Lua Cheia
Os restos do corpo do sargento da polícia foi encontrado por um grupo de adolescentes que fazia uma trilha pela região do Buraco da Morte — disse a repórter no noticiário que passava na pequena tevê do restaurante na beira da estrada de São Lívio.
Alguns caminhoneiros, que faziam suas primeiras refeições do dia, olhavam atentamente para o pequeno aparelho no alto de uma parede.
Rebeca, uma mulher de descendência indígena e única atendente do local no turno do dia, passava um pano úmido no balcão, alheia à notícia. Denis, o dono do estabelecimento, um homem gordo e de semblante sisudo, de quase sessenta anos de idade, estava sentado em uma cadeira atrás de um caixa e observava as palavras da repórter, lamentando não poder ver claramente as imagens censuradas.
Na madrugada daquele dia, o sargento caçava naquela região. O homem sempre gostara de matar animais, mesmo com a quantidade de ativistas brigando pelo final definitivo da prática.
O sargento se agachou e fez uma fogueira para se aquecer. Comeu um sanduíche e depois pegou sua espingarda para verificar a área.
Um uivo estridente ecoou pela floresta, fazendo-o se virar rapidamente e seguir o barulho mata adentro. Chegou perto e viu, ao alcance de seus olhos, uns doze lobos extasiados numa barulhenta saudação à grande lua cheia prateada no céu, enquanto rodeavam uma criatura estranha que gemia alto, emitindo um rosnado esganiçado. O homem sentiu o corpo inteiro se arrepiar de pavor. Tentou engolir saliva ao sentir a garganta seca, o corpo inteiro tremia. O suor descia por sua nuca fazendo um caminho incerto por suas costas, mesmo com o frio congelante que fazia lá.
O sargento começou a ofegar ao ver aquela coisa. Não conseguiu ver o rosto, mas o viu crescer enquanto gemia. A criatura horripilante, estraçalhou as próprias roupas. Mesmo trêmulo, o policial ainda mirou, mas arregalou os olhos quando a coisa se agachou, viu suas costas se eriçarem rasgando a pele para liberar aquela massa musculosa e peluda. Um grande focinho escuro surgiu no nariz e logo mostrou, sob a luz da lua, grandes presas e dentes afiados na boca proeminente.
Depois de respirar fundo, engolir em seco e tomar coragem, o sargento preparou a espingarda e, com os olhos ardendo de medo, atirou. A bala ricocheteou no ombro do bicho e chamou sua atenção. Ele virou o rosto peludo e olhou ameaçadoramente na direção do sargento armado, arfando, babando abundantemente, em uma pausa que pareceu durar séculos. O monstro correu na direção do homem, que, mesmo apavorado, ainda disparou duas vezes. Mas as balas pareciam objetos inúteis diante da criatura.
A monstruosidade emitiu um rosnado furioso, mostrando os grandes dentes afiados, brilhando ao expelir uma baba espessa, e agarrou o sargento, cravou suas imensas unhas nas costas do homem e puxou bruscamente, dividindo-o em algumas partes. Agachou-se e, com uma mordida, arrancou um dos ombros dele. Mastigou e puxou mais partes do corpo forte, mas já sem vida, jorrando sangue.
A perícia está investigando a causa de todos os ferimentos. Segundo a polícia, fizeram uma busca detalhada num raio de três quilômetros na tentativa de encontrar as partes que faltavam do corpo do sargento. — Continuou a repórter de aparência cansada. — Uma guia que acompanhava os adolescentes deixou claro que não se aproximaram tanto a ponto de deixar cair pertences, pois a polícia encontrou pedaços de tecido nas proximidades do local onde o corpo foi achado. E não pertencia a nenhum dos jovens.
Rebeca levantou o rosto e passou a observar a tela da tevê, atenta. Inspirou fundo. Só desviou o olhar quando o telejornal foi para um comercial.
— Meu pai sempre disse que tinha lobisomem por essa região e ninguém nunca acreditou — falou Denis, chamando a atenção dos presentes. — Quando essa coisa mata animais, ninguém vai falar com jornalistas, mas quando ela ataca gente importante, aí ficam achando que tem um maníaco na cidade.
— Você acha que é um lobisomem, Denis? — Rebeca perguntou, para não deixar o chefe falando sozinho.
— Eu tenho certeza. Essa polícia precisa armar uma tocaia nas noites de lua cheia e vão ver se não estou certo.
— E se for só um bicho feroz que foi atacado pelo sargento? — indagou um cliente, aumentando o tom de voz na direção de Denis. — Esse povo daqui é metido com caça. Essa região é rica em animais de grande porte.
— Isso de lobisomem é lenda — garantiu outro e engoliu seu café preto antes de se levantar. — Já vi coisas feias na estrada e sempre consegui saber o que era e, nunca, em vinte anos de estrada, vi um bicho assim. Isso é coisa de filme, não existe na vida real.
