva e redentora da minha vida, até então! Simplesmente, abandonei a casa dos pais do meu "marido" e viajei com uma mochila nas costas, contendo todos os meus pertences. (Quando saí de lá, não tinha ninguém para tentar me deter. Eu apenas deixei um bilhete para o Renato, comunicando minha partida, antes de pegar a estrada. Não entrei em detalhes sobre quando, como e onde, apenas disse que estava indo embora... E fui! Eu deveria estar apavorada, mas não estava! Foi a coisa mais fantástica, maravilhosa e excitante, que já fiz por mim mesma!)
Peguei algumas caronas até a capital. Foram boas caronas, com pessoas com as quais, troquei conhecimentos, impressões e o mais importante, sabedoria de vida.
Assumi o cargo numa cidade completamente estranha... Contudo, tive ajuda para me situar e estabelecer, por parte de algumas boas pessoas. Pessoas que conheci ao longo da minha jornada.
Deus sempre colocou alguém no meu caminho. Um anjo da guarda, um bom samaritano... Seja lá o nome que você queira dar, essas pessoas me deram bons conselhos, e me orientaram a transitar por uma cidade da envergadura de Florianópolis. Com seus problemas de moradia, transporte, custo de vida, ritmo alucinado, etc.
Eu ainda não tinha recebido o meu primeiro salário e mesmo que tivesse, não teria como bancar o preço de um aluguel.
Em Floripa, tudo era extremamente caro.
Mas, eis que alguém me deu o nome de um fazendeiro... Lá, no distante bairro do Rio Vermelho, onde Judas perdeu as botas, esqueceu as cuecas e o chapéu de palha. O referido fazendeiro possuía um moinho velho e abandonado dentro da sua propriedade. O local não era usado para nada há décadas. Seria vantajoso para ele alugá-lo por um valor módico. A pessoa que me deu a dica era amiga do fazendeiro e me apresentou a ele.
Eu peguei um ônibus e fui para o norte da ilha (longe pra caramba do local onde eu iria trabalhar, mas fazer o quê...). O fazendeiro, Seu Silvério, recebeu-me com gentileza e entusiasmo. Sua esposa, Dona Mafalda, até me serviu rosquinhas. O casal não pareceu achar estranho que uma moça como eu procurasse um lugar como aquele para alugar.
O seu Silvério me contou que os manezinhos da ilha - apelido carinhoso dado aos ilhéus/nativos, descendentes dos açorianos que primeiro colonizaram Florianópolis, costumavam construir moinhos de barro para processarem a farinha de mandioca. Com o tempo, esses moinhos perderam a utilidade. Muitos foram demolidos.
O que existia dentro da fazenda, muito provavelmente, era um dos últimos "da sua espécie".
Seu Silvério era um homem idoso, do tipo observador e calado; viu a chance de ocupar e fazer render um imóvel que não estava servindo para nada, e ao mesmo tempo, ajudar uma jovem sem família. Ele me levou para conhecer o moinho. Constatei com meus próprios olhos que o local estava abandonado e sua condição era precária. Aparentemente, Seu Silvério não via problemas em alugá-lo por um preço mega baixo. Afinal, poderia ser demolido, por falta de utilidade.
Eu teria que limpar o interior, que não tinha energia elétrica, nem água.
Passei a usar o moinho apenas para dormir e, depois, à medida que, a cada mês, recebia o meu salário, consegui empreender algumas melhorias. (Enquanto isso, eu utilizava o chuveiro de um dos banheiros, no local de trabalho... Tinha que ser escondido, porque o chuveiro era reservado ao pessoal da faxina; eu chegava mais cedo só pra isso). Contratei um eletricista e um encanador, a fim de instalar um pequeno banheiro no interior do moinho, bem como, puxar a energia elétrica da sede da fazenda. Depois, comprei alguns móveis básicos, usados, para ter um pouco de conforto. Ao invés de dormir no colchonete estendido no chão, eu passei a ter uma cama com colchão. Ah, e instalei uma porta com tela, para me manter segura! Além disso, mandei abrir uma janela. O valor gasto a cada melhoria era deduzido do meu aluguel.
Se vocês querem saber, a vista do mar já valia quaisquer sacrifícios e desconfortos. O moinho ficava na divisa entre o terreno da fazenda com a praia de Moçambique. Era cercado, de um lado, pelos vastos campos, onde pastavam cavalos, bois e vacas; do outro lado, pelas dunas de areia fina e dourada.
Todas as manhãs, eu tinha o privilégio de ver o sol nascendo sobre o mar.
O silêncio era maravilhoso, só rompido pelas ondas quebrando na areia. Algumas vezes, eu escutava um bando de gaivotas passarem gritando, em busca do alimento. Outras vezes, eu era agraciada com a vertiginosa visão dos albatrozes solitários mergulhando no mar - enquanto pescavam o peixe de cada dia.
Eu adorava aquele lugar. Adorava o meu moinho... E não o trocaria por nenhuma mansão.
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Claro que o meu ex "marido" não me deixou em paz...
Parece que as pessoas têm uma fixação em tentar arrasar a vida de quem passa pelo seu caminho e vai embora. E se o outro se dá bem, então... A felicidade do outro parece insuportável para quem ficou para trás. Se a vida de Renato era miserável, então, ele tinha que tentar deixar a minha tão miserável quanto.
Com o auxílio da mãe, ele engendrou um plano. Começou a me perseguir no trabalho... Ainda bem que ele não sabia onde eu morava, no entanto, fiquei sabendo que estava tentando descobrir a localização exata.
Ele e sua família queriam me arrancar dinheiro, porque descobriram que eu havia conquistado um emprego público, por meio de concurso. Renato entrou na Justiça, com o argumento de que estava desempregado, e eu teria de lhe pagar uma pensão.
Tive que consultar um advogado.
Não precisei entrar com o divórcio, porque só vivíamos juntos, sem papel. E na maior parte desse tempo, eu era menor de idade. Não valia para ele declarar que tínhamos uma união estável. Além do mais, ambos vivíamos sob o teto dos pais de Renato. O juiz julgou a sua causa improcedente.
Só que Renato não desistiu fácil... Por causa disso, tive que pedir uma medida restritiva. Ele acabou acatando a decisão do juiz, para o meu alívio. Desde o nosso último comparecimento à corte, eu nunca mais o vi.
Por causa de todo o sofrimento, as humilhações impostas pela família dele, e a perseguição, tornei-me uma pessoa desconfiada. Tanto para fazer amizades como para me relacionar com os outros - especialmente, na internet. Eu evitava as redes sociais ao máximo. Internet era um meio para um fim. Eu utilizava apenas para pesquisar os meus passatempos preferidos.
Eu não confiava nas pessoas... Nenhuma pessoa. Só nos animais. Preferia fazer amizade com as vacas do Seu Silvério, do que com os meus colegas de trabalho.
O local onde eu trabalhava era repleto de pessoas que procuravam puxar o tapete umas das outras. Não respeitavam quem não tinha poder político, padrinho, ou dinheiro para ostentar roupas caras, cabelos e manicures feitas em salão, assim como bens materiais luxuosos. Aquilo era uma selva de pedra! Um comendo o outro para se dar bem. Davam-lhe a rasteira, por trás, enquanto sorriam pra você, pela frente... Frequentemente, os meus colegas de trabalho humilhavam quem eles achavam que não pertencia ao seu círculo social. Confundiam educação com dinheiro e poder, na maior parte do tempo.
Ninguém era confiável, na Repartição.
Minhas únicas duas amigas trabalhavam na mesma rua, só que em lugares diferentes. Indianara era manicure, num salão de beleza que ficava na esquina; já Gislaine trabalhava como caixa do mini-mercado ao lado da Repartição.
Mas, verdade seja dita, o comércio de toda a rua, e nos arredores, sobrevivia em função dos funcionários da Repartição. Afinal, eles comiam por ali, faziam o cabelo, as unhas e os pés, faziam compras, e outros negócios. Se a Repartição não existisse, o comércio local também não existiria.
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