— Garanto que lobisomem não vai se arriscar na beira da estrada. Não precisa de carona, quer comida, e caminhoneiros não vão parar por ver um no foco de um farol — replicou Denis, recebendo o cartão de débito do cético cliente.
Rebeca sorriu. Viu o homem se afastar do caixa meneando a cabeça.
O Restaurante do Denis era a cinco quilômetros da cidade de São Lívio, que ficava entre uma grande cidade polo de indústrias e o litoral do estado. Apesar de pequena, São Lívio era bem movimentada por turistas, pois era rica em cachoeiras, florestas, trilhas, lagos, rios, montanhas e, como mencionado pelo cliente descrente, em animais selvagens de várias espécies.
Rebeca morava com a esposa, a professora Glenda, uma negra alta de tranças chanel e sorriso fácil, numa grande casa ao lado do único hotel da cidade. Glenda sugeriu na última alta temporada que elas alugassem dois dos quartos da casa, para ganhar um dinheiro extra.
— Não acho uma boa ideia — Rebeca ponderou fitando o vazio, pensou na proposta da mulher.
Glenda abraçou a esposa por trás e beijou seu pescoço, carinhosamente, sentindo o cheiro adocicado que tanto amava.
— Não acha que merecemos uma tevê nova?
— Sim, mas não gosto da ideia de gente estranha dentro da nossa casa — retorquiu de olhos fechados enquanto recebia os beijos da amada em sua nuca.
— Só pra gente comprar aquela tevê que você namora há meses — murmurou, acariciando os seios da atendente por baixo da blusa. — Prometo não insistir com isso depois.
O gemido por entre os dentes de Rebeca adiou aquele assunto para a manhã seguinte, pois Glenda estava determinada.
— Você acabou comigo, professora gostosa — falou, sorrindo e puxando a esposa pelo queixo para um beijo. — Prometo que vou pensar sobre aquele assunto.
— Obrigada — disse e entregou o celular a ela. Era um site com vários modelos de tevês. — Para te ajudar a decidir.
Rebeca riu e começou a tomar o café. Precisava estar no restaurante às seis da manhã, hora que começava seu turno. Glenda sempre levava a esposa de carro e ia para a escola. Dava aula para cinco turmas durante a semana e adorava o que fazia.
Nascidas em São Lívio, as duas estavam juntas havia oito anos. Os pais de Rebeca morreram num acidente de carro quando ela era pequena e fora criada pela avó, que falecera no ano anterior, vítima de infarto.
A família de Glenda morava a oitocentos metros da casa das duas. Seu ex-marido, o farmacêutico Gerson, um homem branco de estatura mediana, que usava óculos de aros finos, morava com os pais da professora. Ao se separarem, o farmacêutico permanecera lá, pois era muito querido por todos. Ele e Glenda eram muito amigos e o único visitante que Rebeca gostava de receber em casa.
— E aí, decidiram se vão alugar os quartos? — perguntou Gerson na cantina da escola, no intervalo das aulas de Glenda. Ele sempre dava um jeito de ir almoçar com ela.
— Beca tá resistente, mas acho que vai ser bom. Vai ser cansativo, pois vou cuidar de tudo sozinha, já que vou estar de férias, mas será por uma boa causa.
— Se precisar de ajuda, tiro férias também. — disse, sorrindo.
— Obrigada. Vou esperar a ferinha decidir e vejo como divulgar. A cidade lota e muita gente se acumula em barracas pelas ruas, já que o hotel que tem não comporta todo mundo.
— E agora com os boatos de lobisomem na cidade, os crédulos podem ficar longe de nós.
Glenda riu, meneando a cabeça.
— Esse povo inventa cada coisa. E acredita em cada coisa.
— Eu vi as fotos sem censura e é muito feio, Glen. A polícia está dividida. Tem uns que acham que tem mesmo um bicho muito cruel e assassino por aqui.
— Você acredita! — constatou de olhos arregalados enquanto sorria do rosto constrangido do amigo. Ficou fitando-o corado, tentando entender de onde vinha aquela crença dele. — Não creio que o cético Gerson Perez acredita em lobisomem! Sério?
— Não disse que acredito, mas também não desacredito. Meu avô garantiu ver os bichos na floresta.
— Ah, o seu avô! Aquele que dizia que tinha conversado com um alienígena — debochou, rindo.
Gerson sorriu do riso da ex. Poderia ter voltado a morar com o pai depois da separação, mas preferia fazer companhia e cuidar dos ex-sogros, que adoravam sua companhia. Amara muito aquela mulher e talvez ainda amasse, mas aceitara que ela jamais o amaria novamente como o homem que era, pois Glenda se apaixonara perdidamente por Rebeca.
Algumas crianças chegavam à escola a pé, pois moravam perto. Mas naquele dia, Glenda sentiu falta de uma aluna que morava próximo ao lago que abastecia a cidade. Ligou para a casa da menina quando o turno terminou e gelou ao ouvir que a adolescente saíra de casa pela manhã para ir à escola.
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